Cigarros apagados e estrelas acesas sabor nicotina

Uma torção leve nas sobrancelhas.

Uma torção leve nas sobrancelhas, outra nos lábios e apenas isso foi a reação que Heiwajima Shizuo entregou a Orihara Izaya naquela silenciosa madrugada de terça-feira de início de primavera. Sem gritos, sem objetos voadores, sem lâminas, sem rugidos ou ameaças, apenas um quase suavemente franzido cenho que não dificilmente poderia ser julgado como um leve incômodo. Nada demais, nada intenso. Sequer milímetro de semelhança com a expressão que o homem mais forte de Ikebukuro normalmente vestiria ao fitar o informante mais ardiloso de Tóquio acomodar-se tão relaxadamente em um dos bancos de metal da praça central de Ikebukuro, seu distrito.

Talvez fosse culpa da noite. Madrugada tão estrelada quanto poderia ser uma madrugada daquela metrópole, a primeira pontuada por estrelas depois de semanas nas quais apenas luzes elétricas brilhavam em Ikebukuro. Talvez fosse o parque. Tão silencioso que quase fazia-se ouvir a lenta preparação das flores de cerejeira para o desabrochar dali algumas semanas, tranquilo como se cobrisse-se de etereadade. Talvez fosse Orihara Izaya. Postura tão despreocupada, olhos perdidos nas raras estrelas, expressão despretensiosa, cigarro encaixado frouxo em uma das mãos que pendia sossegada para além do encosto do banco. Talvez fosse ele mesmo. O sorvete que há pouco tomara, o dia anormalmente pacífico no distrito sempre anormalmente caótico, o jantar sorridente com Tom, a ligação interessada de Kasuka. Talvez uma mistura de tudo ou talvez alguma loucura que não pertencia a nada... Mas, naquela madrugada de terça-feira que mal havia nascido, Heiwajima Shizuo, sem nada no peito além do ar nos pulmões e nada nas mãos além de um guardanapo de papel amassado, recostou-se tranquilo no mesmo banco de metal no qual deitava seu pior inimigo e encarou sem ódio o sorrisinho discreto em seus lábios.

— O que está fazendo em Ikebukuro, verme?

Os olhos castanho avermelhados que fitaram-no não mostraram surpresa, a expressão relaxada não franziu sequer centímetro e o corpo jogado como se em sono não moveu-se nem que um pouquinho. O homem mais forte de Ikebukuro poderia – inegavelmente poderia – ter estranhado a reação tão pouco exaltada se não estivesse ele mesmo também tomado por aquela estranheza que parecia haver em Izaya, estranheza mesma que fez com que seu próprio tom, ainda que tão alta na praça tão quieta, soasse tão pouco ameaçadora.

— O que parece que estou fazendo, Shizu-chan?

A voz, sussurro que quase obrigou-o a inclinar-se em direção aos lábios donos do pequeno sorriso, arrastou-se preguiçosa pela madrugada silenciosa, alongando-se, demorando-se como um bocejo, quase arrancando de Shizuo um muxoxo irritado. Não reclamou, contudo, por mais que odiasse ter suas perguntas respondidas com outras perguntas e suas supostas ameaças recebidas com bocejos. Não era, afinal – e ele havia entendido isso antes mesmo de perceber que havia algo a ser entendido – aquela uma noite para ameaças e rugidos. E, sem elas, apenas sinceridades latente depois de um olhar atencioso ao rapaz deitado do banco restavam-lhe:

— Fumando.

— Pois é exatamente o que estou fazendo, Shizu-chan.

“Mentiroso” – pensou em rebater, o muxoxo irritado coçando em sua garganta, ignorante da ironia que havia em ser o xingamento a quase escapar-lhe tão diferente dos que costumava a dirigir ao rapaz ao seu lado – “Você só está segurando” – acrescentaria logo em seguida, os olhos fixos no cigarro apagado pendendo bambo por entre os dedos indicador e médio até quase escorregar para fora deles.

Não disse nada, contudo, mas, ainda que sem sua intervenção – e como se para prova-la desnecessária – Izaya levou lento o cigarro aos lábios, tragando-o fundo mal tocara o filtro branco.

— Precisa acender. – afirmou, contrariado, dividido entre o desconforto de assistir o cigarro sem brasa ser tragado tão enfaticamente e a necessidade quase urgente de nicotina que nascia em sua garganta ao ver o perfeitamente longo e recheado cilindro branco tão intocado.

— Ainda não. – retrucou a voz baixa, truncada pelo cigarro apertado pelos lábios finos.

Observou-o confuso, piscando para ele algumas vezes. Não havia o que esperar, nunca havia. O cigarro apagado nos lábios não era etapa alguma do fumo, o sorver tão concentrado do tabaco sem fogo não era enquadrado na atividade “fumar”. Seu estômago reclamou em aflição, revirando-se desconfortável, tornando-o incapaz de decidir se a estranheza a progressivamente invadir seus pulmões vinha do rapaz ao seu lado, da expressão séria em seu rosto, do descostume de encará-lo daquela forma tão próxima ou da própria ânsia por nicotina.

Acendeu um cigarro, por fim.

— Ah, Shizu-chan, que desonesto! Era a minha vez!

Era suposto, talvez, que aquela fosse uma provocação. Não era, contudo, fácil ao guarda-costas então preenchido por nicotina discernir se assim soavam a voz tão relaxada que o alcançava e os olhos tão despreocupados que o fitavam.

“O cigarro está contigo, pulga. Acenda de uma vez, caralho!” – pensou.

— Você não fuma. – disse.

— Não fumo.

A confirmação, jogada tão relaxada em direção ao céu estrelado na forma de um suspiro, quase fez com que Shizuo risse. Era absurdo o informante dizer exatamente aquelas palavras enquanto expirava falsa fumaça de cigarro apagado. Uma contradição tão falsa quanto a fumaça que ele soltava e, ao mesmo tempo, tão verdadeira que Shizuo sequer se condenaria caso não conseguisse segurar o riso.

Não riu, contudo, e nem Izaya pareceu esperar que ele o fizesse, levando mais uma vez o cigarro apagado aos lábios enquanto o guarda-costas engolia em seco a própria fumaça.

— E nem entendo por que alguém fumaria. – resmungou, visivelmente frustrado, e por mais que devesse, Shizuo não surpreendeu-se ou incomodou-se ao ver-se atento às palavras dele, a conversa que tanto deveria ser-lhe impossível e inaceitável arrancando dele apenas curiosidade inofensiva – Eu entendo, na verdade. Vícios e escapes. Um consolo, ainda que breve. A fuga tão acessível. A promessa de prazer que tão prático afastará as derrotas cotidianas. Felicidade vendida em pequenas porções individuais é uma maravilha grande demais para que todo mundo consiga resistir, não é?! – o riso nos lábios em volta do cigarro apagado pareceu, pela primeira vez desde que recostara-se no banco de metal, um deboche, uma distorção em perfeito formato de fixação doentia no rosto até então calmo. Não foi o riso, contudo, a preencher a expressão de Heiwajima Shizuo de espanto. Foi, sim, para a estrangeira e quase confortável familiaridade que sentia diante do riso que abriram-se largos os olhos castanhos mel – Mas não entendo de verdade. Não o bastante, ao menos.

— É por isso, então? – perguntou antes de poder conter-se, o cigarro já quase no fim apontando o cigarro ainda apagado, a recém-descoberta sensação remexendo-se desajeitada em seu peito.

A resposta, contudo, à sua renegada pergunta, demorou a alcançá-lo. O silêncio prolongando-se enquanto mais uma vez o cigarro apagado era tragado e a fumaça inexistente expelida. Não era difícil ao homem mais forte de Ikebukuro adivinhar que Izaya ponderava o que deveria dizer, os olhos castanho-avermelhados a olharem-no tão fixamente não deixaram dúvidas quanto a isso. Por fim, em um movimento rápido que tanto contradizia a demora do silêncio estático que até então impunha, Izaya sentou-se, arrancou o cigarro dos lábios e declarou com seriedade que Shizuo sequer esforçou-se para questionar:

— Não. Não é. – por um momento, um breve momento, o homem mais forte de Ikebukuro achou que Izaya acrescentaria algo, os olhos fixos em seu rosto com tanta atenção, tão rápido, contudo, quanto a expressão tornou-se séria, voltou a relaxar-se, sorrindo com malícia e apertando mais uma vez o cigarro no sorriso – Por que você fuma, Shizu-chan?

Fitou-o sério, surpreso, antes de tragar fundo seu próprio cigarro. Não havia percebido que fora o único a fazer perguntas até que Izaya virara o jogo e o questionara. E, por mais boba que fosse a sensação, não pode evitar pensar que, então sim, aquela se tornara uma conversa: dois lados participando, dois lados entregando e pedindo por informações, uma troca. O que, em consequência, o botava bastante consciente de seu atual estado: recostado relaxado num banco de metal no qual sentava-se também relaxado seu pior inimigo durante uma noite anormalmente estrelada de fim de março.

Tragou fundo mais uma vez, percebendo tarde demais que aquele era seu último trago. Na ânsia de aproveitá-lo, prendeu-o dolorosamente em seus pulmões, soltando-o apenas quando já não mais podia mantê-lo. Precisava dele, agora reconhecia. Aquele último trago que definiria se, agora ciente de seu estado, explodiria em ódio e expulsaria aos berros Izaya de seu distrito ou se permaneceria sentado e preencheria apenas de conversa os pulmões.

Sua demora, contudo, provavelmente foi vista pelo rapaz ao seu lado como silêncio permanente ou recusa de resposta e, com um acenar discreto, os olhos castanho-avermelhados desviaram-se de seu rosto para perderem-se em algum lugar longe na praça enquanto mais uma vez Orihara Izaya tragava o inútil cigarro apagado.

Foi, portanto, uma surpresa para ambos quando, junto à fumaça de seu último trago, Shizuo soltou também um:

— Não te interessa, pulga.

Não era uma boa resposta. Ou, antes disso, sequer era uma resposta. Ainda assim, os olhos pontuados por tons rubros brilharam divertidos e os lábios em volta do cigarro moldaram-se em sorriso satisfeito que proporcionalmente intensificava-se quanto maior a careta que moldava-se no rosto do homem mais forte de Ikebukuro.

Com um bufar alto, Shizuo desviou para a praça o olhar, arremessando a bituca do cigarro na direção pouco precisa de uma lixeira. Agora, de lábios vazios, o homem mais forte de Ikebukuro lembrava-se o que fazia na rua àquela hora da madrugada: a bituca displicentemente lançada pertencia a seu último cigarro. E, por mais que agora tentasse se convencer de que recalçara seus sapatos sociais por sentir que havia algo – ou alguém – de errado em seu distrito, verdade era que fora a perspectiva de um café-da-manhã sem tabaco o que o impulsionara porta afora.

A falta de nicotina – ou a perspectiva da falta dela – pesou-lhe indigesta no estômago. Era absurdo, ele sabia, sentir falta dos cigarros quando as pontas dos dedos e da língua mal haviam-se de todo esfriado. Não era, contudo, algo que de todo podia controlar, não quando depositara no tabaco a responsabilidade por mantê-lo parado em estranha conversa com seu pior inimigo.

— Quer outro?

A voz baixinha, arrastada, levou de volta ao rosto de Izaya sua atenção. Os olhos castanho-avermelhados não mostravam-se mais divertidos, nem o sorriso era aquele debochado do qual desviara o olhar, havia, contudo, algo de extremamente provocador na forma como a proposta era feita, uma piada que apenas o informante parecia entender.

Não demorou, contudo, para que também Shizuo entendesse. Bastou um acenar positivo e o oferecimento da palma de sua mão para que, com um incrédulo arregalar exagerado de olhos, o homem mais forte de Ikebukuro compreendesse por que Izaya parecia tão expectante ao oferecer-lhe um cigarro.

— É o único que tenho. – explicou, pousando em sua mão estendida o cigarro que há pouco prendia entre os dentes sorridentes. O cilindro apagado que até então tragava fundo.

O primeiro impulso fora atirá-lo fora, lançá-lo com toda a força que diariamente fazer tremer Ikebukuro para muito além da lixeira para a qual lançara antes a bituca de seu último cigarro. O olhar, contudo, que lhe lançava Orihara Izaya, tão firme que poderia devorá-lo, o impedia de fazê-lo.

O cigarro pousou molhado em seus lábios. Saliva, ele sabia. A prova de que Izaya não sabia o que fazia enquanto sugava tão inutilmente o cigarro sem brasa. Acendeu-o mesmo assim, tragando firme antes mesmo de devolver ao bolso o isqueiro. O pulmão a preencher-se lentamente e a mente a relaxar mais uma vez.

— E você? – perguntou, soltando devagarzinho a fumaça.

— Eu o quê, Shizu-chan?

— Por que você fumaria?

Mal a pergunta escapara, arrependeu-se dela, certo de que Izaya responderia com o eco de sua própria resposta e isso, ainda que merecido, acabaria com toda a calmaria que recebera do cigarro recém-aceso, colocando-o em fúria a correr pelo distrito, os pulmões então a serem preenchidos por ódio, não nicotina.

Izaya, contudo, não o ecoou. Permaneceu, sim, quieto tempo o bastante para julgar que o faria, os olhos outra vez perdidos pela praça. Quando voltou a olhá-lo, contudo, e em seu rosto não havia nada de provocação, Shizuo soube que o que quer que fosse dito ali por ele, seria verdade.

— Eu queria saber o gosto.

Verdade, ele sabia. Mas, ainda que fosse, não era toda ela, e essa era outra das coisas que sabia. E foi, inegavelmente, pela parte da verdade que ficara escondida nos lábios que agora pressionavam-se juntos e nos olhos que desviavam envergonhados dos seus que seus próprios lábios abriram-se em choque e seus olhos arregalaram-se enormes.

Talvez...

Talvez fosse por ele mesmo, pelos dois cigarros que tragara, pelo sorvete que tomara, pela ligação de Kasuka, pelo jantar com Tom, pelo dia calmo. Talvez fosse por Izaya, pelo pequeno pedaço de confissão, pela sinceridade tão boba, pela ingenuidade maliciosa do cigarro apagado, pela postura rígida e pelos olhos envergonhados. Talvez fosse pela praça, silenciosa, sorvendo a conversa entre os dois dos mais fortes homens de Ikebukuro.

Talvez...

Mas talvez algum fez diferença para Heiwajima Shizuo quando pousou devagar o cigarro ainda aceso no banco frio e os lábios ainda quentes sobre os de Izaya.

Um beijo. Dois, se contasse como um segundo o que Izaya iniciara quando fez menção de afastar-se.

Ambos sabor nicotina. Ambos arrancando todo o ar de seus pulmões. Ambos preenchendo-os de suspiros. Ambos suaves demais. Ambos desesperados demais.

Ambos absurdos.

Ambos.

Os dois.

Ambos tão absurdos quanto o “sim, Shizu-chan, esse gosto” sussurrado baixinho em seus lábios antes que dois tornassem-se três.

Depois quatro.

E cinco.

E seis.

E sete.

E oito.

E multiplicassem-se para além das contas.

Tantos quanto eram as estrelas no céu daquele primeiro dia estrelado de início de primavera.

Porque se havia ali culpa, certamente seria daquela madrugada brilhante de estrelas num lugar que tão pouco era acostumado à luz.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.