O misterioso chofer deixou Félix em frente ao Clair de Lune, mas para sua decepção a porta estava fechada. Havia pouco movimento na rua. Félix olhava para os lados, sem saber o que fazer. Sentou-se na calçada e ficou observando as pessoas passando. Refletia sobre tudo que vinha acontecendo em sua vida nos últimos dias. Seria aquilo um sinal? De repente, ouviu passos de uma pessoa que se aproximava, se virou e olhou para cima, Nicola tinha um sorriso resplandecente no rosto.

— Félix! Estou tão contente em te ver.

— Oi Nicola, eu ... eu vim porque precisava te ver.

Nicola sorriu. Seu sorriso era terno e dava a Félix um sentimento de paz interior. Como precisava daquilo!

— Eu cheguei e o restaurante estava fechado, fiquei sem saber onde te encontrar.

— Ora, podia ter tocado a sineta, nós moramos nos fundos.

— Claro, eu devia ter imaginado.

— Minha tia está em casa descansando, está um pouco constipada Fui buscar um remédio para ela, por isso não abrimos. Mas venha, por aqui, vamos entrar.

Nicola guiou Félix até uma porta que ficava na lateral do prédio. E entraram em um corredor que levava aos fundos. Lá havia um pequeno quintal com modesto jardim. Entraram em outra porta.

— Pronto, aqui é meu humilde lar.

— Tenho certeza de que é um lindo lar.

— Venha, minha tia está lá dentro.

Na sala de estar, Márcia estava sentada em uma poltrona lendo, usava um hobbie e calçava pantufas, os cabelos estavam presos por uma enorme flor.

— Bonsoir.

— Bonsoir! Félix, você veio nos visitar mon cher. Que grata surpresa!

— Bonsoir madame.

— Tia, eu trouxe seu remédio. Aqui está.

— Ah, que bom, só preciso de uma colherada disso e ter uma boa noite de sono, amanhã estarei novinha em folha.

— Tenho certeza que sim, tia. Você tomou a sopinha que eu fiz?

— Sim, estava deliciosa ma petit. Você vai ser o melhor chef da França.

Félix observava aquela cena com ternura, pensando em quanto amor havia naquela casa

— Nicola, sua tia está doente, eu não quero incomodar.

— Você jamais incomoda Félix. É muito bem vindo em minha casa. Ah meu Deus, que deselegância a minha, sente-se aqui Félix.

— Ah obrigado!

— Tia querida, tome seu remédio e vá descansar. Amanhã estará ótima.

— Eu vou sim, Nicola. Eu fiquei aqui lendo este livro, acabou me dando sono.

Nicola ajudou Márcia a se levantar.

— Não precisa me levar até o quarto querido, eu estou bem. Fique com seu amigo.

— Está bem tia, boa noite.

— Boa noite, meus queridos. E fique a vontade Félix.

— Boa noite, senhora.

— Nada de senhora.

— Está bem, nada de senhora.

Félix sorriu observando aquela cena tão terna. Em poucos minutos, naquela casa tão simples, assistiu mais demonstração de amor do que talvez sua vida inteira em sua casa.

— Bom, agora somos só nós. Aceita uma bebida, Félix? Talvez um vinho, um conhaque?

— Eu aceito uma dose conhaque.

Nicola pegou a bebida em um pequeno bar que tinha na sala e serviu.

— Nossa, mas é excelente- Félix disse após experimentar a bebida.

— Eu fiquei tão contente que você veio me ver, eu pensei que nunca mais nos encontraríamos.

— Talvez não nos encontremos nunca mais mesmo, Carneirinho. Em breve voltarei para o Brasil com minha família.

— Eu sei... Mas eu queria tanto que você ficasse.

— Acredite Nicola, eu também gostaria, mas infelizmente isso é impossível.

Nicola ficou calado por instantes, olhava Félix no fundo dos olhos, com uma expressão serena, seu rosto sorria ainda que seus lábios permanecessem fechados e imóveis.

— O que foi Nicola? Por que me olha assim?

— É que você é tão diferente das pessoas daqui. Até sua forma de se vestir é diferente, o corte do seu terno, as coisas que você diz... Nunca conheci alguém como você.

— Eu posso imaginar. Eu realmente sou de um tempo diferente.

— Como?

Félix pigarreou.

— Quero dizer lugar, de um lugar onde temos costumes que para você soariam estranhos.

— Então me fale sobre esse lugar.

— Não há nada de tão fascinante nele. Na verdade Nicola, eu quis te ver porque ... - Félix procurava as palavras certas - eu não sei o porquê, eu precisava te ver. Sua companhia me faz tão bem.

— Fico feliz em saber. O sentimento é recíproco.

— Sabe hoje eu tive um dia muito desagradável, tive uma discussão com...

— Você discutiu com alguém?

— É... Com uma pessoa da minha família, mas isso não importa agora. Eu estava chateado, mas já passou...

— Que bom. Sabe Félix, às vezes acontecem coisas que nos deixam tristes, mas o tempo é a melhor cura para a tristeza. Temos que nos apegar ao que nos traz alegria, não no que nos deixa mal. A vida é muita curta para nos prendermos ao sofrimento.

— Ah, mas pra mim é tão difícil me livrar dos meus demônios.

— Você precisa tentar. Você precisa decidir o que é melhor para sua vida, se apegar ao que te faz feliz.

— Não é tão fácil.

Nicola olhou com uma expressão pensativa para Félix.

— Félix, quer dar um passeio?

— Um passeio?

— Sim, a noite está linda e enluarada, ótima para uma caminhada. Quero te mostrar um lugar.

— E que lugar é esse?

— É um lugar especial, você vai ver. Mas espere que antes tenho que pegar algumas coisas.

Nicola foi até a cozinha e colocou algumas coisas em uma pequena cesta fechada.

— Pronto, agora podemos ir.

— O que tem nessa cesta?

— Coisas que vamos precisar.

Félix olhou intrigado.

— Confie em mim, você vai gostar do passeio.

— Tudo bem, eu confio.

Os dois saíram para a rua. Lá fora o ar estava fresco e no alto do céu a lua brilhava majestosa. Félix e Nicola caminhavam com tranqüilidade, como se aquela noite fosse durar pelo resto de suas vidas. Momentos depois, chegaram próximo da Torre Eiffel, que quase poderia competir em brilho e beleza com o luar daquela noite.

— A torre Nicola? Mas eu já a conheço.

— Sim, todos a conhecem.

— É linda não é? – perguntou Nicola.

— Sim, eu nunca tinha visto tão bonita como hoje. E essa lua no céu... acho que também nunca a vi tão brilhante assim.

— Mas ainda não chegamos ao lugar que quero te mostrar. Vem, vamos por aqui.

Nicola levou Félix até uma construção abandonada. E o guiou por uma escada.

— Vem, vamos subir, é um pouco alto. Será um pouco trabalhoso subir todas essas escadas, mas valerá a pena.

Félix não se importava, naquele momento iria para onde Nicola o levasse. Subiram vários andares até alcançarem o telhado. Lá em cima, Félix não podia acreditar no que os seus olhos viam. De lá tinha uma vista ampla de praticamente toda Paris, a torre se erguia imponente e iluminada. A lua no céu parecia estar ao alcance do toque de sua mão. Ficou e extasiado com tamanha beleza.

— Nicola... é... é maravilhoso. É incrível, simplesmente incrível.

A exuberância daquela vista era coroada pelo belo sorriso que Nicola tinha no rosto e o brilho da lua que refletia em seus olhos.

— Eu sabia que você iria gostar.

Os olhos de Félix estavam marejados, não pode deixar de se emocionar diante de um cenário tão belo e de um gesto tão delicado.

— É lindo, esse momento, esse lugar... é tudo tão... sublime.

— Eu queria te dar esse momento como lembrança, para que você nunca se esqueça de mim, mesmo que você vá embora para sempre.

— Por favor, Nicola, não me lembre de que eu irei embora, não agora.

— Está certo. Vem vamos nos sentar aqui. Você me perguntou o que eu tinha na cesta. Aqui está.

Félix riu quando Nicola tirou uma garrafa de vinho e duas taças da cesta.

— Ai que maravilha. Nada poderia ser melhor nesse momento que um ótimo vinho.

— E esse é excelente, minha tia me deu de presente quando fiz vinte e um anos, ela disse que era para guardar para um momento especial.

Félix sorriu enquanto se sentava ao lado de Nicola, que já havia aberto a garrafa e enchia as taças de vinho.

— Vamos fazer um brinde?

— A que brindaremos, Nicola?

— A esse encontro, a memória, a liberdade...

— Ao nosso encontro, a nossa memória e a ... – Félix hesitou – e a nossa liberdade.

Tocaram as taças e beberam o vinho, com os olhos totalmente perdidos um no outro.

— Félix, eu não sou um homem de esconder o que sinto. E... mesmo que... – Nicola olhou para o céu, em seguida fitou os olhos de Félix – mesmo que jamais nos encontremos novamente, mesmo que nosso encontro tenha sido breve, eu quero que saiba que eu gostei muito de você. É estranho, porque você apareceu de repente na minha vida, como que por encanto. Mas eu me sinto com se já te conhecesse desde sempre.

Félix ouvia, fascinado, as palavras de Nicola. Fez menção de dizer algo, mas Nicola continuou:

— Eu nunca senti algo assim por ninguém. Sabe, as pessoas veem esse tipo de sentimento como um pecado, ou algo sujo... mas... eu não acho que o que eu sinto aqui dentro – Nicola tocou o peito – seja algo impuro. O amor não pode ser algo impuro, Félix.

— Amor?

— Sim, amor. Você pode achar insanidade, porque mal nos conhecemos, eu não sei nada sobre você e talvez nunca mais a gente de encontre, mas eu quero que saiba que eu nunca esquecerei você.

Félix não pode mais segurar a emoção que sentia, brotaram lágrimas de seus olhos. Perguntava-se por que o destino o trouxera até ali. Sentia-se como Tântalo que tinha fome, mas o fruto que a saciaria estava ao mesmo tempo tão próximo e tão fora de alcance.

— Por que está chorando Félix, o que eu disse de errado? Eu te ofendi ao falar de meus sentimentos?

— Não, não. Na verdade eu nunca vivi nada tão maravilhoso, e a verdade é que eu me sinto da mesma forma. Eu não tenho... palavras pra descrever o que sinto, mas é que... – Félix olhava paro o lado - isso é apenas um ilusão, nunca poderá ser real.

— O que eu sinto aqui dentro é muito real, Félix.

— Eu sei, é que...

— Sssshh – Nicola lhe tocou levemente os seus lábios – Não diga nada.

Nicola tocou o rosto do amado com as duas mãos e lhe beijou delicadamente os lábios. Félix fechou os olhos e se entregou ao beijo. Nunca havia tido uma sensação como aquela, nunca havia sentido lábios tão macios e quentes, nunca havia recebido um beijo tão verdadeiro. O beijo delicado, aos poucos se tornou intenso. Ali não havia tempo e espaço que os separassem. Instantes depois, Nicola afastou seu rosto para poder olhar Félix nos olhos.

— Sei que não nos veremos mais, mas agora eu tenho uma doce lembrança para guardar comigo para sempre.

— Eu nunca esquecerei esse momento, Nicola.

— Nem eu, mas antes que nos separemos, quero que faça uma promessa.

— Prometo o que quiser.

— Prometa-me que será feliz, Félix. Eu ficarei tranqüilo sabendo que mesmo longe, você é feliz. Eu não quero que carregue esse semblante triste no rosto.

— Eu serei, prometo – Félix segurou a mão de Nicola que acariciava seu rosto e a beijou.

— Obrigado por me dar a melhor viagem da minha vida, Nicola.

Os dois permaneceram naquele terraço por um bom tempo, conversando sob o luar e aproveitando a companhia um do outro. Nicola encostou a cabeça no ombro de Félix, que pela primeira vez se sentiu a vontade para se abrir e contar sua história, omitindo todas as referências sobre sua época. Seria estranho demais explicar para Nicola de onde ele viera e como chegara até ali, sendo que nem ele mesmo entendia como aquilo acontecia. E ali Félix não se sentia um clandestino, não tinha pressa nem tinha que pensar em explicações. Sentiu-se livre e inteiro.

Félix não percebeu como e nem quando, mas acabou adormecendo. Quando acordou, viu-se em banco de uma praça de onde tinha uma bela vista da torre. Mas ela já não estava mais iluminada, pois a manhã se anunciava. Nicola não estava mais presente. O dia começava em Paris, que quase um século depois não deixou de ser bela como Félix pode notar. Olhou para o céu, não havia mais luar.

“Adeus Nicola, onde quer que você esteja adeus”