Era uma noite de lua minguante. Passos apressados se confundiam com o barulho das gotas torrenciais que caiam sobre aquela cidade.

Um grito de dor sufocado pela falta de fôlego... Lágrimas que tentavam se fundir com a chuva, mas que eram densas demais para lhe restarem nos olhos. Nas mãos apertava folhas de um caderno já estragado pela água.

Ter achado aquela espécie de diário só lhe dava mais e mais peso sobre aquilo que tinha acontecido.

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Hoje é o dia do meu casamento.

Por mais que este vestido seja branco, eu me sinto impura. Por mais que eu esteja apaixonada, não tenho certeza dos meus sentimentos para com meu noivo. Me sinto voltar no tempo, ficando dividida, como naquela época...

Me pergunto se terei a coragem de avançar até o altar.

Eu não sei quem irá ler este caderno, tanto menos se realmente será um dia encontrado. Eu realmente imagino que isto seja inútil, mas eu preciso confessar meus pecados de uma forma ou de outra.



Tudo começou numa manhã de domingo, 3 anos atrás. Eu escutei algo sobre uma candidatura de certo \"Senhor Sohma\", então pedi para Kyo ver quem era.

Desde o dia em que Yuki foi embora, todas as vezes que ouvia aquele sobrenome meu coração se preenchia com uma esperança que não deveria existir.

\"Eu penso em ti como uma mãe\", foi o que ele disse antes de partir.

Mas eu estava completamente apaixonada por Kyo, tanto ao ponto de não sentir o peso daquelas palavras. Mas os anos se passaram, tornando-se sete. Ele não tinha nenhum diploma a não ser aquele do ginásio - assim como eu -, mas assim que conseguimos um trabalho um pouco melhor, começamos a morar juntos... 8 anos atrás. A convivência era quase a mesma, e eu perdi minha virgindade nos braços daquele que eu acreditava amar.

Eu vivia feliz. Eu achava que era feliz. Eu me enganava com a felicidade que me era conveniente.

Eu desisti de Yuki assim que notei Machi. Ela precisava dele. Ele talvez sentisse o mesmo. Eles eram parecidos, e eu sempre tive Kyo ao meu lado. Por mais que eu o amasse, aquele vazio continuava a chamar outra pessoa.

Kyo trabalhava em um jornal local há 4 anos, e já tinha sido promovido duas vezes. Nós conseguimos alugar uma casa, e Kyo fez um contrato com o proprietário no qual poderiamos viver e comprar a casa ao mesmo tempo - ou seja o aluguel seria a parcela do pagamento.

Eu descobri lados dele que ninguém conhecia, e o mesmo aconteceu com o ruivo em relação a mim. Mas mesmo com todas as pequenas dificuldades, viviamos bem. Até aquele dia... Em que Yuki veio à nossa casa. Naquela manhã eu arrumei tudo, deixando de lado até mesmo o almoço que acabou saindo em atraso. Demorei um pouco para me arrumar, mas acabei escolhendo um vestido simples. Kyo achou estranho, mas eu tentei fingir que não tinha notado.

Ele entrou na casa, e eu notei o quanto era mudado. Ele realmente parecia com o Ayame, mas era bem mais bonito. Com certeza ele conseguiria ter virado um modelo se quisesse. E ganhado muito dinheiro com isso. Seu olhar em um primeiro momento parecia não querer encontrar o meu, mas aquilo foi algo inevitável. Eu sorri. Ele também, com aquele jeito gentil que somente Yuki tem.

- Honda-san... - Eu pude sentir algo me machucando por dentro ao ouvir aquilo. Ele realmente não tinha mudado muito. Não suportava aquele modo tão longiquo de me chamar. - ...Kyo! Que bom vê-los novamente.

Continuamos a conversar, e eu sentia algo extremamente incomodo em suas palavras. Todas as vezes que seu olhar encontrava o meu, ele disfarçava a tristeza com sorrisos falsos. Qual era o problema? Eu não sabia dizer.

Kyo continuava segurando fortemente minha mão, como se quando a soltasse, eu não seria mais dele. O que estava pensando? Yuki era um simples e bom amigo. Alguém que me disse que achou que me amava, mas que se enganou - estranhamente pensar naquilo me dava um aperto no coração.

Meu noivo respondeu seu celular depois de um tempo, e disse que precisava sair para um furo numa cidade ali perto - iria passar o final de semana fora mais uma vez. Abaixei o olhar. Ele o fazia todas as vezes, me deixava sozinha sem pensar nos meus sentimentos. Mas Kyo era feito daquele jeito. Não chegava a ser egoísta, mas era orgulhoso demais para pensar primeiro nos outros e depois nele.

Ele era meu exato contrário.

Ouvi Yuki chamar meu nome, mas quase não escutei, ainda mergulhada em meus pensamentos. Quando percebi ele estava ao meu lado, e eu me assustei.

- O que houve, Yuki? - perguntei, juntando as sobrancelhas.

- Eu estava com saudades. – sussurrou.

Olhei dentro daqueles olhos insólitamente roxos. Tinham o mesmo brilho de sete anos atrás, a mesma calma, o mesmo encanto.

- Eu fiquei pensando em você desde que te vi na TV duas semanas atrás... - eu me contrai por um momento, e minha respiração se fez mais forte. Não sabia o estava dizendo, mas sentia nescessidade de fazê-lo – Yuki... O que está acontecendo comigo?

Ele levou uma de suas mãos até meu rosto, e eu, que fui acostumada aos dedos frios de Kyo, não consegui conter um comentário.

Quem tem mãos quentes possui um coração frio. Era absolutamente verdade, mesmo se eu sempre o considerei um ditado. O coração daquele homem estava totalmente congelado pela monotonia de seus dias e por um amor que era obrigado a dar de graça.

Entretanto, naquela época, eu me encontrava totalmente ao escuro disto.

Olhei para o relógio à nossa frente. Eram às 16h10min, eu estava quase atrasada para o trabalho. Levantei, dizendo que precisava sair, e o Sohma gentilmente se ofereceu para me levar. Eu hesitei por um segundo, mas pensei que não teria problema em me aproveitar de sua bondade somente aquela vez.

Saimos assim que eu peguei minha jaqueta. Seu carro era realmente bonito, na cor preta. Porém eu não entendo nada de automóveis, e acabei sem saber até hoje qual marca fosse.

Entrei timidamente, e ele se pôs ao meu lado relutamente. O veículo era extremamente espaçoso e confortável. Algo esperado de alguém como Yuki. Ele com certeza tinha se dado bem na vida.

Eu lhe mostrei onde deveria parar, e ele obedeceu sem perguntas. Eu estava por sair, agradecendo-lhe.

- Honda-san. - ele segurou meu braço, chamando-me daquele jeito tão formal que chegava a dar nojo. Eu prensei meus olhos por um segundo, tentando ignorar a raiva que aquilo me dava. Nós ainda éramos dois desconhecidos? Não sabia porque, mas irritava. Demais. - Algum problema? - ele prosseguiu, e eu o olhei desapontada.

- Nada... – eu nunca soube mentir.

- Realmente?

- Sim. – eu olhei para o lado, segurando a maçaneta da porta. Queria fugir, mas ele ainda segurava meu braço com força, como se esperasse algo a mais de mim. No entanto, uma parte de minha mente lhe implorava de não solta-lo– Eu estou indo, sim, Yuki? Obrigada. Da próxima vez eu te pago a carona!

- E por que não paga logo? – Aquela foi a última coisa que eu ouvi antes de me ver com seus lábios colados aos meus. Eram macios, e eu me entreguei sem pensar duas vezes. Eu sabia que se continuasse assim, iria acabar dormindo com ele ali mesmo. Juntei as poucas forças que tinha, separando-me dele e sentindo meu rosto corar ferozmente. Sai correndo, sem me importar se tinha fechado a porta ou me despedido dele. O que eu tinha acabado de fazer?

A noite passou lentamente, quase arrastando-se. Eu olhava confusa para a chuva lá fora, ainda pensando no que Yuki poderia estar fazendo naquele momento. Balancei a cabeça, estava indo longe demais. Como primeira coisa, eu nunca deveria ter deixado ele me beijar, e como segunda tinha que parar de pensar nele.

Mas era inútil. O gosto dele era bem melhor do que imaginava que fosse.

Meu turno acabou no começo da madrugada. Fui me trocar sem vontade, junto às duas garotas que trabalhavam comigo. Elas não eram muito de papo, mas também pudera, eram às 2h da manhã. Abri meu armário, e de lá caiu um pacote amarelo mal embrulhado. O peguei do chão, sem me lembrar o que fosse.

O abri, e vi duas fitas amarelas e um cartão com escrito \"Para Honda-san\". De novo aquela forma de me chamar. O sangue me subiu a cabeça, eu estava aborrecida. Me perguntei o motivo de ainda guardar aquilo; não encontrei respostas.

Abri a porta dos fundos do restaurante como todas as noites, pronta para ir para a casa. A chuva tinha aumentado, e eu não tinha uma sombrinha, assim como Kyo não estava em casa para poder ir me buscar.

Passei a mão no bolso do vestido. Tirei um cartão de visita; Sohma Yuki. Vi o endereço - não era muito longe dali. Eu poderia ir a pé em poucos minutos.

Mas o que estava pensando? Não tinha porque ir para a casa de Yuki naquela chuva e àquela hora. Ou tinha? Minha cabeça estava entrando em curto. Ver seu rosto tinha mexido com uma parte de mim que eu pensava que não existisse mais, seu toque fazia meu corpo todo estremecer, aquele beijo deixou um gosto de quero mais.

Olhei para a lua que se escondia por trás do céu nublado. Que se dane, pensei, começando a correr.

Eu não entendia aquela vontade de rever seu doce rosto. Eu me perguntava como é que minhas pernas podiam correr sem minha permissão.

Minha mente indagava o real motivo pelo qual queria encontrar Yuki.

Respostas? Nenhuma. Quando vi já estava apertando aquele botão frenéticamente, implorando para que o Sohma abrisse sua porta o quanto antes. Minha respiração estava afobada, minhas roupas molhadas, minha mente confusa.

Ele atendeu meu desejo, e eu vi um sonolento Yuki abrir a porta, esfregando os olhos. Ele ainda trajava as roupas que tinha quando foi me ver. Eu não me importava se ele estava sozinho ou menos.

- Honda-san, o que houve? – perguntou, parecendo despertar imediatamente.

- Honda, Honda, Honda! – eu dei um passo para frente, irritada. – Até quando vai me tratar assim? – Me aproximei mais um pouco, segurando seus ombros. Agia sem pensar, seguindo somente aquele instinto que tinha tomado conta de mim – Vamos Yuki, chame pelo meu nome! – Eu fitei-o, e o vi se render àquelas palvras.

- T-Tohru... – eu senti um alivio enorme ao ouvir meu nome. Nunca achei que algo tão simples me daria uma satisfação tão grande. Eu me joguei contra seu peito, mandando-o repetir aquela palavra. Ele obedeceu uma, duas vezes. As lágrimas caiam sem querer. Talvez pela alegria, ou por saber que dali não tinha mais volta.

Eu, naquela noite, traí Kyo pela primeira vez.


O remorso queimava em meu peito todas as vezes que íamos dormir e eu dizia que estava cansada. Eu costumava chorar perto de Yuki, e ele fingia não ouvir. Simplesmente afagava minha cabeça com suas mãos, mostrando compreensão, mesmo se eu sabia muito bem que para ele não era a mesma coisa.

Aquela brincadeira durou três longos anos. Eu sabia que tinha que parar, Yuki começava a se tornar um péssimo vício. No entanto era extremamente difícil passar sequer um dia sem seu toque quente ou o cheiro de tabaco com o qual eu acordava de madrugada.

As noites passadas com meu noivo diminuíam progressivamente, e ele parecia começar a desconfiar de algo. Kyo era frágil; se torturava por cada pequena coisa. Eu sentia muito por isso, e não conseguia deixá-lo ir. Quantas vezes eu quis responder \'Eu também\' para Yuki e me segurei? Não sei, perdi a conta ainda no primeiro ano. Eu me enganava com o fato que desejava somente seu corpo, mas por dentro eu implorava por sua alma.

Até que aquela noite chegou. Eu sabia que antes ou depois ele perderia a paciência, assim como tinha certeza que quando acontecesse eu teria que fazer uma escolha definitiva.

Porém eu nunca fui boa nesse tipo de coisa.

Pra alguém como eu - que nunca teve muito para dar, e jamais esperaria algo em troca do pouco que distribui -, o amor de Kyo era um conto de fadas, e a relação com Yuki quase um sonho.

Mas os sonhos não duram para sempre, e acreditar em contos de fadas é tolice.

Naquele mês, eu fiz de tudo para não encontrar com meu amante. Troquei o número do celular, marquei a data do casamento o quanto antes, achando que aquilo era o justo a se fazer. Eu deveria ficar com aquele que me amou desde o principio, aquele que me apoiou quando eu mais precisei, aquele que...

Oh, quem eu estou tentando enganar? Cansei de mentir para mim mesma.

Eu comecei a amar Yuki tão perdidamente que doía. Tanto que tinha medo de já ter confundido seus nomes na hora do prazer. Ao ponto de chorar sozinha porque não podia vê-lo. As lágrimas caem ainda agora, quando me lembro daquela maldita promessa.

Kyo tinha escolhido Yuki para ser seu padrinho. Bem previsivel, afinal. Eles eram primos, e meu noivo sompre gostou do prefeito daquela cidade, nem que fosse um pouco. Eu pedi para que se Yuki lhe chamasse, ele dissesse que eu estaria em casa provando meu vestido de noiva.

Eu precisava ver aquele rosto gentil mais uma vez antes de desistir completamente. Naquela manhã, eu deixei tanto o portão quanto a porta de casa abertos, esperando meu amante. Eu me sentei na frente daquele espelho depois de observar minhas vestes por cinco minutos. Eu não me via bonita, por mais que soubesse que qualquer outra pessoa iria dizer o contrário.

Eu esperei, fitando meu reflexo continuamente. Era uma questão de tempo, eu pensei. Conhecia Yuki bem o bastante para afirmar que ele me amava tanto ao ponto de jogar qualquer coisa para o alto e ficar comigo. Mas eu nunca tive aquela coragem, e sinto como se ele me desejasse muito mais do que eu a ele.

As esperanças aumentavam todas as vezes que eu ouvia o ronco de um motor lá fora. Apertei a saia rodada de meu vestido com força, segurando o choro que queria recomeçar a se fazer ouvir.

Até que eu ouvi passos apressados subindo a escada. Senti um alivio enorme preencher meu peito - o Sohma finalmente tinha vindo. Fingi não ter advertido sua presença, ainda olhando-me. Aquele era mais um erro.

Eu tinha prometido para Kyo que jamais o deixaria. Eu não podia quebrar aquele juramento, por mais que fosse viver infeliz pro resto de minha vida.

Yuki entrou e me abraçou por trás. Eu estava com saudades, mas não queria desmonstrá-lo de jeito nenhum. Levantei-me e comecei a dizer mentiras sobre mentiras. A única que tinha errado ali fui eu.

Eu não deveria ter me apaixonado de novo.

Até que ele me fez uma proposta. Aquela que eu esperava desde o primeiro passo que ele deu para dentro daquela casa.

Naquela sexta-feira, eu me concedi aos seus desejos mais uma vez, e o ouvi sussurrar aquelas três palavras mais uma vez. Eu não podia continuar mentindo, também o amava. Levantei-me, e ele tinha adormecido. Peguei meu vestido jogado perto da cama, e vesti a primeira coisa que vi pela frente.

Estava por sair, quando o olhei de lado. Senti como se não me declarasse agora, nunca mais teria a coragem de fazê-lo. Cheguei perto dele e beijei sua testa, sussurrando aquilo que ele sempre quis que eu dissesse. Não sei se o tinha ouvido, portanto decidi escrever aquilo num pedaço de papel e deixá-lo sobre o criado-mudo.

Eu queria ter certeza que ele também conheceria meus sentimentos.

Sai daquela porta com o coração destruido. Chovia de novo. Parecia que até mesmo o céu chorava no meu lugar. Eu derramei tantas lágrimas que decidi não chorar mais. Não tinha pegado uma sombrinha, e também não tinha para onde ir. Vaguei por horas sem rumo, acabando no escritório de meu futuro marido.

Ele, como sempre, me acolheu sem fazer perguntas.

Os dias se passaram lentamente, e aqui estou eu, esperando os últimos 4 minutos que me separam da vida de casada.

Obrigada, Kyo; Perdão, Yuki.


Mas eu não sei se um dia vou conseguir escolher entre o homem que amo e aquele que fez de mim o que sou hoje.

Tohru Honda.

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Yuki tinha encontrado aquele caderno quando foi pegar os pertences da amada para o funeral. O leu naquele mesmo dia, e sentiu como se o mundo desabasse sobre sua cabeça.

Ele correu por horas, acabando perto do lugar onde a beijou pela primeira vez. Naquela noite, assim como na primeira e na última vez em que a teve, o céu derramava água.

Tohru o tinha amado desde o primeiro momento. Ele sempre achou que era quem corria atrás dela, mas acabou descobrindo que foi o único que vinha perseguido.

Prensou os olhos o mais forte que podia, pedindo a qualquer Deus que o pudesse ouvir para morrer também.

Sua existência não tinha valor em confronto àquela da mulher que mais amou em toda a sua vida.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.