Estava atrasada. Estava mesmo atrasada. Outra vez.

“Porque é que a Jori tinha que insistir na maquilhagem?”, pensei, enquanto tentava não pisar o vestido. Os jardins que antecediam o pátio onde ocorria o baile pareciam, hoje, mais longos que nunca. Ou isso ou os sapatos altos abrandavam-me o ritmo do passo. Mesmo com a pressa admirei os guardas chuvas que enfeitavam todo o caminho.

À frente do pátio existia diversas unidades de segurança. O meu metabolismo celular, ao perguntar-se a que se devia tantos guardas, exaltou-se e uma sinapse ocorreu (o que é estranho no meu cérebro). “Pois, claro!”, pensei, “Como é que me podia esquecer?”.

Este baile de Halloween era um dos únicos eventos em que, no mesmo tempo e lugar, a turma do dia e da noite se encontravam e conviviam juntos. E tal, era, para muitas raparigas, motivo de festa e tentativa de sedução áspera e crua (eu até as compreendia: os rapazes mais bonitos estavam todos na turma da noite). Porém, esta sedução, para um dos vampiros menos controlados, podia virar na última noite das Cinderellas.

Concluí, portanto, que estes polícias não seriam mais do que caçadores de vampiros disfarçados, à procura de um simples engano para atacarem os vampiros que ali se encontravam em grande número.

Passei pela “segurança”, baixando o meu olhar, tentando não encontrar nenhum dos deles.

– Ayame!- chamou-me o senhor director. Ao olhá-lo, sorri. Parece que até Kaien tinha entrado no disfarce do tema do baile de Halloween “Princesas e Guerreiros” (tema maricas confesso). Vestia uma armadura e uma máscara da mesma cor: prateada.

Assim que se aproximou de mim, avaliou-me de pés a cabeça. Senti um nervosismo na seriedade do olhar dele enquanto me avaliava.

– Estás fantástica!- disse ele, suspirei.- Mas que tipo de princesa és tu?

Sabia ao que ele se referia. Até Jori me tinha crucificado por isso. Normalmente, as princesas tinham aqueles vestidos enormes e longos, que apertavam (através de um corpete) todo o tronco e, pelos membros inferiores, o vestido ia alargando até fazer uma grande circunferência ao redor dos pés. Pelo menos era uma dessas coisas em azul que a Jori me tentara obrigar a vestir (e que ela vestiu).

Olhei para mim própria. Eu, por minha vez, tinha um vestido amarelo canário de alças bege (e na cintura uma fita da mesma cor) com decote definido em “V”. Caía-me até um pouco acima do joelho.

– Sou uma princesa moderna!- expliquei, exibindo o meu look dando uma volta sugestiva.

Kaien sorriu e deu-me aquilo que ele andava a divulgar: máscaras venezianas.

– Esta deve ser a que fica melhor!- exclamou ele. A máscara era preta, definida e continha pequenas penas ao redor do seu contorno da mesma cor do meu vestido: amarelas.

Coloquei a máscara e agradeci-lhe. E finalmente, entrei no pátio.

Tenho que admitir que o sítio estava elegantíssimo. Mesmo que eu tenha sido dos poucos alunos que o teve que organizar. E tudo isso graças aos meus zeros nos exames. E não é que eu concorde: pelo menos merecia um “um” no exame de Matemática (já que, aparentemente, escrevi o meu nome neste). Mas, mesmo assim, estava encantada com a decoração: tínhamos colocado enfeites entrelaçados pelo “tecto” do pátio, tínhamos enfeitado as árvores que ali estavam perto, tínhamos construído um palco, tínhamos construído uma parte de bebidas e petiscos e, no final, para dar asas ao romance, tínhamos substituído os holofotes por centenas de pequenas velas, espalhadas pelo grande recinto.

Era como se estivesse num conto de fadas. Numa outra dimensão onde não existiriam vampiros, perigos e onde a minha família estaria viva e comigo. E, por qualquer razão, estes pensamentos fizeram-me sentir triste, deixando escapar uma lágrima das minhas retinas.

“Poças, Ayame!”, pensei enquanto secava a lágrima fresca que se enrolava na minha pele escaldada. Dei-me duas chapadas, tentando que a frase “Diverte-te” me entrasse, sem demoras, na mente.

– Quem me dera ser uma lágrima. Nascer nos teus olhos, roçar e percorrer a tua face e morrer nos teus lábios!- declamou uma voz.

Encarei o meu “poeta”. Sorri.

– Não resultou, pois não?- perguntou-me ele, referindo-se a um resultado que seria a minha total e inquestionável rendição por ele, ou seja, se me tinha seduzido.

Abanei a cabeça.

– Não, ariano. Não resultou.- confessei. Mesmo a usar uma máscara parecida com a minha, o cabelo loiro ondulado e a sua tendência para dizer coisas pirosas não deixava margem de dúvida para quem se escondia debaixo do disfarce.

Aidou passou as mãos pelo cabelo, algo envergonhado, enquanto “Incomplete” dos BackStreet Boys começava a tocar.

– Pelo menos, aceita dançar comigo esta música.- pediu-me, colocando a sua mão à minha frente.

Hesitei.

– Ayame…por favor.- rogou-me.- Não firas de novo o meu orgulho.

– Não, não é isso.- tentei explicar.- O problema é que, perante dança, eu não sei…

Aidou, sem ouvir o resto da explicação nem, muito menos deixar explicar, levou a minha mão à sua.

– Não te preocupes.- disse-me ele.- Deixa o resto comigo!

Levou-me para o centro do pátio onde, infelizmente, estaríamos à vista de toda a gente.

Aidou colocou a mão na minha cintura e eu coloquei a minha no seu ombro. Ergueu a sua mão direita e eu entrelacei a minha na dele. Enquanto ele tentava conduzir-me ao ritmo da música, concentrei-me noutra coisa que não nas figuras tristes que eu estava a fazer (quando dava o meu máximo para não lhe pisar os pés, isto é): nas suas roupas.

– És um cavaleiro cruzado?- perguntei ao distinguir a cruz que lhe trespassava todo o tronco. Usava, apenas perceptível pelos membros superiores, uma vestimenta de metal e, nos inferiores, umas calças castanhas de tecido. Por cima, trazia uma t-shirt com o emblema vermelho dos guerreiros cristãos.

– A única época em que os guerreiros eram verdadeiros heróis.- explicou-me ele. Fiquei curiosa com a afirmação dele (talvez porque não era viva na altura). Mas, enquanto preparava a minha voz para lhe abordar as minhas questões, o meu pé pisou o dele.

Afastei-me do tronco do ariano.

– Desculpa, desculpa, desculpa.- pedi com urgência.

Aidou voltou a encurtar a distância entre nós e a colocar as mãos nos devidos lugares, prontos para mais uma investida na complicação chamada “dança”.

– Se olhares para os meus olhos e não para as minhas roupas tornar-se-á mais fácil.- explicou-me.

E assim, como milagre, comecei realmente a dançar. Esquecendo um erro ou dois cometidos, acho que me comportei bem. Mas “bem” na minha opinião deve ser um pouco superior a “miserável” nas opiniões de outros.

– Estás muito bonita, Ayame!- disse-me o loiro, ao ouvido. Tentei esconder o rubor que se fazia nas minhas bochechas.

A música terminou nesse momento e os nossos corpos, finalmente, afastaram-se.

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Andava à procura de Zero desde sempre. Onde é que aquele rapaz tinha ido?

Jori tinha-me dito que ele dançava pessimamente e eu, com vontade de me rir um bocado, tentava encontrá-lo e seduzi-lo para uma dança. Mas a procura não estava fácil. Farta de percorrer todo o pátio, tentei procurar nos jardins. Eu, se dançasse muito mal (que danço), estaria provavelmente a fazer tempo debaixo de uma árvore, à espera que esta porcaria acabasse.

Assim que avistei uma sombra debaixo de um pinheiro, corri na direcção daquele preguiçoso anti-social. Mas a cena que se enrolava à minha frente era tão bizarra que me fez esconder atrás de um tronco. Tentei não rir.

Uma menina de óculos graduados, com faces risadas, e tranças mal trançadas, e um vestido laranja de "princesa tradicional", pedia a Zero que a acompanhasse numa música. Ele, cruel como sempre, negou-lhe o convite, dizendo que estava cansado. Ela, carinhosamente, tentou perguntar-lhe de novo. E sabem o que parvo disse?

– Já te disse que não! Desaparece!

Só tenho uma palavra para descrever a atitude dele: “estúpida”. Depois da rapariga, entre soluços, fugir daquele local, aproximei-me dele.

– Tinhas mesmo que fazer isso?- perguntei-lhe, chateada.- Ela não merecia isso!

Zero levantou-se e fitou-me.

– Eu não quero dançar com ela.- explicou-me.

– Eu percebo isso. Mas podias ser mais carinhoso nas tuas palavras.- disse-lhe.

Os olhos dele, tristes, continuavam a fitar os meus.

– Como podia eu?- perguntou-me ele.- A rapariga com a qual quero dançar nem se dignou a me convidar!- exclamou, enquanto me apontava o dedo.

Estranhei aquela atitude dele. Olhei-o mesmo. Tinha vestido um colete um pouco mais escuro que a camisola castanha que envergava. A camisola tinha um corte muito vincado, deixando ver partes do peito dele. As outras partes da pele do seu peite eram escondidas pelos fios que tentavam aproximar os dois tecidos, em lados opostos do tronco, da camisola. Mas o meu olhar não se dedicou muito tempo às vestes dele.

Dediquei-me nos pormenores da sua face. O cabelo tinha a mesma cor mas não o mesmo estilo “descontraído” que Zero sempre usava: estava demasiado arranjado e penteado. Os olhos eram da mesma cor mas não apresentavam a mesma expressão: tinham um ar de perigo que nunca tinha visto. Os lábios finos, sempre inexpressivos, contornavam-se, agora, num sorriso travesso e assustador. Aquele não era Zero.

– Quem és tu?- perguntei-lhe dando um passo atrás.- O que fizeste ao Zero?

O sorriso dele aumentou para o dobro.

– Não és tão burra quanto pareces, pois não?- perguntou-me. Aquilo era o suficiente. Eu tinha razão.

Dei asas às minhas pernas e fugi. Não contava com a velocidade estonteante dele. Não era a velocidade de um vampiro. Era sim uma velocidade de um humano que tomava esteróides, suficiente para apanhar as minhas pernas finas e trémulas.

Assim que colocou as mãos na minha boca, um cheiro estranho foi absorvido pelas minhas narinas. Só percebi que era clorofórmio quando comecei a perder a consciência.

Antes de passar para o mundo dos sonhos, ainda ouvi a voz dele, sorridente e orgulhosa:

– O meu nome é Ichiru.