Aphrodite já tinha saído quando acordei. E eu, logicamente, estava atrasada para o café da manhã. Levantei apressada e fui para o meu quarto para fazer minha higiene antes de correr para o refeitório.

O refeitório, geralmente barulhento e aconchegante, estava gelado e silencioso. A maioria dos Novatos pareciam abatidos e amedrontados. Assim que peguei minha bandeja e comecei a andar em direção á mesa dos meus amigos notei alguns olhares curiosos em minha direção, claro, todos já sabiam que eu e Aphrodite encontramos o corpo da professora Nolan. A situação toda era péssima e eu não precisava atrair mais atenção para mim do que já tinha. Meus amigos viram que eu me aproximava e ao contrário do que eu esperava eles me ignoraram completamente. E eu que pensava que os acontecimentos recentes poderia mudar isso.
Assim que me sentei Shaunee e Erin bufaram ao mesmo tempo, Damien só fez uma cara muito, muito triste. Caramba, eu sou mesmo uma droga.
Eu estava abrindo a boca para tentar iniciar uma conversa quanso Jack veio correndo.

— Ah, oi! Desculpe pelo atraso, mas quando estava vestindo a camisa descobri uma mancha horrível na frente. Dá pra acreditar? - disse, enquanto ajeitava sua bandeja de comida para se sentar ao lado de Damien.

— Uma mancha? Não é aquela camisa Armani linda, azul, de mangas compridas, que te dei de Natal, é? - Damien perguntou, abrindo espaço para o namorado sentar.

— Aimeudeus, não! Jamais derramaria nada nela. Adoro aquela camisa e... - suas palavras morreram quando ele olhou para mim - Ah, ahn. Oi, Zoey.

— Oi, Jack - respondi, sorrindo para ele.
— Eu não esperava ver você - Jack balbuciou - Achei que ainda estivesse... Ahn... Bem - ele ficou desconfortável e vermelho quando não conseguiu formular a frase.
— Você achou que eu ainda estava me escondendo no meu quarto?
Ele fez que sim com a cabeça.
— Não. - respondi com firmeza - Cansei disso.
— Nossa que meda - Erin começou, mas, antes que Shaunee pudesse continuar com o deboche de sempre, uma risada primitivamente sensual veio da porta atrás de nós. Então nos viramos para olhar de queixo caído.

Aphrodite entrou no recinto, rindo e piscando os olhos para um Novato sexto formando, ele sorriu de volta e ela jogou o cabelo para trás num gesto gracioso. Uma sensação estranha tomou conta de mim e voltei minha atenção para a salada no meu prato. Apenas escutei quando ela falou:

— O que foi? Parece até que vocês nunca me viram mais linda antes. Que inferno, só fiquei dois dias fora. Vocês podiam ter melhor memória de curto prazo, hein? Lembram de mim? Sou a linda devassa que vocês todos amam odiar, mas não importa.

Para quem não sabia de nada, tenho certeza que Aphrodite soou como a esnobe de sempre, mas eu percebi em sua voz como ela estava nervosa e tensa. Que inferno, eu entendia exatamente como ela se sentia. Na verdade nós meio que estávamos juntas naquela bagunça. Por um momento senti meu estômago vibrar sem saber ao certo o que aquilo tudo significava.
— Achei que ela tivesse virado humana de novo. Mas a Marca dela voltou. - Damien disse baixinho.
— Os caminhos de Nyx são misteriosos - eu disse com um pouco de culpa por mentir de novo. Eu sabia bem que a Marca de Aphrodite era falsa.
— Tô achando que os caminhos de Nyx são outra coisa que começa com M. Advinha o quê? - Erin zombou.
— Maior Zona? - Shaunee respondeu.
— Exatamente. - Erin confirmou.
— São duas palavras - Damien retrucou.
— Ah, não banque o professor - Shaunee lhe disse - Além do mais, o que importa é que Aphrodite é uma megera, e nós bem que estávamos torcendo para que Nyx desse um bom chute nela.

Todo mundo continuou falando sobre Aphrodite, e eu tentei forçar a salada garganta abaixo. Taí, esta era a situação: Aphrodite costumava ser detestável, mas agora eu enxergava outro lado nela, ela estava mudando e se tornando algo importante para mim. Mesmo que tanto eu quanto ela não estivéssemos muito animadas para divulgar isso para as massas. Meus outros amigos, naturalmente, a detestavam, e isso estava começando a me incomodar. Por isso, quando Aphrodite caminhou direto para nossa mesa e sentou ao meu lado, dizer que eles ficaram chocados e nada satisfeitos seria minimizar de modo quase surreal o que estava acontecendo.
— É falta de educação ficar encarando as pessoas, mesmo que seja alguém de beleza estonteante como eu. - a loira disse, começando a comer sua salada.
— Que diabo você está fazendo, Aphrodite? - Erin perguntou.

— Comendo, retardada. - ela respondeu docilmente.
— Isso aqui é zona livre de cachorras - Shaunee falou.
— É, está escrito na placa - Erin apontou para uma placa inexistente atrás do banco em que estavam sentadas.
— Odeio ser repetitiva, mas neste caso vou abrir uma exceção. Então vou dizer outra vez: gêmeas idiotas.
— É isso - Erin disse, mal conseguindo manter a voz baixa - A gêmea e eu vamos arrancar essa droga de Marca da sua cara.
— Quem sabe dessa vez a gente apaga pra valer. - Shaunee falou com maldade.
— Parem com isso! Já passamos por isso antes, vocês concordaram em aceitá-la e em não ficar de xingamentos nem agressões verbais. - praticamente gritei. Quando as gêmeas me olharam, senti um nó no estômago. Aquilo brilhando em seus olhos era realmente ódio?

As gêmeas não disseram nada, mas a voz de Damien, soando inesperadamente fria, veio do outro lado.
— Não concordamos em ficar amigos dela.
— Eu não disse que queria ser sua amiga. - Aphrodite respondeu.
— Digo o mesmo, cachorra! - as gêmeas disseram juntas.
— Okay, já chega! - gritei, atraindo olhares de outras mesas - Vamos, Aphrodite.

Me levantei para sair, diante dos olhares chocados dos meus amigos, fiquei triste ao pensar que nos dividimos tanto, mas ao ver a mágoa no olhar de Aphrodite se transformando naquele olhar misterioso que ela vinha me lançando ultimamente, senti que valia a pena. Meus amigos precisavam aprender a lidar com ela, e já que fizeram questão de me excluir eu e ela sairíamos dali juntas.

Então, depois de colocar nossas bandejas onde deveria, Aphrodite e eu saímos do refeitório sob os olhares incrédulos de toda a Morada da Noite.
Nossa amizade deixando de ser um segredo.
[...]

Aphrodite disse que tinha algo para me mostrar, então eu a segui sem quesrionar. De alguma forma confiando nela mais do que achei possível confiar um dia.
Pensei que íamos para seu quarto, e me surpreendi quando ela me arrastou para o MEU quarto, me empurrando para dentro e batendo a porta com força.
— Tá com pressa, hein? - reclamei - Vai com calma, você tem mil coisas para explicar. Por que entrou aqui? Cadê Stevie Rae? Onde você andou esses dias? Por que você voltou a ser humana? E como... - minha saraivada de perguntas foi interrompida por insistentes batidas na janela.

Aphrodite respondeu tudo com sua arrogância de sempre, atitude que comecei a achar engraçada.
— Primeiro de tudo, você é lerda. Isso aqui é a Morada da Noite, as portas não tem trancas. Segundo, Stevie Rae está logo ali - ela foi até a janela e abriu as grossas cortinas, então olhou pada mim irritada - Uma ajudinha, por favor?
Totalmente confusa, fui até a janela. Foi preciso nós duas para abri-la e quase fiz xixi nas calças quando vi um vulto escalar a estrutura e pular no quarto como uma versão moderna de Dracula.
Decidindo que era mais legal do que macabro, me joguei nos braços da criatura quando percebi que era Stevie Rae. Abracei seu corpo e enterrei meu rosto em seu ombro calorosamente, até perceber que ela não me abraçava de volta.
— Cadê minhas coisas? - sua voz, bem como o rosto, eram pura cólera.
— Meu bem, os vamps pegam as coisas do novato quando ele, ahn, morre.- falei gentilmente.
Ela me fitou apertando os olhos.
— Eu não morri.
Aphrodite veio para o meu lado, como se tentasse me proteger.
— Ei, não desconte na gente, os vamps acham que você morreu, lembra?
— Não se preocupe, eu sei onde está, posso pegar tudo se quiser. - falei rapidamente.
— Até minha luminária em forma de bota de Cowboy?
Assenti, sorrindo.
— Pensei que a morte mudasse a falta de noção de estilo da pessoa, mas não, a porra do mau gosto é imortal.
— Aphrodite, você realmente devia ser mais legalzinha. - Stevie Rae disse com firmeza, seu jeito moralista de sempre se manifestando.
Stevie Rae estava tão normal, tão como antigamente, que dei um gritinho de felicidade e a abracei de novo.
Num acontecimento totalmente improvável e inédito, Aphrodite e Stevie Rae se juntaram para me contar tudo que acontecera nesses dois dias. Aphrodite se aventurando nos túneis com os outros novatos vermelhos e emprestando seu cartão dourado sem limites e o débito automático para que reformassem o lugar, Stevie Rae se adaptando e conhecendo a suas novas habilidades como vampira adulta. Tudo parecia tão normal que eu anulei a parte que minha melhor amiga não parecia 100% controlada.
— Então agora você realmente é humana. - comentei.
— Tô me lixando. - Aphrodite disse com a voz fria e indiferente, mas eu sabia que ela se importava.
— Que bom que você virou humana, e nao boneco de madeira. Porque com tanta mentira, seu nariz teria crescido um quilômetro. - Stevie Rae comentou. Fiquei incomodada por ver que ela também enxergava Aphrodite.
— Lá vem você com sua filosofia de filmes de Sessão da Tarde, não sei porque não morri e fui direto para o inferno. Pelo menos lá eu não seria bombardeada com filmes da Disney.
— Você é tão insuportável, eu deveria ter te devorado quando estava morta.
— Não me admira que Zoey precise mudar de melhor amiga.
— Zoey não precisa mudar de melhor amiga! - Stevie Rae gritou, virando-se para dar um passo em direção a Aphrodite, as mãos tremendo.
Sentindo a cabeça a ponto de explodir, entrei no meio delas:
— Aphrodite, pare de implicar com minha amiga. Stevie Rae, para de ser mal agradecida e trate Aphrodite melhor, ela salvou sua bunda.
— Desculpe, Z. - minha amiga sorriu - Dois dias com Aphrodite me deixou nervosa.
Aphrodite resfolegou, mas não retrucou. Apenas balançou a cabeça e voltou para o assunto.
— De alguma forma eu sou normal, mas nem tanto - ela falou enquanto caminhava para minha cama e se sentava ao lado de Nala - Nyx achou que seria engraçado deixar vocês duas com os poderes legais e não só me transformar em humana, como me deixar com as visões pé no saco.
Me aproximei dela e sentei ao seu lado, só agora notando que depois de sua fachada de gostosona ela estava pálida e tinha olheiras embaixo dos olhos.
— E o que você viu? - perguntei - Sua visão sobre vampiros morrendo está se concretizando, mas talvez possamos mudar essa.
— Vamos mudar. - Stevie Rae disse com convicção - Conte para ela.
Aphrodite respirou fundo e olhou em meus olhos, aquela emoção desconhecida faiscando em seu olhar. Mas dessa vez não era só isso, tinha preocupação também. Contive o impulso de segurar suas mãos.
— Na minha última visão vampiros massacravam humanos matando e humanos matando vampiros em defesa própria, o mundo todo era pura violência e ódio e escuridão. - ela se esforçou para falar com firmeza - E isso tudo acontecia porque você estava morta.

Suas palavras pareciam vidros sendo enfiados em meu coração.
Stevie Rae começou a tagarelar sobre como aquilo era só suposição, como a morte ela foi resolvida e da minha avó e até Heath foi salvo, mas eu estava concentrada em Aphrodite e vi que ela estava inquieta.
— Ah, que inferno. Tem algo de diferente na sua visão, não tem?
Ela deu de ombros.
— Coisas negras e estranhas fervilhavam em todos os lugares, causando medo por onde passavam, mas eu não sei bem o que é porque só me concentrei em você sendo morta. E pelo que entendi, existe duas formas de isso acontecer, é quase como se fosse irreversível.
Engoli com dificuldade, encarar a possibilidade da minha morte sendo mais difícil do que pensei.
— Em todos os aspectos da visão você estava isolada, sem amor, sem amigos. Totalmente sozinha, e isso, de alguma forma, causava sua morte.
— C-como eu morri?
— Foi confuso, ok? Era difícil ver do seu ponto de vista, muita dor envolvida. Mas uma vez era afogada em uma água suja e fedorenta, e você sendo atravessada por garras estranhas. - Aphrodite voltou a me olhar daquele jeito que já estava me incomodando por não entender o significado, quando ergueu uma sobrancelha bem feita e disse: - Parece que você vai superar todo aquele problema Erik/Heath/Loren.

Seu tom de voz não era irônico, ela parecia até meio duvidosa, mas algo em sua expressão me fez querer saber o que ela não estava me contando.

— Sinto muito por tudo isso, Aphrodite me contou o que aconteceu - Stevie Rae comentou.
— É, uma droga. Ele nunca me amou, apenas me usou.
— Para te levar para a cama? Ah, Z., que droga.
— Infelizmente foi mais do que isso, apesar de ter acontecido. Neferet e ele tinham um plano para afastar todos de mim,e isso envolvia Loren me seduzir, e ela foi bem sucedida.- suspirei e levei a mão a testa - Heath era um problema e agora não temos mais nenhuma ligação, Erik saiu magoado depois de me flagrar com Loren e me tratou como uma vadia e meus amigos viraram as costas para mim. Então, agora Aphrodite viu que vou morrer porque estou sozinha. Ah, e a cereja do bolo é estar carimbada com Loren mesmo estando com ódio dele.

Uma mão segurou gentilmente minha mão livre e apertou de leve, era Aphrodite.
— Você não está sozinha.- ela deu um meio sorriso - Stevie Rae está do seu lado, e eu estou e bem, sua horda de nerds vai voltar.
— Não sei, vocês tem seus próprios problemas e eles realmente me odeiam. - funguei um pouco.
Seu sorriso ficou maior.
— Isso não é verdade, você não vai morrer e ainda por cima vai superar isso tudo.

Aquele olhar... De repente era tão aconchegante.

Stevie Rae limpou a garganta e eu me afastei de Aphrodite.
— Então vocês de carimbaram? Merda! Por isso você estava chorando quando cheguei.
— Erik foi cruel - Aphrodite falou com a voz fria - Cruel o bastante para a horda de nerds considerar que ficar com Loren era um tapa na cara deles e que Zoey é uma cachorra, e então explodiu a bomba de que você não estava morta e resultado: Ninguém mais confia na Zoey.
— E assim fiquei sozinha, exatamente como Neferet planejou.

Quando ficou decidido que tentariamos salvar minha vida e o mundo, Stevie Rae precisou ir embora.
— Você pode vir comigo se não quiser ficar aqui fingindo, sério, nos túneis você não precisa fingir.
Fiquei surpresa, mesmo não gostando de Aphrodite, Stevie Rae tentou ajudar. Meu coração inchou de orgulho. Mas o que Aphrodite respondeu me surpreendeu mais do que a oferta de Stevie Rae.
— Tenho que ficar aqui e fingir que ainda sou novata. Não vou deixar Zoey sozinha, mas obrigada, Stevie Rae.
Sorri para ela.
Eu não estava sozinha.
Stevie Rae saiu rastejando pela janela, o que foi totalmente estranho.
Aphrodite e eu nos dirigimos para a porta, mas antes de abrir, Aphrodite me deteve e disse:
— Fica de olho na sua amiga, tô ligada na cena que ela está armando. Sei que você acha que ela está apenas um pouco diferente, porque morreu e tudo mais, mas não é só isso. Ela tem poder agora e o poder muda as pessoas, tenha certeza que ela está mudada.

Sem acrescentar nada e nem esperar por uma resposta minha, ela abriu a porta e deu de cara com Damien, Jack e as gêmeas.