Chrono Crusade - After Heaven

Capítulo 6 - Apanhada...? Part II


Foram os instintos que lhe valeram.

Num segundo, estava debaixo da cama. Tentou controlar a respiração para que não dessem por ela, mas amaldiçoou as botas que tinham ficado caídas no chão.

– Estranho. – murmurou a freira para si mesma, ao ver as botas. Mas não pensou muito nisso. Pegou nas botas e arrumou-as no mesmo canto. Como fazia todos os dias, pegou na vassoura e começou a varrer aqui e ali mas não muito detalhadamente.

O que deixou Rosette aliviada pois, se a freira varresse debaixo da cama, ela estaria feita.

Continuando nas suas lidas, a rapariga pegou num pano e limpou o pó que repousava em cima da cómoda, depois dirigiu-se para o pequeno móvel ao lado da cama mas parou a meio como se tivesse congelado.

– Mas que…? – chocada, ela deixou cair o pano e correu para fora do quarto, deixando a porta escancarada e Rosette suspirou.

Decidiu que era melhor espreitar antes de sair…até ver uma aranha mesmo à sua frente e sair de um segundo para o outro com um guincho. O guincho tinha sido inevitável, para conter o grito. Ainda a rastejar no chão, bateu com as costas na cómoda e aleijou a cabeça.

– Itai! – murmurou ela, levando as mãos à cabeça onde um galo crescia e, ao olhar para a cama, viu o que a freira tinha visto: a fotografia em falta.

Rapidamente, levantou-se, despiu-se, vestiu a farda atual da Ordem e tirou as armas de debaixo da cama mas, quando ia a sair, hesitou. Queria levar as suas roupas. No entanto, se alguém desse pela falta delas, ia ser complicado.

Em conflito consigo mesma, decidiu voltar depois para ir busca-las. Queria estar com ela quando encontrasse Chrno.

Saiu e começou a correr quando ouviu passos ao fundo do corredor. Quando saiu para o sol das sete da madrugada, suspirou fundo.

Estava salva.

Joan estava encarregue de cuidar do quarto da Santa todos os dias de manhã. No entanto, quando entrou lá, não viu a fotografia que a fazia sorrir todos os dias.

A pequena fotografia em tons de sépia era uma das poucas fotografias da Santa e a única que o Convento possuía. Depois da irmã Azmaria morrer, tinham posto a foto naquele quarto e Joan fizera questão de ficar com a tarefa de cuidar do espaço.

Saíra imediatamente para chamar a irmã Charlotte. Agora, com a superior ao seu lado, ambas olhavam, incrédulas.

– Quem seria capaz de tirar a fotografia? – perguntou Charlotte indignada, fazendo o sinal da cruz com a mão direita.

Lembrando-se de outra coisa, Charlotte sentou-se na cama e abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira mas encontrou-a vazia.

Joan teve de agarrá-la para Charlotte não cair no chão num gesto demasiado dramático. – Irmã Charlotte! O que se passa!?

Abanando a mão em frente à cara de Charlotte, Joan sentou-se na cama também.

– Joan. – começou Charlotte recompondo-se – Com certeza tens conhecimento do colar único que a irmã Rosette usava.

– Mas é claro. – confirmou Joana. Ela própria tinha um exemplar.

– Depois de a irmã Azmaria morrer, as outras irmãs decidiram guardar o relógio em vez de o enterrar com ela. – a revelação chocou Joan que começou a olhar em volta como se procurasse o relógio – Estava aqui. – Charlotte apontou para a gaveta fazia chamando a atenção a Joan – Mas desapareceu! O que é que aconteceu!?

Joan deixou de respirar por momentos. Não só a fotografia, mas também o colar tinha desaparecido…quem teria tido a coragem de roubar as coisas da Santa!

Rosette entrou na cantina.

Sabia que Joshua devia estar preocupado e estava a abusar da sua sorte ao passar ali tanto tempo. Mas tinha de descobrir mais coisas antes de começar a procurar Chrno.

Sentou-se na mesa dos seladores que já tomavam o pequeno-almoço e sorriu.

– Claire! – Rosette achava amoroso o facto de Myriam ficar sempre tão contente por vê-la – Tens que me dizer onde é o teu quarto! Podemos fazer uma festa de pijama!

– Bom dia, Christian. – cumprimentou Bobby claramente arreliado.

A conversa leve continuou durante um bocado e, apesar de estar a dar o seu melhor, desta vez Rosette demorou mais tempo a chegar onde queria.

– Então, como é que vocês selam? – perguntou Rosette fingindo-se ignorante – Não há, tipo, demónios muito fortes no Pandemonium?

– Mas é claro! – confirmou Myriam – Mas as rezas que aprendemos a fazer também são muito poderosas.

– Como é que podem ter a certeza que eles não partem as barreiras? – continuou Rosette.

– Então, o Pandemonium é lá em baixo. – Yura apontou para o chão – O que nós fazemos é criar barreiras estratégicas por toda a cidade para os impedir de sair.

– E se…

– Elas são à prova de tudo. – interrompeu Bobby que começava a ficar farto das perguntas – Nós baseamos as nossas pesquisas num demónio chamado Aion.

Rosette arregalou os olhos ao ouvir o nome. O ódio e a raiva apareceram tão rápida e surpreendentemente que até assustaram os seladores à sua volta.

– Clai…re…? – as mãos de Myriam estavam a tremer – Estás bem?

– Onde é que ele está? – murmurou Rosette num tom baixo e ameaçador.

– Quem? – perguntou Myriam preocupada com Rosette.

– O Aion! – gritou Rosette batendo com o punho na mesa – Onde é que ele está!?

– Está…está…preso… - gaguejou Myriam – Pelos selos, no Pandemonium. Foi o que nos disseram.

– “Foi o que nos disseram”!? – Rosette levantou-se abruptamente, deixando cair a cadeira – Como é que têm a certeza que ele está lá em baixo!?

– Disseram-nos que foi a irmã Azmaria que o fez. – respondeu Yura que estava mais calma que Myriam – E morreu no processo.

O ódio e a raiva desapareceram num piscar de olhos. – A Azmaria morreu para selar o Aion?

– Sim. – confirmou Myriam, agora mais descansada ao ver a fúria a desaparecer.

– Que idade é que ela tinha? – perguntou Rosette. Tinha de saber.

– Vinte e dois anos. – respondeu Yura num tom soturno.

– Vinte e dois anos. – repetiu Rosette com o olhar vazio, a voz monótona – Podem desculpar-me? Eu não estou a sentir-me muito bem. Preciso de apanhar ar.

Rosette levantou a cadeira, arrumou-a e arrastou-se até ter saído da cantina. Muito devagar, sentou-se nas escadas de pedra e pôs uma mão sobre o relógio.

As lágrimas começaram a correr mesmo sem que ela sentisse. Os soluços vieram depois; tão fortes que abanavam o corpo todo.

Aquela mágoa não ia desaparecer tão depressa, ela sabia-o. Mas, pelo menos, tinha de deixar sair as lágrimas e limpar a alma.

Quanto ao peso no coração…não podia fazer nada quanto a isso. Azmaria tinha morrido para selar Aion…por sua causa!

Pôs as mãos na cara para esconder a vergonha.

– Hei.

Rosette olhou para cima e viu Bobby em pé, ao lado dela.

– O que é que queres? – resmungou ela sem paciência nenhuma para aturar Bobby.

– Porque é que estás a chorar? – perguntou Bobby um bocado chocado.

– Eu…

– Rosette!

Ao ouvir o seu nome, sentiu um misto de surpresa e depois medo ao ver Remmington a aproximar-se.

– O que é que estás aqui a fazer!? – perguntou Remmington parando à frente dela – Eu não te disse para…

Antes que ele tivesse tempo para acabar a frase, Rosette levantou-se e abraçou-o, começando a chorar com mais intensidade. – Padre!

Remmington ficou surpreendido mas, ao ver Bobby, decidiu que aquele não era o lugar certo para falar.

– Anda. – pediu ele encaminhando-a para longe, ainda com um braço por cima dos ombros dela – Vamos para um sitio mais privado.

Deixado para trás, Bobby continuava a olhar para eles com cara de quem não estava a perceber nada.

– Ro-se-tte? – murmurou Bobby – Não era Claire?

A arrecadação onde agora guardavam coisas que já não precisavam mas podiam vir a precisar um dia, já fora o “escritório” de Elder, o velho pervertido que criava novas e melhoradas armas para os exorcistas.

Rosette encontrava-se sentada na relva e Remmington estava acocorado à sua frente.

Ela limpava os olhos mas as lágrimas continuavam a correr, apesar de os soluços já terem acabado.

– Então descobriste, não foi? – Remmington suspirou – Era por isso que eu não te queria por aqui. Vais acabar por descobrires coisas mais dolorosas.

– Conte-me, Padre. – pediu Rosette com os olhos vermelhos – O que é que aconteceu?

– Primeiro, tens de compreender que a Azmaria ficou devastada quando vos encontrou naquela quinta…sem vida. – disse Rammington, aligeirando as palavras para minimizar a dor dela – Anos depois, quando ela descobriu que o Aion estava vivo, ela quase não dormiu até arranjar uma maneira de o derrotar. – explicou ele – Mas nunca foi fácil acabar com o Aion e ele tinha voltado por causa do Joshua e da Azmaria…os únicos apóstolos vivos.

– Mas já não tinham poderes. – lembrou Rosette.

– Eram canalizadores da força divina e, contigo “indisponível”, ele queria arranjar algum plano para usar os Apóstolos restantes… – disse Remmington preparando-se para o que vinha a seguir – …e trazer-te de volta.

– Trazer-me de volta? – perguntou Rosette para se certificar que tinha ouvido bem – Para que é que ele queria trazer-me de volta?

– Tu eras a conexão da terra com o céu e tinhas morrido. Isso era um grande buraco nos planos dele e não haveria outras reencarnações tão cedo. – respondeu Remmington – A Azmaria também descobriu isso e não ficou contente.

– Mas, para morrer…

– Quando ela chegou até ele, ele já tinha juntado um exército de demónios. – disse Remmington – A coisa tornou-se feia quando ele foi atrás do Joshua. No final, ela conseguiu selar o Aion, mas um dos demónios no exército atacou-a pelas costas enquanto ela o fazia.

As lágrimas voltaram aos olhos de Rosette.

– No entanto, a Azmaria não teve tempo de recitar a última reza. – continuou ele – O que resultou num selo fraco. Alguns anos depois eu vi-o em Roma…ele tentou sacrificar o Papa, noutra tentativa para te trazer de volta. Mas ele estava fraco da luta contra a Azmaria e do tempo passado no Pandemonium e eu consegui selá-lo antes que algo de mais grave acontecesse.

– Mas os seladores… - Rosette levantou-se ao mesmo tempo de Remmington – Eles disseram que foi a Azmaria que o selou.

– Eu não disse a ninguém que o Aion voltou a aparecer. – ao ver a cara confusa de Rosette, Remmington decidiu explicar – Tu foste a Santa que se sacrificou para tentar derrotar o Aion, salvar os apóstolos e trazer a paz. Achei que a Azmaria devia ser conhecida por finalmente tê-lo selado.

Rosette anuiu com a cabeça. Era uma boa maneira para que Azmaria não fosse esquecida e, afinal, ela tinha morrido para selar Aion.

– É por isso que não quero que vás atrás do Chrno! – salientou Remmington – Se o Aion já pressentiu a tua presença, vai aproveitar qualquer frecha para te ter de volta!

– Não acho que isso seja totalmente verdade. – murmurou Rosette.

– Ele tentou usar o Papa para te trazer à vida! Achas que ele não está a tentar escapar do Pandemonium neste preciso momento!? – exclamou Remmington – E o que é que te faz pensar que o Chrno se lembra de ti, mesmo que ele tenha voltado? Se não se lembrar, é um poderoso aliado do Aion e um perigoso inimigo para nós…para ti!

– Ele nunca me faria mal! – gritou Rosette com convicção – Ele é…o Chrno.

– E o Jason é o teu irmão. – realçou ele – Mesmo assim, ele não se lembra que foi o Joshua.

– Isso é…

– E o Aion também pode vir atrás do Joshua. – interrompeu Remmington – Afinal, ele agora é só um humano normal, mas não se sabe se ele tem algum poder restante. E se os outros apóstolos também tiverem renascido, esta vai ser uma década muito má.

– A Azmaria…

Remmington não disse nada. Ainda era muito cedo para lhe revelar a verdade.

– Vive a tua vida normalmente, por enquanto. – pediu Remmington – Deixa-me pensar numa maneira para localizar e extrair o Chrno do Pandemonium. – disse ele – Se alguém do Convento descobre que tinhas um contrato com ele, as coisas não vão ficar bonitas. É preciso lidar com isto com precaução.

– Sim. – Rosette concordou, finalmente. Não ia levar a lado nenhum se ela se apressasse – Eu também vou pensar nalguma coisa.

– Mantem-te em contacto mas não te ponhas em perigo. – disse ele – Não podes ser descoberta.

– Eu sei.

Bobby tinha-se escondido atrás da arrecadação para ouvir a conversa mas nunca estaria preparado para ouvir o que tinha acabado de ouvir.

Não sabia o que pensar e, ao ver a rapariga a saltar o portão lateral com uma facilidade incrível, também não sabia o que dizer.

Passo atrás de passo, ele foi para o seu quarto e acabou por pegar no portátil. Escreveu Rosette Christopher e inseriu a palavra-passe que lhe permitia aceder a ficheiros da antiga Ordem.

Não houve surpresas: nascida em São Francisco, 1912; morreu cerca de 16 anos depois devido a um ataque demoníaco. Principio e fim…mas o que estava no meio era o que realmente importava. Viu que ela era órfã, com um irmão que tinha sido raptado por Aion aos 12 anos e controlado por ele durante 4 anos. Depois disso tinha-se juntado à Ordem e, eventualmente tinha-se juntado aos exorcistas. Datas e eventos eram descritos depois disso mas nada relevante…nada que falasse do tal “Chrno”.

Por curiosidade, Bobby pesquisou sobre o relógio. Surpreendido, leu a discrição.

Pelos visto, aquilo não era só um simples colar. Era um objecto que permitia transformar vida humana em energia vital para demónios, logo que se fizesse um contrato entre humano e demónio.

– Morreu tão jovem mesmo pertencendo à Militia. – murmurou Bobby achando que alguma coisa não estava bem, ali. A irmã Azmaria ainda não era da Militia quando selou o Aion e morreu…nem sequer era uma boa seladora – Tirar o Chrno do Pademonium. Isso quer dizer…

Usou o motor de pesquisa novamente e, desta vez, digitou Chrno. Várias imagens e quadros antigos de pintores e poetas apareceram, mostrando demónios horríveis a devorar humanos ou a arder no Inferno.

Tentou aceder aos ficheiros da Ordem, mas a única coisa que apareceu foi uma mensagem a dizer “Warning: you don’t have permission to access this file”. Sabia que dariam o alarme se ele tentasse mais vezes, por isso contentou-se em aceder aos ficheiros do atual Convento.

O conceito era conhecido por todos os alunos. Chrno era uma personagem fictícia inventada pela Igreja para simbolizar o mal.

Bobby acedeu a outro ficheiro a que só os seladores e exorcistas tinham acesso. Este dizia que Chrno era um demónio potencialmente mais poderoso que Aion que originava do Pandemonium. Ele tinha tido contacto com Maria de Magdala que acabara por morrer nas suas mãos. O afastamento entre ele e o grupo de Aion era referido e suponha-se que ele tinha morrido por falta de energia vital, depois de Aion lhe ter arrancado os cornos.

Parecia lógico mas então, porque é que não lhe era permitido aceder aos ficheiros da Ordem?

Com a sensação de que lhe tinha escapado alguma coisa, examinou mais uma vez a história dele e parou subitamente num quadro pintado por um artista da época do contacto de Maria Madalena com os demónios.

Era, claro, uma pintura dramatizada, mas podia haver alguma verdade naquilo.

No quadro, Maria de Magdala flutuava a alguns centímetros do chão, com o cabelo a esvoaçar, asas douradas estendidas e, o mais importante, o braço esticado em direção a um demónio com os cornos partidos que se encontrava ajoelhado à sua frente de cabeça baixa. Apesar de ele não olhar para ela, o seu braço também estava esticado e ambos agarravam o que parecia ser o mesmo relógio que Rosette usara.

A Santa exibia um sorriso suave e os olhos de alguém verdadeiramente feliz. No entanto, o artista tinha pintado lágrimas a descer pela cara do demónio.

Isso era uma estupidez. Os demónios não tinham sentimentos. Pondo o conceito idiota do artista de lado…o que é que Maria Madalena tinha a ver com aquele relógio? E porque é que aparecia no pescoço de Rosette, décadas depois? E o que é que Claire fazia no meio daquilo tudo?

Eram demasiadas perguntas para poucas respostas.