Na mansão da família Khoury todos tinham que seguir as regras determinadas pelo patriarca César Khoury. Ele deu aos seus filhos Félix e Paloma uma educação rígida, porém Félix era considerado a ovelha negra da família. César quis que o filho fosse médico como ele, mas o jovem não tinha vocação para a profissão e optou por administração. Já a caçula Paloma herdou o gosto do pai pela profissão e decidiu seguir seus passos. Félix era uma pessoa muito diferente do filho que César idealizava, embora o rapaz tentasse de tudo para agradar o pai. Paloma, entretanto, era a filha querida, estudiosa e inteligente, era o orgulho da família. Não que Félix não fosse inteligente, ele era bastante. Mas para o pai isso não fazia diferença se o filho não se tornou a pessoa que ele imaginava, pois César era um homem rígido e tradicional, que prezava certos costumes.

Certa noite, na mansão dos Khoury, a família se reunia para o jantar. César e a esposa Pillar já estavam sentados a mesma, junto com Edith, a nora do casal:

— Pillar, onde está o Félix que ainda não apareceu para jantar?

— O Félix ainda não chegou, querido.

— Ele avisou que iria se atrasar?

— Não, César, eu mal o vi hoje.

— E para você, Edith, ele falou alguma coisa?

— Ele me disse que tinha uma reunião com o orientador do TCC.

— Reunião... Já imagino a reunião - resmungou César para si mesmo com uma expressão contrariada.

— O que você disse, querido?

— Nada. E onde está Paloma que ainda não desceu?

Neste momento Paloma descia se dirigia para a sala de jantar:

— Já estou aqui, papai.

— Ótimo, vamos começar sem o Félix.

Todos começaram a comer calados, eram assim os jantares na casa da família Khoury. Depois de alguns instantes, César interrompeu o silêncio.

— Paloma, e o resultado do vestibular, quando sai?

— Será divulgado amanhã, papai.

— Tenho certeza de que você será aprovada em primeiro lugar. Você herdou a inteligência do seu pai.

Paloma sorriu satisfeita com o elogio. Naquele momento, Félix chegava em casa indo direto para a sala de jantar.

— Hello, família. Cheguei! Começaram sem mim?

— Você por acaso avisou que iria se atrasar? - César perguntou em tom autoritário.

— Desculpa papi soberano, eu não pretendia me atrasar, eu fiquei preso no trânsito com o celular sem bateria.

— Não tem problema querido, nós mal começamos, sente-se e jante com a gente - interveio Pillar.

Félix deu um passo a frente e já ia puxar a cadeira ao lado de Edith.

— Primeiro vá lavar as mãos, Félix. Não é possível que um homem de sua idade, filho de médicos não tenha aprendido que é necessário lavar as mãos antes de comer.

— Claro papi, é que tô com tanta fome que me esqueci, eu já volto – respondeu Félix sem graça.

Pillar, Edith e Paloma permaneceram caladas, pois conheciam o gênio ruim de César. Minutos depois Félix voltou fazendo piada da situação:

— Voltei, minhas mãos agora estão mais limpas do que o manto da Virgem Maria.

— Tenha mais respeito pela santa, querido.

— Desculpa mami, foi uma brincadeira.

César balançou a cabeça negativamente, enquanto Paloma disfarçava um sorriso.

— Paloma, meu doce, quando eu cheguei ouvi alguma coisa sobre vestibular.

— Sim, o papai tinha me perguntado sobre o resultado. Mas só vou saber amanhã.

— E você acha que passou?

— Eu tô confiante, espero que sim

— Eu tenho certeza que sim, querida, você estudou tanto, merece passar.

— Obrigada, mamãe!

— E sua reunião, Félix? - perguntou Edith.

— Reunião? Ah, a reunião com o orientador... Não foi nada demais, só discutimos alguns pontos da minha monografia.

César observava Félix desconfiado.

— Eu espero que você consiga se formar, Félix. Eu não criei filho para perder.

— Para com isso, César. O Félix é muito inteligente, o trabalho dele será aprovado com nota máxima.

— Assim espero.

— Você vai ver papai, eu serei aprovada no vestibular e o Félix no TCC, o senhor vai sentir muito orgulho dos seus filhos - Paloma falou sorrindo para o irmão que retribuiu e lhe mandou um beijo.

— Está tudo certo com a preparação da minha monografia, papi. Eu estou determinado e eu tenho bastante tempo ainda para me dedicar.

Edith observava a cena com uma expressão de quem achava aquela conversa tediosa, na verdade ela achava toda a família tediosa, com exceção de Félix, por quem nutria uma espécie de paixão doentia.

— Eu espero que isso aconteça, porque eu sempre paguei os melhores cursos para vocês e tenho direito de exigir um retorno. Agora vamos jantar em silêncio.

No dia seguinte, os Khoury se reuniram para o café da manhã, Paloma desceu as escadas correndo e foi para a mesa onde seu pai e sua mãe esperavam-na.

— Papai, mamãe, eu passei, eu passei!!! Fiquei em primeiro lugar!!!

César imediatamente se levantou para abraçar a filha, com um sorriso enorme que raramente aparecia em seu rosto.

— Meus parabéns minha filha, eu tinha certeza que você seria a primeira.

Pillar se levantou para cumprimentar a filha. Félix e Edith chegavam naquele momento. Félix felicitou a irmã com alegria, enquanto a esposa apenas a cumprimentou cordialmente.

Passado o momento de euforia, todos se sentaram para tomar café. César pediu que todos fizessem silêncio porque ele tinha um comunicado para fazer:

— Bom, eu tinha certeza que Paloma seria aprovada e para comemorar, além do carro que eu te prometi, você vai ganhar uma viagem.

— Uma viagem, papai?

— Isso mesmo, minha filha.

Félix não pode deixar de sentir um pouco de ciúme da irmã, lembrou-se de quando prestou o primeiro vestibular para medicina e foi reprovado, depois de três tentativas frustradas acabou optando por administração, por achar que com essa profissão poderia ajudar a administrar os negócios da família e agradar seu pai.

— Parabéns, irmãzinha! - disse Félix com um sorriso singelo.

— E pra onde será essa viagem, pai? Eu posso escolher.

— Não querida, na verdade eu já escolhi. E não pense que você irá sozinha, eu e sua mãe iremos com você. E o Félix e a Edith também se quiserem.

— Nós também, doutor César?

— Sim, vocês logo comemorarão mais um ano de casados, a Paloma passou no vestibular, eu e Pilar não viajamos há um bom tempo, então é um bom momento pra reunir a família. Será uma viagem de umas duas semanas, acho que não vai atrapalhar os estudos do Félix.

— E o Jonathan? Ele vai com a gente, papi?

— Não, não acho que Paris seja um lugar muito divertido para criança. Além disso ele está gostando muito na fazenda da minha irmã.

— Ai Paris?! Paris, Paris!!! Eu adoro Paris!!! – Félix gritou eufórico batendo as mãos - Nossa papi soberano, que presente maravilhoso!

— Não precisa se empolgar tanto, Félix. Essa viagem não é um prêmio para você e sim para Paloma, mas acho que será bom se todos nós formos.

— Será ótimo pra Paloma ir a Paris, respirar um pouco de moda europeia, você tá precisando mesmo renovar seu guarda-roupa meu doce.

— Ah Félix, eu me sinto bem da maneira que me visto tá? - retrucou Paloma - Papai, adorei a ideia, tenho certeza que será uma linda viagem.

— Eu também gostei, faz tantos anos que não vou a Paris, acho que a última vez que nós fomos foi quando Paloma tinha uns dez anos, não é César?

— É verdade, faz muito tempo.

— Será ótimo viajar em família, faremos muitas compras juntas Paloma - Edith estava sendo parcialmente sincera, ela adorou a ideia de ir para Paris, mas não gostou da ideia de viajar com a família do marido.

— Bom, não se fala mais nisso. Vamos terminar logo o café da manhã, porque eu preciso ir para o hospital e você também Félix.

— Ai papi, será que o senhor não pode me dar uma folguinha? Eu tenho muita coisa pra estudar.

— Eu construí o patrimônio da nossa família porque eu não tirava folguinhas, Félix. Além disso você disse que está tudo certo com seu trabalho, então você pode ir para o hospital comigo. Você não é mais um moleque, você é um homem e quero que comporte-se como tal.

— Tudo bem, papi. Já entendi.

A noite Félix e Edith se preparavam para dormir.

— Foi muita gentileza do seu pai nos oferecer essa viagem, Félix.

— É, mas ele fez isso mais pela Paloma, que é muito apegada a família. O papi nunca fica animado com nada que eu faça, acho que ele nunca engoliu o fato de eu não ter me tornado um médico.

— Acho que tem um monte de coisas sobre você que seu pai nunca engoliu, Félix.

— O que você está querendo dizer com isso, Edith?

— Nada não, mas não é segredo pra nós que a Paloma é a filha favorita. E você é a ovelha negra da família.

— Não precisa jogar isso na minha cara, criatura.

— Ai mas vai ser tão bom viajar, faz tempo que não viajo. E você tem estado cada vez mais distante Félix, pelo menos em Paris poderei me divertir.

— Olha, mas eu devo ter feito tapete com o manto da virgem pra ouvir um absurdo desses! Edith, você sabe que o papi soberano exige muito de mim.

— É, eu sei que você não pode decepcionar seu “papi soberano” – ironizou - Quero ver até quando você vai manter essa farsa.

— Que farsa, Edith? – Félix perguntou intrigado – Aonde você pretender chegar?

— Em lugar nenhum Félix, vamos dormir – Edith se ajeitou no seu lado do cama e Félix permaneceu sentado e pensativo por alguns instantes. Balançou a cabeça como se quisesse afastar os pensamentos, apagou a luz do abajur e se deitou.

Alguns dias depois a família Khoury chegou a Paris. Nos dois primeiros dias passaram a maior parte do tempo juntos, visitando pontos turísticos e restaurantes refinados.

Félix estava gostando da viagem, mas aos poucos começou a sentir que faltava alguma coisa. Ou talvez sobrasse. Queria aproveitar sua estadia na cidade ao máximo, porém Edith só pensava em desfrutar de restaurantes luxuosos e fazer compras em boutiques caras. Félix até gostava de se esbaldar nas lojas, mas queria respirar a cultura do lugar, aproveitar tudo que uma cidade como Paris tinha a oferecer. Mas o comportamento de Edith e a rigidez do pai, que nem durante uma viagem em família deixava de lhe fazer cobranças, não permitiam que Félix curtisse a cidade como queria.

A situação ficou pior quando os Khoury encontraram um casal de amigos de César, que também frequentavam o hospital San Magno. Foi aí que César não o deixou mais em paz, pois queria que o filho e nora fizessem as vezes de anfitriões para os filhos do casal, que tinham a mesma faixa de idade.

No terceiro dia Félix já estava odiando a viagem, era extraordinário pensar que estar em Paris pudesse ser algo desagradável. A noite os Khoury haviam acabado de jantar com os amigos no restaurante do luxuoso hotel em que se hospedavam. Félix não poupou o filho mais velho do casal com suas piadas ácidas, pois o rapaz era um tipo pedante que ele não suportava. Já estava saturado de tudo aquilo, não viajou a Paris para bancar a babá de amigos do seu pai. Após o jantar, César chamou Félix para conversar e o repreendeu severamente por o envergonhar perante seus amigos. Para coroar a noite, teve um discussão com Edith quando foi pro quarto, pois ela queria ir a uma festa com os filhos do amigo de César e Félix não estava nem um pouco disposto a suportar aquela gente pelo resto da noite.

Ele já não aguentava mais tantas discussões e cobranças. Resolveu sair sozinho para espairecer, deixou o hotel e saiu andando sem rumo pelas ruas.