Cidade Perdida

A visão do sangue


Cidade Perdida, 1674,

Rin POV

Dois anos enfim haviam se passado, desde que Lily, minha irmã mais velha, foi levada para sempre. A típica neve do meu aniversário escurecia ainda mais o final da tarde. Unida ao vento frio uivando ao passar pelas frestas da janela que eu demorava a consertar, o ambiente a minha volta era assustador.

Dois anos completamente isolada. A maior distância que percorria era 7 minutos, até a casa de uma amiga próxima. Anos melancólicos, onde fiz todo o esforço possível para mesmo assim completar o mínimo necessário até o dia de hoje, inclusive nos piores dias. Desse momento em diante, possuiria uma eternidade para me recuperar do luto e focar em melhorar minhas habilidades e deveres.

O ritual exigia no mínimo duas testemunhas, no máximo quatro, todas familiares ou amizades de extrema confiança, nível de vida ou morte. Na verdade, eram mais uma garantia de que nada correria mal, ou mesmo um suporte emocional. Miku e Luka eram minhas únicas escolhidas, e únicas opções, plantaram seus corpos atrás de mim. Eu, de costas para as duas, vendada de branco e de vestes vermelhas como dizia a tradição. Um modo de ser identificada no "outro lado", mas não identificar nada nem ninguém: é o que dizem.

A adaga de diamante da minha família era tão antiga que ninguém reconhecia suas origens exatas. Todas as magas protetoras (ou magos, mas são mais raros) possuem uma para suas linhagens, usadas para este final. Não nascemos imortais, como os magos puros e feiticeiros. Alguns de nós vem do sexo, e nascemos e crescemos até certo ponto como os humanos, mesmo os que vem da matéria da nossa magia, como no caso de casais iguais. Tudo isso é feito para nos aproximar daqueles que devemos proteger, um dever que nasce conosco e é parte da nossa natureza. Inclusive, a experiência de "morte" e dor pela adaga, também têm esse propósito.

O ritual é simples e curto, datado no aniversário de quem for realizá-lo, por volta da mesma hora do nascimento. Primeiro, um corte diagonal na palma da mão esquerda que irá agarrar a bainha da adaga apontada para o coração. Minhas amigas pareciam tensas, mesmo já tendo presenciado minha mãe e irmã no mesmo processo. Eu nunca senti tanto medo em toda a minha vida, minhas mãos tremiam tanto que temia errar meu coração, por mais que disfarçasse para que não fosse visível, com ambas as mãos apertadas em torno do cabo e braços colados ao meu corpo ajoelhado.

Tinha de ser eu mesma, minhas próprias mãos. Se fosse qualquer outra criatura, ao invés de retornar imortal, eu morreria sem volta. Recebi a instrução de contar os segundos de dor, talvez até minutos, até ficar inconsciente. Nunca passaria de 5 minutos, e se fosse de uma linhagem forte, poderia ser bem menos. Me disseram que minha mãe contou 1 minuto e Lily apenas 30 segundos, respirei fundo. A voz de Miku transparecia uma tensão que era típica dela, mas Luka também estava nervosa, algo raro, que me fez esperar por mais alguns segundos. Senti uma gota do meu sangue pingar da minha mão ao chão.

Por que? De todas as coisas do meu mundo, essa também me incomodou. Sentiria essa única dose de dor, e depois nada nunca mais me faria mal, na teoria. Deveria ser um sacrifício digno de seus propósitos, mas por que eu sentia tantas coisas fora do lugar?

Algumas lágrimas começaram a umedecer minha venda. Antes de qualquer outra hesitação, cravei de uma vez a lâmina em meu peito. Ouvi apenas o susto de Miku junto ao meu grito esganiçado, contei 2 segundos e apaguei. Não me lembro de nada até que...

Abri os olhos enfim livres a tempo de ver a lâmina ainda vermelha, não pelo meu sangue, mas pela cor que o diamante tomava pelo ritual. O rasgo no meu vestido estava ali, mas nem uma gota do meu sangue fora a do corte da minha mão na bainha e a do chão. Sem marcas no meu corpo, nem mesmo cicatrizes antigas de peripécias da minha infância: eu havia renascido de corpo e alma. A adaga estava estranhamente longe de mim, parecia ter sido jogada para lá. Miku e Luka choravam de alívio e medo comigo nos braços, murmurando alguma coisa sobre nunca ter sido tão rápido, que eu era forte.

Por que tanto medo e lágrimas, então?