Cidade Perdida

Presentes e passado


Len POV

A Maga Dourada só não ficou mais surpresa em ver o fragmento, porque eu estava ali, lado a lado com sua amiga. Suponho que nem alguma assombração seria pior do que a minha presença em tal situação.

Ela relutou por um tempo longo demais em sair da porta para nos atender e Miku foi quem tomou a liberdade de entrar, eu segui alguns passos atrás, não queria mais causar sustos. Rin não saiu da porta, endureceu a expressão assim que adentramos o espaço da pequena varanda coberta e paramos frente a frente.

— Tudo bem, Rin, eu mesma trouxe meu novo adubo aqui. Senti a chegada dele na floresta e segui as marcações até o encontrar na casa antiga. – Miku tentou acalmá-la, escondendo a parte de todas as ameaças que recebi. – Acho que você merece saber seja lá o que ele quer.

— Que tipo de magia você tem? – Rin direcionou seu olhar para mim. – Você deveria ter esquecido que me viu, se fosse humano.

A impressão deixada em mim quando ela me mediu de cima a baixo, foi a de que só não bateu a porta na minha cara ou me atacou porque estava junto de sua amiga. Não achei que a ideia de ser morto, mencionada por Piko, fosse por causa dela, mas agora imagino que isso é realmente uma possibilidade.

— Nenhuma. Eu só nasci meio estranho por causa disso. – Apontei para o cristal, que ainda brilhava. Estranho era o jeito mais fácil de explicar e Rin não pareceu nem um pouco convencida. – Minha mãe guardou por anos e descobri que magia pode ser "contagiosa". Acho que é por isso que eu consegui me lembrar no dia seguinte.

— Eu não sei se é apenas isso – Miku se intrometeu, com ar de quem sabia de algo. – Não é tão simples assim.

Ótimo, ninguém confia em mim.

— O quê tem nesse pote? – Rin pareceu um pouquinho menos raivosa, se esforçou muito para esconder, só não o suficiente para me enganar. Se nada humano afeta seres mágicos, ela não precisaria se preocupar com minha bagagem.

— Pudim de laranja. – Sorri, me fiz inocente. Não conseguiu me enganar, ela ficou feliz com isso. Eu entreguei o pote nas mãos dela, que aceitou sem hesitar.

— Ele quer te comprar, Rin! Com um preço injusto! – Miku nos interrompeu, indignada. Até poucos segundos atrás, não imaginei que a garota amoleceria tão rápido. – Não se engane com uma chantagem barata!

— Entrem logo, eu não gosto de empacar a porta desse jeito. – Rin virou as costas para nós dois. – Ele não vai conseguir fazer nada contra nós duas, nem se tentar.

— Da última vez que você botou alguém para dentro de casa, não deu certo no final – Miku continuava reclamando. – Lembra da sua primeira primavera?

— Lembro, mas são situações diferentes – Rin dessa vez exibiu um ar malicioso. – E eu ainda não me arrependi.

Miku deixou clara a sua indignação, mas entrou e me arrastou para dentro pelo braço mesmo assim. Seguiu a amiga até a cozinha simples e pequena, de pouco uso.

— Meu nome é Len – falei, com cautela.

— O meu é Rin – foi tudo o que respondeu, assim como eu.

Rin sentou do outro lado da pequena mesa redonda. Olhou para Miku e para as duas cadeiras sobrando. Me acomodei lentamente, sentindo Miku me queimar.

— Desembucha – ameaçou.

Não pude deixar de notar que uma colher saiu de uma gaveta na cristaleira e veio parar direto na mão de Rin, enquanto a gaveta se fechava, sozinha. Eu teria ficado mais assustado, se não fosse a naturalidade com que fez aquilo, como simplesmente respirar para um humano.

— Ah, Len – Miku mudou rapidamente de assunto –, experimente o primeiro pedaço do pudim. Só para ter certeza, depois daquela sua conversa.

Como não estava em posição de negociar e precisava que confiassem em mim, fiz o que ela pediu, mesmo ciente de que veneno não as afeta. De qualquer forma, eu não seria capaz de tal absurdo e Rin demonstrou uma expressão confusa.

Enfim, eu mal sabia por onde começar a contar a história e o momento não era dos mais confortáveis. E Rin não se importava muito com isso enquanto comia o pudim, alternando entre assisitir nós dois. Até tentou nos oferecer e Miku ganhou um pouco. Eu comia quase sempre e, realmente, preferia bolo.

— Pode começar por como sua mãe conseguiu o fragmento. Se é que isso é verdade – Miku resmungou.

Respirei fundo, já me sentia derrotado.

— Foi no dia em que sua irmã foi atrás de Adamas na cidade. As histórias e lendas sobre magia e seres mágicos são bem famosas lá, então sei de algumas coisas. – Esperei que confirmasse. – Parece que o dragão de alguma forma perdeu isso, um dos ataques dela jogou para longe, perto da minha mãe, que guardou desde criança. Hoje ela entregou para mim, disse que é meu e que sente isso desde o dia em que eu nasci. Aliás, com a Miku, três pessoas já me disseram que deveria pertencer a mim.

O fragmento continuava brilhando nas mãos de uma Miku inquieta. Queria perguntar se a temperatura dele tinha aumentado.

— Não esconda a parte importante – Miku reforçou.

— E contou também que acha que só nasci por causa dele, a gravidez dela foi difícil, que eu deveria ter morrido. Segundo minha mãe, o cristal começou a brilhar e esquentar, e eu sobrevivi.

Pude notar uma Rin confusa, deixando o doce de lado pela primeira vez. Miku se remexeu na cadeira. Ninguém disse nada e eu continuei.

— Também descobri que seus pais não tinham a mesma magia, e que isso não é aceito entre os seres mágicos. Por isso Adamas queria fazer justiça com as próprias garras, e levou sua irmã.

Rin se pronunciou.

— Eu sabia, claro. Mas os dois perderam o direito da magia antes de eu nascer. Só me restou a magia dourada e Lily nunca manifestou uma segunda. – Se encolheu um pouco. Algo no modo como contou isso me disse que Rin não tinha muito conhecimento da própria vida, enquanto Miku evitava contato visual. – Lily disse também que iria se livrar da imortalidade, não queria que Adamas a usasse para sempre. Se não fosse aquele rei metido, ela teria se escondido para sempre e estaria tudo bem hoje.

Então as chances de Lily estar morta são as maiores. Algo estava muito fora do lugar aqui. Me senti mal em continuar falando, Rin não merecia esse caos... Até lembrar da Cidade Perdida e do que Piko me contou.

— Encontrei um livro diferente na biblioteca da cidade que contava alguma coisa sobre a antiga capital – retomei. – Adamas é o "dragão de guarda" de lá, e não encontrei nada concreto sobre as motivações dele.

— Sobre esse livro – Miku interrompeu –, notou algo diferente?

— Parecia que não estava no lugar certo, e não foi escrito por um humano. Não tinha data e nome e nenhuma outra pista além das histórias.

— Pela Deusa... Como isso foi parar lá?!

— É a nova capital, maior, mais rica e movimentada. Parece justo, apesar de suspeito. – Rin deu de ombros, em defesa. – Mesmo que a circulação desses livros não seja permitida aos humanos.

— Ah, e provavelmente tinha data, nomes e detalhes, mas só podem ser lidos por quem entende a escrita antiga e tem acesso ao inventário da Corte, é para preservar quem escreveu – Miku complementou, esfregando na minha cara a minha falta de magia. – Mas como esse livro saiu de lá e foi parar numa biblioteca mundana... chega a ser um pouco assustador.

De repente, eu estava ansioso para falar um detalhe que tinha escondido até então.

— Mas eu consegui ler, ao menos algumas partes. Depois de ler alguns dos textos, as páginas voltaram a ficar em branco. Nunca tinha visto aquela escrita antes, mas não acho que imaginei coisas quando consegui ler.

— Esse tipo de livro? – Rin encarou minha alma.

Houve um silêncio. Daqueles que fazem pensar ter falado algo errado.

— É isso que acontece por deixar livros do nosso mundo circulando no deles – Miku resmungou.

— Tem certeza em insistir que é humano? Sua história não está funcionando – Rin voltou a desconfiar. – Humanos não deveriam conseguir decifrar antigas escritas mágicas, e nem mesmo nós temos acesso a esses arquivos.

— Ele conseguiu, mas não conseguiu logo depois – Miku observou, insegura. – Ele não tem nenhum controle sobre a magia, se não for completamente humano. Não sabe o que está fazendo.

Aquilo começou a acabar lentamente com a minha paciência.

— Também descobri sobre o Guardião Azul. Adamas se rebelou contra ele e já foi mais forte do que o normal para um dragão do tipo e isso preocupava o Ser Supremo.

— Isso não durou muito – Miku continuou suspeita, olhando para fora pela janela.

— Miku – chamei, um pouco impaciente –, desembucha.

Ela revirou os olhos.

— Então não se arrependa depois! Vamos lá. O ser mágico com a magia mais poderosa de todas é quem deve ocupar o cargo de Guardião, foi criado com esse propósito desde Os Primeiros. – Ela se remexeu outra vez, irritada. – Segundo as regras, seres diferentes não podem ficar juntos para evitar a criação de magias incontroláveis e desequilibrar os seres e os cargos, além de que podem ser perigosas.

— Nós já sabemos disso – Rin interrompeu.

— Ninguém sabe exatamente de onde Adamas brotou e onde estava antes do Ser Supremo, mas correu o boato de ser mais forte que ele por um tempo e isso o deixou um tanto revoltado. O Guardião não gostou, e assim ele virou um reles dragão de guarda. – Miku nos ignorou, fez uma rápida pausa para comer sua última colherada de pudim, continuou quando viu que Rin e eu não iríamos interromper mais. – Sei que a magia do dragão foi dividida em duas partes para garantir que não surtasse mais: uma que está aqui, removida pelos pais de Rin antes dela nascer... Não me pergunte como ou o motivo, eu não sei, juro. E a outra – Miku levantou o cordão do fragmento, balançando-o no ar –, Adamas perdeu naquele dia, indo parar com a mãe de Len quando Lily o atacou. Então o dragão nunca foi o Ser Supremo oficialmente e ficou fraco demais. Isso tudo provavelmente está naquele livro, mas a tendência desses livros é esconder coisas importantes para quem não deveria saber.

Por um tempo, tudo o que ouvimos foi o vento nas folhas ao lado de fora. Rin ficou um pouquinho tensa. Por algum motivo que me perturbou, ela não se preocupou em saber como Miku tinha conhecimento de tantas informações que ela mesma reforçava ser confidencial.

— Como assim os pais de Rin? – Eu perdi um pouco a linha de pensamento. – E a outra parte está aqui?!

— Eu não sabia... – Rin justificou, baixinho, olhando para a mesa, perdida. – Eu só vi que o baú com o meu cristal começou a brilhar quando eu senti vocês dois chegando. – O nervosismo era claro em sua voz. – Eu não sabia como ele veio parar aqui ou o que era, só que eu tinha que deixar escondido e longe de qualquer um.

— Eles estão reagindo por estarem próximos – Miku explicou com uma calma repentina. – E tudo bem, você não tem culpa por não saber.

— Faltam detalhes ainda. Por que queriam uma parte da magia do dragão? – Miku escondia muitas coisas com meias verdades. – Ainda não faz sentido.

— Ninguém podia saber de você, Rin, desculpe. Mas sobre o diamante mágico, realmente não sei se foi a intenção, ou não.

— Miku... – ela interrompeu. Suspirou. – Me conta logo, tudo, de uma vez. Dezoito anos de vida, vinte e cinco de imortalidade, e nunca me contaram nada disso?

Suspeito que Miku seja muito mais velha do que aparenta, muitos anos de experiência além dos de Rin, ou pelo menos o suficiente. Ela deve ter me usado como desculpa para contar tudo isso, e me trouxe até aqui por conta própria.

— Eu só sei de mais uma coisa. – Miku olhava para os lados, mexia as mãos com um certo nervosismo. – Sei que magias sem um dono, como o fragmento do Len e o diamante maior que você guarda aqui, não têm muito controle. Nossa magia tem poucos limites e as regras servem para criar algum. Enfim, quando estão sem alguém para controlar, acontece um exagero ou outro. No caso de vocês, para que nascessem vivos e bem, a magia deve ter entendido que deveria fazer parte de vocês, da vida de vocês, porque ela é de onde a nossa vida vem. Ou enfim, vocês ganharam parte dela.

Eu não entendi direito. Meu cérebro deve estar confuso no meio de tanta coisa.

— Miku – Rin chamou, sombria –, você disse "vocês dois".

— Vocês dois carregam parte da magia de Adamas, para resumir. – Miku respirou fundo, massageou as têmporas. – Rin, sua mãe fez a mesma coisa que a mãe de Len... Ela não conseguiria sobreviver, já estava fraca por estar sem a própria magia, mas você, sim.

— Eu tenho poderes? Magia? Daquele dragão?! – perguntei mais para mim mesmo, ninguém me atendeu.

— É por isso que te escondemos por tanto tempo, Rin – Miku continuou. – Você não está de acordo com as leis, isso é um risco para eles, e para você mesma.

Não pode ser. Enquanto as duas debatiam, eu me perdia no que achava ser verdade. É só coincidência, é só por minha mãe e eu termos carregado isso por aí. Não tem como funcionar em humanos. Não deveria ter.

— E a magia dos meus pais...? Se a minha mãe perdeu a magia dela, como eu ainda tenho a minha? – Rin conseguiu me tirar do meu transe. Essa dúvida era importante.

— Ah, sim, mais uma coisa, Rin. – Miku riu, nervosa. – A magia do Feiticeiro de Luz está aí também. Magia nasce com você e nunca vai embora, alguns só tem o uso bloqueado, como foi o caso dos seus pais e da Lily, que nasceu com a magia dos dois, mas perdeu a do seu pai logo em seguida. Você nasceu depois disso e ninguém descobriu ou suspeitou, já que sua mãe não deveria mais ser capaz de gerar vida sem seus poderes e precisou de uma ajudinha extra, então você tem além da magia dos seus pais, a de Adamas. Precisa ser segredo, ou sabe lá o que farão com você.

Rin se apoiou sobre a mesa. Conforme escutava, percebi que por mais que Miku fizesse todas as revelações possíveis, era somente para Rin, e eu ainda não sabia de tudo ou dos detalhes. Miku voltou a me encarar, finalmente.

— Então sim, Len. Você deve ter uma parte da magia de Adamas também. Meio humano. Meio parte magia de dragão misterioso.

Não respondi, não pensei em nada. Ignorei até que Miku não perdeu a chance de implicar comigo. Rin levantou, o som da cadeira arrastada para trás ecoou.

— Meu pai era o primeiro dos 3 únicos Feiticeiros de Luz – começou. – O mais forte.

Aham – Miku confirmou sem hesitar.

— Minha mãe era uma das últimas Magas Douradas, a magia mais poderosa e antiga entre as protetoras que restaram desde a falência da capital antiga. – Rin ia por partes e Miku confirmando. – E agora eu sou a última.

— Também.

— Adamas tinha um poder que superou o do Guardião Azul, o primeiro Ser Supremo.

— Isso mesmo, mas não durou muito.

— Eu tenho todas as três magias. Todas as três magias mais fortes que restaram.

— Exatamente.

Eu liguei os pontos. Se o cargo deve ser ocupado pelo ser mágico com a magia mais poderosa entre todas…

— Rin – eu chamei, esperei que ela jogasse a conclusão em nós, mas voltou a se sentar, pálida. Se entendi bem, quando uma magia mais forte nasce, ela toma o lugar da anterior automaticamente... – Esse tempo todo, você é o Ser Supremo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.