Caçada

Três Medos


Sorrisos apaixonados, carícias íntimas e promessas feitas ao vento. O véu da mesma cor do sári foi retirado com cuidado pelas mãos do príncipe de olhos dourados, fazendo com que um sorriso tomasse conta do rosto da menina.

Ela era linda.

Os olhos lilases eram intrigantes e brilhavam com uma mistura de sentimentos não decifráveis. Seus dedos finos e longos tocavam o rosto anguloso do homem em sua frente e ela parecia guardar na mente as feições do amado.

E eu sabia qual a sensação, pois perdi as contas de quantas vezes reproduzi o mesmo movimento em Kishan.

Mas não eram minhas mãos que o tocavam, e também não era eu quem o fazia sorrir de forma preguiçosa e apaixonada.

Era Yesubai.

Depois de dias pensando na mulher que levou os irmãos à maldição, tentando imagina-la com as poucas informações que eu conhecia, finalmente estava de frente com Yesubai. Sua beleza havia me deixado sem palavras.

Ela era pequena, magra e baixa como eu, mas sua pele era morena como se ela houvesse tomado algumas horas de Sol. O cabelo era tão preto como a noite, e os lábios naturalmente avermelhados. Mas o que mais chamava a atenção eram os olhos lilases, tão intensos que pareciam mágicos.

E Kishan parecia tão encantado com a mulher em seus braços quanto eu estava. Seu corpo estava coberto por uma bonita roupa tipicamente indiana, com o tecido negro cheio de bordados em dourado, destacando completamente seus olhos.

Minhas mãos estavam apoiadas contra os muros de plantas, e só percebi que haviam roseiras ali quando uma dor agonizante correu por minha palma, e vi sangue escorrer dos machucados dos espinhos.

Eu ainda estava caída no chão, sentada sobre os joelhos que não pareciam ter forças para aguentar meu corpo. Lágrimas caíam por minhas bochechas enquanto eu observava Kishan sussurrar palavras em híndi para Yesubai, que sorria alegremente.

Abracei meu tronco e balancei a cabeça como uma louca, fechando os olhos com forças e sussurrando para mim mesmo que nada daquilo era real.

Não era real, mas não deixava de machucar.

− Eu não quero ver isso, leve-me de volta – murmurei com raiva, esperando ouvir o som dos sinos que era tão familiar. – Eu não vou aguentar ver isso.

Mas nada aconteceu, e a cena em minha frente continuou a se desenrolar como um filme de terror.

− Case-se comigo, Yesubai – disse Kishan com a voz orgulhosa. – Eu amo você e nunca vou desejar outra mulher.

− Apenas eu? – ela perguntou e sua voz era tão graciosa quanto sua aparência.

Quão perfeita ela poderia ser?

− Apenas você – ele confirmou, tocando a cintura descoberta pelo sári da garota, antes de levanta-la no ar, girando-a em volta de si. – Meu coração é seu, e de mais ninguém.

Uma facada em meu coração teria sido menos dolorosa do que ser obrigada a ouvir aquelas palavras. Naquele momento eu queria enfrentar cem Hidras e um exército inteiro de sereias loucas, do que passar por aquilo.

− Ele é meu – murmurei continuamente aquelas palavras, apenas para que meu cérebro entendesse que aquilo não passava de uma ilusão.

Não era real. Não podia ser.

− Quero que me faça sua, Kishan. – Yesubai parecia decidida em suas palavras, o que me fez olhar para a cena mais uma vez, esperando a reação do príncipe que sorria malicioso para ela. – Quero ser sua de corpo e alma, quero dar-lhe uma família.

Suas bochechas estavam coradas, e eu percebi que naquele momento eles não falavam só de promessas amorosas. As mãos de Kishan apertaram mais a pele exposta de Yesubai, e senti o desejo envolvendo os dois.

− Fuja comigo e eu lhe darei tudo o que desejar – ele disse, aproximando o rosto para perto do de Yesubai até o momento em que seus narizes se encontraram.

Impulsivamente, agarrei a parede natural atrás de mim, e gemi quando os espinhos perfuraram minha mão mais uma vez. Mas nenhuma forma de dor física poderia superar o rasgo em meu coração naquele momento.

− Por que faz isso? Por que me obriga a ver coisas que me machucam? – gritei para o ceú, como um confronto a Durga, mas tudo o que recebi foi uma rajada de vento no rosto. – Ele é meu, Kishan é meu!

Aquelas palavras pareceram despertar algo na mulher que sorria para Kishan, e meu coração parou no momento em que sua cabeça virou em minha direção e seus olhos encontraram os meus de forma certeira.

Kishan estava imóvel, e tudo ao nosso redor estava estático. Yesubai sorriu para mim, mas não o sorriso doce que abria para o amado, mas algo maldoso e provocador. O véu que cobria o sári foi jogado no chão enquanto ela se aproximava de mim com passos lentos, estudando meu corpo como se tivesse pena.

− Pobre Mia, uma criaturinha tão pequena e frágil. – Suas palavras eram frias e zombeteiras quando Yesubai finalmente parou em minha frente, colocando a mão na cintura enquanto me encarava com um misto de pena de nojo. – Um ser tão mortal e inferior.

− Você não é real – murmurei com o maxilar trincado, enquanto buscava forças para levantar-me e revidar as palavras cruéis da mulher em minha frente.

− Você vai descobrir que eu sou mais real do que você gostaria – ela sussurrou, chutando meu corpo até que minha cabeça estivesse pressionada contra os espinhos das roseiras. Um grito animal saiu de minha garganta e eu usei as unhas em uma tentativa de lhe arranhar. – Eu estou dentro de você, sou o medo que você tem de perder Kishan.

− Eu nunca vou perde-lo – grunhi, enquanto contorcia meu corpo em uma tentativa falha de me soltar, mas os movimentos apenas faziam com que os espinhos me machucassem mais.

− São essas palavras que apenas fazem eu ficar mais forte, pois você sabe que é mentira. – ela cuspiu as palavras, jogando os cabelos negros sobre o ombro antes de apertar o pé contra minha barriga, fazendo com que o ar de meus pulmões fugisse. – Você deveria ter ouvido Ren, pobre Ren com o coração amargurado. Ele estava certo quando disse que a água é um elemento traiçoeiro, que esconde seus maiores medos.

− Eu não tenho medo de você, Kishan nunca a amou! – gritei com o último folego que tinha, antes de sentir meu corpo mole no chão.

− Então porque ele continuou gritando para os sete ventos que me amava até o momento em que morri? Por que ele se tornou tão incontrolável e raivoso quando viu meu corpo desfalecido no chão? – ela questionou de forma inocente, revirando os olhos como se tudo fosse uma encenação. – Ela nunca amou você, Amélia, porque o coração dele ainda pertence a mim!

Eu gemi, vendo ela abrir a mão sobre o ar, como se segurasse algo ali, antes de fechar os dedos em punho com um sorriso maníaco no rosto. Raiva e ódio queimavam em meu peito, fazendo-me respirar ofegante enquanto buscavas forças para sair do chão.

− Você enganou os príncipes, você manipulou Kishan – eu disse, com a voz mais firme do que nunca. Não deixaria mais ela me machucar, nunca mais. – Isso não é amor.

− Você nunca o terá, menina tola! – ela gritou descontrolada, acertando o punho fechado em meu rosto.

Instantaneamente senti o gosto de sangue em minha língua, e a cartilagem de meu nariz estava dolorida. Mas naquele momento em sorri da mesma forma louca que Yesubai, pois minhas mãos haviam alçado as adagas em meus coturnos, e em um movimento rápido eu lhe apunhalei a perna, ouvindo-a gritar.

Levantei-me como um pulo de gato e cuspi no chão de terra, vendo o sangue se espalhar. A mulher em minha frente uivava de dor, e seus olhos lilases brilhavam como a fúria de um leão, muito semelhantes aos de Lokesh.

Um arrepio percorreu meu corpo e minha guarda abaixou, portanto não percebi quando ela veio em minha direção, rodeando meu pescoço com as mãos, apertando-o. Minha taqueia se fechava a medida que Yesubai aumentava a força, mas eu apenas balancei a cabeça e sorri, sentindo sangue cobrindo meus dentes.

− Você pode me matar agora, mas isso nunca irá mudar o fato de que Kishan nunca amou você. Você nunca foi amada, nem por ele, nem por Ren e nem mesmo por seu pai! – Minha voz era fina e eu tossia, mas continuei desferindo palavras contra a mulher. – Eu tive pena de você, por ter alguém como Lokesh, mas agora eu vejo que vocês dois são iguais.

− Cale a boca! – ela gritou, apertando mais meu pescoço, fazendo minha cabeça girar devido à falta de oxigenação.

− Você não é mais nada para mim, só o resquício da insegurança que eu tinha quando conheci Kishan – eu sussurrei, forçando minha boca a continuar cuspindo as palavras. – Mas agora você é insignificante, pois eu sei que Kishan pertence a mim de uma forma que você nunca o teve, e eu vou me certificar de que você suma de uma vez por todas.

Pegando-a de surpresa, eu levantei a adaga negra com o restante de força que ainda me restava, e com os braços trêmulos, afundei a lâmina contra seu coração, fazendo-a gritar no momento em que me soltou.

Eu cai novamente no chão, e meu pulmão doía a cada lufada de ar que eu respirava, mas não tirei os olhos de Yesubai, que jazia no chão com os olhos arregalados e a boca aberta em um grito silencioso.

Meu corpo se arrepiou e tudo ficou escuro mais uma vez. Eu não estava mais no labirinto, e o silêncio tomou conta da escuridão. Olhei ao redor, esperando voltar ao templo de Durga, mas nada aconteceu.

Nós vamos voltar a nos encontrar.

Aquela voz não era da deusa, e cortava como navalha. Meu peito bateu mais forte e eu olhei em volta a procura da mulher de olhos lilases, mas tudo o que me rodeava era escuridão, até que eu fui jogada para dentro de outra imagem.

O tempo estava chuvoso e escuro, e o céu era cortado por raios constante. Eu estava dentro de uma floresta escura, e por alguns momentos achei que estava de volta a realidade, quando uma voz familiar chamou minha atenção.

− Kalika! – Era Ren, e ele parecia assustado e desesperado.

Corri pela floresta, sem me importar de ter galhos rasgando a toga branca que me cobria, e meus olhos piscaram quando sai da escuridão diretamente para um penhasco. O chão gramado estava encharcado de água, e a chuva castigava meu corpo, impedindo meus olhos de verem com clareza.

Continuei avançando até que encontrei o corpo de um homem mais do que familiar, usando as roupas brancas de tigre, que estavam encharcadas e sujas de terra. Ele estava de joelhos no chão, e suas mãos cobriam o rosto caído.

A imagem era devastadora, e meu coração se apertou no peito. Abri a boca para chamar o príncipe e tirá-lo daquela dor, quando meus olhos captaram mais uma pessoa perto de nós.

Uma mulher estava parada na ponta do penhasco, sem nenhuma gota de água no corpo. Ela era linda, mas seu rosto estampava dor. Os cabelos castanhos estavam presos em uma trança que caía por seu ombro, mas alguns fios insistiam em ficam para fora. Uma fita azul prendia o penteado, e a cor combinava com o sári que ela usava. Ambos os tecidos tinham a cor dos olhos de Ren.

Naquele momento, soube que estava de frente com Kalika.

A mulher estendeu os braços como se esperasse um abraço, mas sua boca chamava por Ren, que se balançava perto dela, escondendo os olhos daquela visão. Senti lágrimas correndo por minha bochecha e quis correr até onde ele estava, apenas para passar meus braços por seu corpo e confortá-lo.

− Por que você me deixou, Ren? Por que me deixou morrer? – ela sussurrava com a voz lamentosa. – Eu amava você, eu sempre amei você.

− Não foi minha culpa, não foi minha culpa – Ren repetia aquelas palavras como um mantra, sem nunca olhar para a mulher em sua frente.

− A culpa sempre foi sua, Ren – Kalika sussurrou como se falasse com um bebe. – Você sempre soube que nunca poderíamos ficar juntos, meu destino foi selado no momento em que nos conhecemos.

Eu queria agarrar Ren e correr com ele para longe de Kalika e suas palavras que mais pareciam navalhas, mas sabia que precisámos enfrentar aquilo.

Ren finalmente levantou a cabeça, e seus olhos despedaçaram meu coração. A dor em suas orbitas cobalto era tal, que eu soltei um longo ofego, segurando-me muito para não interferir na cena.

− O que eu posso fazer, iadala? – Aquele novo apelido acendeu a curiosidade dentro de mim, e percebi que era algo íntimo dos dois, pois Kalika sorriu com paixão.

− Junte-se a mim – ela disse, dando um passo para mais perto da borda do penhasco. – Juste-se a mim e eu serei para sempre sua.

Agitação tomou conta de mim enquanto eu olhava para Ren, que parecia preso em uma batalha interna. Minha garganta raspava e eu guardava um grito dentro de mim, enquanto esperava a decisão do príncipe.

Ele se levantou com dificuldade, e percebi que seu corpo tremia enquanto era castigado pela tempestade. Minhas mãos cobriram minha boca em surpresa quando Ren deu o primeiro passo em direção à Kalika.

− Para sempre – ele murmurou aquelas palavras com esperança e esticou uma das mãos em direção a Kalika, que se aproximava cada vez mais da borda do penhasco, enquanto o vento forte desarrumava sua trança.

Meu coração bateu mais forte, e minha mente não conseguia entender o que acontecia. Eu precisava interferir ou algo terrível aconteceria. A dor dos espinhos em minha cabeça era real o suficiente para eu saber que se Ren chagasse perto de Kalika seria o fim.

Meus pés que pareciam pedras momentos antes, começaram a correr em direção ao príncipe que dava passos incertos até a mulher que sorria, estimulando. Olhei para Kalika uma última vez e vi que seus pés descalços estavam equilibrando-se na ponta do penhasco.

− Ren, não! – gritei no momento em que meu corpo encontrou com o do príncipe, e meus braços rodearam sua cintura. Meus músculos gritaram de dor devido a extrema força que eu fazia para impedir que ele continuasse a se aproximar. – Ren, pare! Isso não é real!

Percebi que minha voz era dolorida e que lágrimas escorriam ferozmente por minhas bochechas quando os olhos cobalto de Ren finalmente olharam para mim. Seu corpo tremeu contra o meu e ele balançou a cabeça.

Minhas unhas agarravam o tecido branco de sua blusa como se aquilo fosse nos salvar, e eu afundei a cabeça contra seu peito quando espasmos começaram a percorrer o corpo de Ren, e ele gemia.

Nossas lágrimas se misturavam e seus braços apertaram minha cintura. A chuva nos molhava e colava ainda mais nossos corpos, gelados como se estivéssemos mortos. Sabia que Kalika ainda estava na ponta do penhasco, mas não tinha mais forças para enfrentar aquela cena.

− Você me deixou, Ren – ela sussurrou de forma dura e sofrida, e eu gemi no momento em que um rugido saiu do peito de Ren.

Toda sua dor me invadiu e eu me agarrei mais forte contra seu corpo, sabendo que Kalika havia caído pelo penhasco. Ren gritava e desferia palavras raivosas contra o céu tempestuoso sobre nós, e meu coração se desfez juntamente com o dele.

− Eu sinto muito, Ren – murmurei, finalmente olhando para seus olhos sofridos que estavam sem vida.

− Eu não consegui salvá-la – ele disse, olhando para algo além de mim, e soube que era o ponto onde Kalika estava parada antes de cair.

Em sincronia, nossas pernas fraquejaram e ambos caímos contra a grama lamacenta, ainda nos abraçando com força e intensidade. Minhas mãos subiram das costas musculosas de Ren até seu rosto, e eu o fiz olhar para mim.

Os olhos cobalto estavam vermelhos e inchados, e aquela visão fez com que eu continuasse a chorar. Levei meus lábios para perto de seu rosto e beijo-o na bochecha gelada, enquanto suas mãos fortes agarravam o tecido branco de minha toga despedaçada.

Deixei que a cabeça de Ren se escondesse em meu pescoço, e permaneci em silêncio enquanto ouvia os gemidos de dor que saíam do peito do príncipe.

Os minutos pareceram horas, quando ele finalmente levantou a cabeça e me encarou, abrindo um sorriso sofrido para mim. Seus dedos afastavam os cabelos molhados que grudavam em meu rosto e eu sorri de volta quando senti os carinhos que ele deixava em minha pele.

− Eu amo você, Mia – ele murmurou, fazendo com que eu arregalasse os olhos, enquanto meu coração se desfazia com aquelas palavras. – Fico feliz em saber que Kishan tem você.

− Eu amo você também, Ren – eu disse, sabendo que cada parte daquela frase era verdade. Ren havia se tornado algo constante e intenso na minha vida, e quando percebi, ela já havia se apoderado de um pedaço de meu coração.

Meu amor por ele não era arrebatador e intenso quanto o que eu sentia por Kishan, mas naquele momento soube que quando coloquei os olhos em Ren, ganhei o irmão que eu nunca tivera.

− Obrigada por me salvar – Ren disse, e não consegui distingui se fora um agradecimento por tê-lo tirado das garras de Lokesh ou de impedir que ele caísse junto com Kalika.

− Você vai ser feliz novamente, Ren, eu sei que vai – afirmei, balançando a cabeça contra seu peito forte, deixando que o perfume de sândalo me acalmasse.

Continuamos abraçados no chão por alguns minutos, até que uma ideia percorreu meus pensamentos como um piscar de olhos, e eu me afastei de Ren, olhando em volta apenas para perceber que ainda continuávamos no penhasco e nada havia mudado.

Minha cabeça martelava e eu tentava entender o que acontecia. Tínhamos enfrentado mais um desafio, mas ainda não havíamos voltado para o templo de Durga.

− Kishan – sussurrei, sentindo um aperto no peito.

Levantei-me com um pulo e agarrei o braço de Ren, puxando-o em direção a floresta. Meus pés corriam como se eu estivesse em uma maratona, e olhei para trás apenas para encontrar o príncipe de olhos azuis me acompanhando meio desengonçado.

− Onde estamos indo? – ele perguntou enquanto cortávamos a floresta escura com dois raios.

− Encontrar Kishan – respondi, saltando sobre um tronco velho caído no meio do caminho.

Minhas pernas gritavam de cansaço, mas por nenhum segundo eu deixei que meu corpo descansasse. Não até eu encontrar Kishan.

Quando achei que a floresta nunca acabaria, tudo sumiu em nossa volta, e nós fomos jogados para dentro de outra cena. Meus olhos piscaram com a mudança brusca e eu entrelacei meus dedos com os de Ren apenas para garantir que eu não estava sozinha ali.

Tinha medo de saber qual seria a visão de Kishan.

Não chovia mais, mas minhas roupas ainda estavam molhadas e pesadas. A dor em meu rosto estava insuportável, mas nenhum sangue escorria mais pelo nariz. Minha cabeça vibrava com os machucados dos espinhos, mas em nenhum momento deixei de ficar atenta.

Nós estávamos dentro de uma casa, muito pequena e com móveis antigos. A lareira da sala estava acesa ao nosso lado, e tudo ali parecia muito acolhedor. Meus olhos captaram um porta-retratos em cima da mesinha de centro da sala e meus dedos se fecharam em volta da moldura.

Duas crianças sorriam para mim. Uma menina tinha os cabelos castanhos presos em duas tranças, e ela tinham o espaço vazio onde deveriam estar os dentes de leite. O que mais me perturbou foi a semelhança de seus olhos com os meus. No seu colo estava um bebê, o qual me fez segurar um ofego ao perceber que era muito semelhante à uma foto de Matt quando pequeno, que seu pai havia me mostrado.

− Onde estamos? – perguntou Ren, que também olhava para a foto em minhas mãos com incerteza.

− No medo de Kishan – respondi, devolvendo a moldura para o lugar em que estava, e deixei que meus olhos vasculhassem a sala mais uma vez, até encontrar quem eu procurava, sentado em uma poltrona de couro.

Ele encarava uma parede em sua frente e seus olhos estavam cansados e cheios de dor. Suas mãos agarravam os cabelos negros e ele balançava a cabeça em negação.

Aproximei-me lentamente da poltrona em que Kishan estava, vestindo as roupas negras de sempre. Senti a mão de Ren contra meu ombro quando finalmente encarei o que perturbava o príncipe com olhos de pirata.

Um ofego saiu de meus lábios mais uma vez, quando vi milhares de porta-retratos pendurados na parede oposta a nós. Nas molduras, aquelas crianças apareciam várias vezes, mas o que me fez arregalar os olhos foi ver eu mesma naquelas fotos.

E Matt estava comigo.

Em uma delas, eu vestia um longo vestido de casamento branco e rendado. Eu estava de lado, segurando as mãos de um homem com um sorriso enorme no rosto. O homem em minha frente era Matt, e ele usava um terno preto e parecia igualmente feliz.

Em outra foto, Matt e eu nos beijámos em frente à um grande jardim. A foto que mais chocou-me foi a de mim, sorrindo alegremente para a câmera enquanto segurava um bebezinho nos braços, aquele mesmo bebê que estava no colo da menina na foto da mesinha de centro.

Eu estava deitada em uma cama, e a menina de olhos iguais aos meus estava ao lado, segurando um balão colorido que dizia: “É um menino! ”

Não tive tempo de esboçar mais nenhuma reação, pois o barulho da porta da frente sendo destrancada chamou minha atenção. Entrando na casa, estava eu.

Ou uma versão muito mais cansada de mim mesma. Meu cabelo estava completamente liso e mais curto, e eu usava uma franja curta na testa, que estava bagunçada de um jeito charmoso. Nas mãos eu carregava uma bolsa juntamente com um jaleco branco.

A Mia em frente aos meus olhos suspirou exausta, jogando as coisas em cima da mesa de um dos sofás. Gritinhos invadiram meu ouvido, e tanto eu quanto a versão cansada de mim voltamo-nos para onde uma menina corria, vestindo um pijama de flores.

A garotinha abraçou a mãe, que a pegou no colo. O rosto cansado deu lugar à uma expressão amorosa, e a minha versão mais velha beijou o topo da cabeça da menininha.

− Mamãe! – A voz infantil de um menino encheu meus ouvidos, e eu olhei para onde Matt aparecera, carregando nos braços o bebê que era uma cópia fiel do meu melhor amigo.

Matt também parecia mais velho, e sua beleza colegial havia dado lugar a uma beleza mais madura. Ele vestia jeans e uma camisa de flanela por baixo da regata preta; seus cabelos loiros estavam tons mais escuros, mas ele tinha o mesmo sorriso encantador de sempre.

Ele se aproximou da minha versão adulta e sorriu antes de deixar um beijo rápido nos lábios da mulher. Eu ofeguei e dei um passo para trás, finamente entendendo o que era o medo de Kishan.

− Fique firme, Mia – sussurrou Ren em meu ouvido e eu mordi o lábio, controlando as lágrimas.

O bebê deixou um beijo molhado na bochecha da mãe, e minha expressão parecia de completo êxtase enquanto olhava para Matt.

− É bom vê-la em casa, amor – disse Matt, entrelaçando a mão que não segurava o bebê nos meus, e um par de alianças brilharam.

Na visão de Kishan, Matt e eu éramos casados.

Sem mais conseguir encarar aquela visão, voltei meus olhos para Kishan, que assistia a tudo com um ar de dor. Os músculos dos braços estavam tensionados e ele chorava; lágrimas escorriam livremente por seu rosto moreno e eu fechei os olhos, sentindo meu coração rasgar.

− Eu queria tanto poder lhe dar algo assim. – A voz de Kishan encheu o cômodo enquanto a família parecia feliz, sem perceber nossa presença.

− Você já me deu – murmurei, mesmo sabendo que ele não me ouviria.

− Mas essa maldição não me deixa lhe dar algo assim – ele disse, estendendo a mão em uma tentativa de tocar a Mia adulta e casada. – Eu quero lhe dar uma família, quero tanto lhe fazer feliz.

− Você já me deu tudo isso! – disse frustrada, passando os dedos por meus cabelos para controlar o furacão de sentimentos que me dominava.

− Eu sempre soube que ele poderia lhe dar algo assim, mas fui egoísta e a quis só para mim – ele rugiu com raiva, esbarrando o braço em um vaso que repousava em uma mesinha ao lado da poltrona.

Eu não conseguia mais ver aquilo, dor corria meu corpo como ácido, e meus olhos não suportavam ver Kishan daquela forma.

Soltei-me de Ren e corri até Kishan, parando em sua frente e tomando seu rosto em minhas mãos em um momento de euforia. Quis tampar sua visão daquela versão minha que nunca existiu.

Queria acabar com o sofrimento em seu rosto.

Em um ato impulsivo, selei nossos lábios. Os meus gelados e molhados e os dele quentes e convidativos formaram algo tão intenso quanto meus sentimentos por Kishan. Senti quando o corpo do príncipe se acendeu novamente, e soube que meu tigre estava de volta quando suas mãos seguravam meus braços, tocando minha pele fria como se quisesse ter certeza que eu era real.

Rocei minha língua contra os lábios de Kishan que não tardou em aprofundar nosso beijo, gemendo baixinho apenas para que eu escutasse. Coloquei todo o meu coração naquele beijo, e colei nossos corpos, sentando em seu colo naquela poltrona.

Não parecia o suficiente sentir a pele dele passando correntes de calor para o meu, eu queria senti-lo de todas as formas, precisava me fundir a Kishan. Nossas línguas travavam uma batalha, e soube que parecíamos dois animais famintos enquanto nos beijávamos.

Kishan tinha um gosto viciante, e eu não cansava de passar minha língua em seus lábios cheios e convidativos, até que não consegui conter um gemido e me derreti por completo quando meus dedos encontraram os cabelos negros do tigre.

Com certa dificuldade Kishan afastou nossos lábios, e seus olhos de pirata agora brilhavam como sempre, enquanto ele estudava meu rosto com um misto de alegria e confusão. Eu apenas sorri e abracei sua cabeça, fazendo com que ele afundasse o rosto contra meu pescoço, e senti pequenos beijos molhados ali.

− Nunca mais sinta medo de me amar – eu disse com a voz firme, fazendo com que ele olhasse mais uma vez em meus olhos azuis acinzentados. – Você é tudo o que eu preciso, e nunca pense que você não é o suficiente.

− Mas... – Não deixei que ele continuasse, colocando um dedo sobre seus lábios carnudos.

− Você já me deu tudo aquilo – eu disse, colocando a mão sobre onde seu coração batia forte. – Quando me deu isto.

Kishan sorriu, e a sua alegria e paixão aqueceram meu coração mais uma vez. Senti suas mãos acariciando meu rosto e seus lábios começaram a se aproximarem dos meus quando fomos envolvidos pela escuridão.

Com medo olhei para o lado e estendi a mão para Ren, que a segurou com firmeza enquanto caíamos no nada. Pareceram-se séculos aquela queda na escuridão até o momento em que senti meu corpo contra algo gelado, e forcei meus olhos a se abrirem.

Pisquei com a claridade, e assim que foquei meu olhar no templo em nossa volta eu suspirei aliviada. Minhas mãos eram apertadas pelos dois príncipes, e os olhei com um sorriso e percebi que tanto Ren quanto Kishan pareciam aliviados por estarmos de volta.

Olhei para meu corpo e percebi que estava com a toga esfarrapada, minha pele ainda brilhava como escamas de sereias, mas estava dolorido e machucado. Estendi minhas mãos e encontrei os arranhões deixados pelas rosas, mas aquilo parecia seu o único resquício do meu encontro com Yesubai.

Uma mão se estendeu diante ao meu rosto, e eu sorri, agradecendo a ajuda de Kishan com um sorriso quando finalmente fiquei de pé.

Não tivemos tempo para nenhuma palavra trocada, pois o som de sinos me invadiu de forma acolhedora e eu olhei para um ponto atrás de Kishan. Onde antes estava a estátua de Durga, agora eu podia ver uma mulher de cabelos negros muito escuros. Sua pela tinha um tom azulado, e seu sorriso me lembrava as ondas de uma praia.

Ela usava um vestido que eu podia jurar ser feito de água corrente, e em uma de suas mãos estava um enorme tridente, enquanto a outra acariciava o pelo do tigre negro aos seus pés.

Foquei meus olhos nas órbitas vermelhas da deusa e ela sorriu para mim de forma maternal, enquanto abanava as mãos para que nos aproximássemos.

Ladeada pelos dois irmãos, subi as escadas de concha até estar em frente a deusa, que possuía uma postura firme e poderosa, ao mesmo tempo em que Damon olhava de forma protetora para sua deusa.

− É bom ver meus dois tigres – ela disse como se cantarolasse, e mexeu dois de seus braços para tocar as bochechas de Ren e Kishan.

Olhei para o lado e Ren parecia um tanto desnorteado frente a Durga, mas imagino que não seja muito fácil encarar uma deusa grande e imponente em sua frente, mexendo oito braços que carregavam armas.

Kishan tinha os braços cruzados contra o peito e manteve a expressão séria. Percebi que ele não parecia muito amistoso com Durga desde nosso encontro no templo do fogo.

− Por que Ren e Kishan participaram dos desafios? – perguntei, chamando a atenção dos olhos vermelhos da deusa de volta para mim.

− A água é mesmo um elemento perigoso, que pode esconder os maiores medos das pessoas – ela disse, e eu estremeci ao lembrar das palavras de Yesubai. – Você enfrentou a visão de um dos medos que corroía seu coração, Amélia, e os príncipes precisaram de sua ajuda para enfrentar os deles.

− Qual foi a razão disso tudo? – Ren perguntou, e percebi que estava tenso como o irmão.

− A cada parte da maldição quebrada, vocês são purificados da maldição – explicou Durga com a voz séria. – Precisava garantir que meus dois tigres se livrassem dos medos de seus corações para lhes darem mais seis horas como homens.

Um sorriso se abriu em meus rostos quando as palavras de Durga se materializaram em minha mente, e eu olhei para Kishan, que retribuiu meu sorriso de forma singela.

Os irmãos finalmente teriam mais seis horas como humanos. Agora eram doze horas.

− Quero lhes avisarem de algo. – Durga chamou minha atenção, e uma sensação ruim correu meu corpo. – Algo maligno espreita a jornada de vocês, e não há nada que eu possa fazer para salva-los fora de minhas casas.

Suas mãos abrangeram todo o templo em nossa volta, e ela olhou fixamente para mim, como se os dois irmãos não estivessem mais ao meu lado.

− Ele vai usar de todo o poder que tem para atingir você, Amélia, seja forte. – Não precisei perguntar quem era “ele” para saber que Durga se referia a Lokesh. – Siga a sua intuição sempre.

Damon rugiu um tanto impaciente aos pés da deusa, e o barulho de sinos encheu meus ouvidos quando Durga riu e acariciou o animal com uma mistura de alegria e amor. Senti os dedos de Kishan tocando minha mão, e entrelacei nos dedos com firmeza.

− Você é uma garota corajosa, Amélia, nunca se esqueça disso – disse Durga, mexendo em uma das mãos vazias em minha direção, e eu olhei para onde um brilho chamava minha atenção.

No dedo médio de minha mão esquerda estava um anel delicado que brilhava dourado como ouro, e prendi a respiração ao ver que a joia vermelha por cima do aro formava uma rosa bem trabalhada. Virei a mão e encarei a palma completamente lisa, sem nenhum machucado dos espinhos.

Levantei a cabeça para agradecer Durga, mas a mulher já havia dado lugar a estátua inanimada, e eu voltei a encarar o presente com certo carinho.

Ela queria que eu me lembrasse de minhas batalhas.

Os lábios de Kishan contra meus cabelos chamaram minha atenção, e vi que seus olhos de pirata estudavam meu novo anel enquanto seguia o irmão escada a baixo. Ren sorriu para nós quando finalmente passamos pela porta do templo e jogou o braço por cima do ombro do irmão de forma brincalhona enquanto começávamos a descer a longa escadaria.

− Qual foi a sua visão?− perguntou Kishan com um sussurrou contra meu ouvido, e eu senti minha nuca se arrepiar.

− Vamos dizer apenas que encontrar ex-namoradas é uma experiência bem dolorida – disse com um sorriso arteiro em meus lábios.

Kishan parou e ficou me encarando estático. Meus pés correram quando finalmente desci o último degrau. Não chovia mais e eu podia ver o Jeep estacionado no gramado molhado, enquanto Kadam acenava para nós.

Poucas horas haviam se passado, mas a saudade de Kadam já batia em meu peito.

Meu coração batia forte enquanto o vento gelado lambia meu rosto, e eu olhei uma última vez para onde os irmãos que estavam parados, e sorri.

− Vocês vão ficar aí, tigres?

Continua...