Eu estava impaciente no carro que Tiago dirigia, Mama havia ido embora sem mais nem menos, Renata até tentou convencê-la mas ela disse que tinha lembrado de um assunto urgente, que assunto seria esse? Ela mesma havia dito que só ia embora depois das 17 h e agora que eram 15 e 30!

Paramos em frente ao meu prédio, tinha que trocar de roupa antes de ir para a casa de Renata.

— Já volto. _ falei e saí em disparada pela calçada.

Ao passar pela entrada o porteiro chamou o meu nome, o que não era tão comum assim, fazia o possível pra não ser conhecida nesse prédio.

— Sim? _ respondi, me virando para ele que está atrás do balcão.

— Tem uma senhora que está lhe aguardando. _ e apontou para o canto da sala de recepção.

Numa poltrona velha se encontrava Mama, que eu pensava já estar em outra cidade, ela percebeu minha presença e levantou o olhar que analisava as revistas velhas dali, sorriu para mim.

— Laureen! Ainda lembra de mim?

— Mama? _ meu coração deu um salto. _ O que faz aqui?

— Vim visitar você. Sei que não me conheceu antes mas saiba que eu tive a honra de conhecer você, mesmo de longe... Laurinha.

— Quem lhe disse esse nome?

— Eu mesma descobri, não se preocupe meu anjinho, só queria conversar com você antes de ir embora, se importa de tomarmos um chá?

Peguei o celular e disquei o número de Tiago para avisar do meu recente encontro marcado.

CH

Enquanto eu permanecia em silêncio na minha pequena cozinha, Mama tagarelava sobre as condições precárias do meu prédio, dei graças aos céus por Ellen ser mais do tipo observadora, eu não suportaria viver com uma mãe assim.

— Aqui está o seu chá. _ falei colocando uma xícara em frente à ela. _ Tem alguma coisa pra me contar?

— Talvez você tenha algo pra me contar...

— E porque eu teria?

— Há quanto tempo está aqui?

— Como assim?

— Sei que você não cresceu nesse país Laurinha, então, obviamente, o seu retorno foi recente.

— Não me chame de Laurinha.

— Mas é o seu nome.

— Não. O meu nome é Laureen, tenho minha identidade se quiser ver.

— Seu nome adotivo, eu sei, mas seu primeiro nome é Laura, sabe o que significa? Vitoriosa. Deveria gostar desse nome. _ disse Mama dando um longo gole no chá. Lembrei de tia Carlota, ela havia morrido assim.

— E você sabe o que significa Laureen?

— Não, o que é?

— A que sempre vence.

Mama sorriu.

— Suspeito que foi você mesma que escolheu o seu nome.

— Sim.

— Ótima escolha, mas não deveria esquecer suas raízes. É por elas que está aqui, não é?

Cerrei os olhos. Aquela mulher estava despertando um lado meu que não respeitava os mais velhos.

— O que você quer afinal?

— Bem, não quero nada demais, só entender algumas coisas, odeio ficar com dúvidas, principalmente aquelas que duram anos, e talvez, ajudar você. Tem um lado meu que insiste em acreditar que não fui convidada para estar aqui apenas pra rever minhas crianças.

Respirei fundo. Não conseguia confiar totalmente nessa mulher que não parava de falar e parecia saber exatamente tudo que estava acontecendo à sua volta, mas também eu não podia desperdiçar seja lá o que ela quisesse me dar.

— Certo. Tenho que admitir que meu nome já foi Laurinha, e mesmo que eu não goste de ser chamada por ele isso não quer dizer que eu não goste dele, são questões de segurança, poucas pessoas sabem que eu voltei pra cá.

— Então, seus pais apoiaram sua decisão?

— Infelizmente eles faleceram antes de eu contar, ou sequer decidir que ia voltar.

— Sinto muito. _ Mama estendeu sua mão por sobre a mesa e tocou a minha. Ela me deixava confusa sem dúvidas.

— E a senhora. O que a trouxe aqui? De onde me conhece?

— Bem, você não é uma figura difícil de esquecer... _ disse ela sorrindo.

— Como assim?

— Eu ouvi falar de você assim que comecei a trabalhar no orfanato com Soraya, minha presença foi solicitada pelas autoridades da assistência social dessa cidade e eu provavelmente teria que assumir o orfanato até Soraya completar a maioridade ou aparecer alguém interessado no trabalho, caso ela não quisesse.

— Ela ainda não tinha 18 anos?

— Tinha 17. Uma aborrecente.

— Uma psicopata.

— Você não gostava muito dela, não é?

— Ela não era uma pessoa fácil de lidar.

— Eu também tive dificuldades em lidar com ela, quis ser como a mãe que ela perdeu mas ela não parecia estar interessada nessa figura.

Ela não queria ter uma mãe, se quisesse não tinha matado a própria.

— Então, como ouviu falar de mim? As meninas comentaram com você?

— Não, foi a própria Soraya.

Um caroço se formou na minha garganta.

— Certa vez, _ Mama continuou_ eu ouvi uma conversa dela ao telefone com o namorado logo quando cheguei, ela falava pra ele como estavam as coisas e citou um nome diferente, Laurinha, eu suspeitei que devia ser um apelido e não liguei muito. Dias depois ela me pediu pra fazer uma ligação internacional, e-mails não eram confiáveis segundo ela, e eu liguei pra sua mãe.

— O quê?

— Sim, falei com ela e perguntei sobre você e os processos da adoção. No momento não entendi mas fui juntar as peças anos depois.

— O que exatamente você perguntou à Ellen?

— Ellen é o nome da sua mãe?

— Sim!

— Bem, não lembro exatamente o que foi, já se passaram muitos anos... só lembro de Soraya impaciente pra saber se você já estava legalizada dentro de outro país.

— Mas... porque ela se preocuparia com isso? Ela me odiava.

— Ah sim, isso eu percebi depois, mas você era jovem demais pra saber que Soraya não tinha permissão pra liberar vocês para a adoção. Ela só estava morando na casa junto com vocês naquele período, perante a lei poderia até ser considerada órfã também, mas ela ainda tinha irmãs mais velhas.

— Que sumiram.

— Sim, é verdade. Então, meio que ela agiu ilegalmente deixando você ser adotada por pais estrangeiros sem nenhuma documentação ou autorização dos superiores, entende?

— Então, é como se eu tivesse sido sequestrada?

— Basicamente isso.

— Meu Deus. _ fiquei encarando o chão sem saber o que dizer.

— O que Soraya não esperava, eu acredito, é que você teria uma boa família.

— Ela me ofereceria para o primeiro que aparecesse.

— Sim, pra alguém que estivesse disposto a correr os riscos de embarcar com uma criança sem nome pro exterior.

Rapidamente uma lâmpada se acendeu em minha mente.

— Por isso ela apostou em Ellen.

— Como? _ perguntou Mama.

— Ela sabia qual criança Ellen queria.

— Querida, não quero que pense que seus pais agiram por maldade, eles queriam muito uma criança e pra terem feito o que fizeram foi porque amaram você no momento em que te viram.

— Eu sei disso. Lembro dos olhos deles até hoje.

Mama terminou seu chá.

— Antes de ir tenho uma pergunta. _ falou ela.

— Diga.

— Por que você voltou?

— Sério? Você quer saber isso?

— Laureen, eu vi o desespero de Soraya em querer você longe dela, quando encontrei sua ficha no orfanato fiquei tentando entender porque ela não gostava de você, até que tomei coragem pra perguntar certa vez, me fazendo de desentendida, e ela me disse que você não era como as outras crianças, você prejudicava a ordem no orfanato, tinha distúrbios e era a provável culpada pela morte da mãe dela.

O quê?

— Você acha que eu acreditei? _ Mama continuou_ Claro que não. Tive muitas experiências trabalhando com crianças e adolescentes e quem parecia ter um distúrbio ali, era Soraya.

— Foi ela que matou a tia Carlota.

Mama me encarou.

— Foi por isso que eu voltei. _ Continuei. _ Eu não suportava mais dormir e ter pesadelos com meu passado e me dar conta de que uma assassina não foi punida e ainda poderia estar maltratando outras crianças, como ela fez comigo.

— Bem, _ Mama suspirou _ tenho que admitir e dizer que essa possibilidade passou pela minha cabeça algumas vezes mas eu preferia não acreditar.

— Que Soraya matou a própria mãe?

— Eu não consigo pensar que um filho chegue a esse ponto.

— Deve ser porque ela não era filha...

— Como?

— Soraya não era filha legítima de tia Carlota, ela foi adotada quando era bebê, quase sequestrada na verdade, mas foi salva se olhasse por outro ângulo.

— Meu Deus. _ sussurrou Mama.

— Mas em um mundo normal, uma filha teria se revoltado com a mãe, se afastado por um tempo talvez, e depois retornado, teria visto amor nisso tudo, e não matado uma mulher que a criou só porque elas não tinham o mesmo sangue.

— Então essa é a razão da raiva dela... mas quem era a mãe dela afinal?

— Não sei, tia Carlota não me contou.

— Então foi a Carlota que te disse isso?

— Sim, eu não inventei essa história ou descobri do nada como Soraya talvez tenha pensado.

— E o que você sabe sobre a mãe dela.

— Não sei de nada, só que era louca.

— Então talvez essa loucura esteja no sangue...

Ficamos em silêncio por uns segundos.

— Escuta Laureen, sei que não descansará enquanto não matar os fantasmas que te perturbam, eu sempre soube que você não era como as outras crianças desde quando vi sua foto e o efeito que você causava em Soraya, então, saiba que não estará lidando apenas com ela, o Nil, que na verdade é Nilson, é namorado dela desde que eu a conheço, se ela ainda permanece intocável é porque está com ele, ele provavelmente foi o cara que a ajudou a fazer tudo que fez.

— Você o conhece?

— Nunca o vi. Soraya saía com ele mas ele nunca apareceu no orfanato, eu apenas ouvia conversas no telefone. Tente saber quem ele é e você encontrará o ponto fraco de Soraya.

E eu pensando que o ponto fraco dela era Maíze, mas pelo visto, o amor dominava até aquela fera, ou seria obsessão?

— Tudo bem, obrigada.

— E mais outra coisa, não vá atrás dela sozinha, pode ser perigoso.

Concordei com a cabeça.

Mama levantou e alisou a saia com as mãos.

— Bem, _ falou ela _ me sinto livre de um peso nas costas.

Dei um sorriso amarelo.

— Espero que você se sinta assim um dia. _ disse Mama me dando uma piscadela. _ E cuidado quando for encontrar Soraya, ela pode ter um surto quando ver você.

— A senhora acha?

Mesmo ela tendo me visto diariamente nas últimas semanas?

— Sim, ela me disse que via o rosto da mãe quando olhava pra você.

Sem dizer nada recebi um abraço caloroso de Mama e a acompanhei até a porta.

— Mama?

— Sim, querida.

— Como é o seu nome?

Ela sorriu.

— Olga, mas não comente com ninguém, diferente de você, eu não gosto do meu nome.

E Mama se foi, me deixando com os pelos arrepiados.

Me joguei na cama ainda tentando entender como funcionava a mente de Soraya, com toda a certeza ela os tinha distúrbios que me acusava de ter, era uma alma atormentada pelos pecados que cometeu e obcecada por um namorado da adolescência que lhe influenciou a fazer o que fez. E como nunca se livrou da culpa acaba por ver suas vítimas em rostos familiares. Pelo visto ela já pagava por seus erros a muito tempo e o preço era sua paz de espírito.