Casa da Colina

You are in the jungle baby. You are gonna die.


Califórnia, São Francisco.

30 de janeiro de 1988.

—Welcome to the jungle baby !

Foi o que um cara disse logo que eu nasci. Eu, um bebê que aparentemente nasceu pequeno e prematuro, alguns fios de cabelo castanho escuro e olhos azuis. Um par de olhos brilhantes e curiosos é o que dizem. Quem é este cara que citou isso quando nasci ? É o meu tio, irmão de meu pai, o cara mais importante de toda a minha vida. Não esquece dele ele é importante.

Meu tio se chama Ulisses Birnfield, sim como aquele personagem mitológico grego de Homero, mas acho que ele nunca deu a mínima para o significado do nome dele. Roqueiro das antigas,alto e magro assim como eu, com cabelos longos lisos e castanhos até a metade das suas costas, músico e um completo babaca pelo fato de ter 30 anos e morar com a mãe (ele é o mais novo de três irmãos, então acho que é perdoável) sem falar que foi chutado pela ex esposa e ainda tenta seu estrelato com sua banda, a Eleonore. Um perfeito headbanger e um senso de humor um tanto superior ao normal, era um maluco na opinião que hoje formei sobre ele.

O que esse maluco tem a ver comigo ? (além do fato de ele ser irmão do meu pai). Tudo! Digamos que o rumo da minha vida seria extremamente diferente (muito mais do que eu já consegui imaginar) se esse cara não tivesse interferido um pequeno ponto no meu destino.

Não fui criada pelos meus pais, Samanta e Tony Birnfield , apesar de eles estarem bem vivos, o problema fora as condições de moradia. Eles moravam em um apartamento pequeno, com apenas três cômodos e ainda pagavam aluguel e não tinham espaço para uma garotinha cheia de energia, sem contar o fato de que eles trabalhavam, trabalhavam muito e não havia condições de cuidar da pequena Doris e pagar as contas, ou era uma coisa ou outra, o que resultou em eu ter que ir morar com a minha avó paterna e tio Ulisses e não foi de nada ruim.

A música era o centro da vida de Ulisses, ele praticamente respirava a música. Dava aulas de diversos instrumentos (apesar que seu forte eram as poderosas guitarras elétricas) e durante a noite ele era guitarrista e às vezes estava nos vocais da Eleonore, a sua banda. Era um músico incrível! Não digo isso porque o admiro e sou sua sobrinha, mas ele era fantástico!

A Eleonore era composta por ele e seus amigos, e a banda teve seu início quando eles tinham 14 anos de idade (mais ou menos). Um dos membros da banda era o melhor amigo de Ulisses , Marcelo Lindstorn ,mas todos os chamavam de Lizzy (até hoje o que sei sobre este apelido é de que fora o nome de uma ex namorada dele, e ele era louco por ela). Pra mim era tio Lizzy, um cara com pinta de durão play boy um pouco mandão, guitarrista da banda e responsável pelos solos marcantes nas musicas. Sua aparência era marcante, com cabelo loiro comprido e belos olhos azuis que sempre me despertavam curiosidade, um cara legal para uma garotinha como eu. Tio Lizzy é o tipo de cara que uma garota de quatro anos possa se apaixonar, ele tinha um jeito diferente de ser com os seus longos cabelos que nunca estavam desalinhados, lembro-me de que ele tinha um carinho enorme por mim, mesmo eu tenha vagas lembranças desta época, mas o que mais me chamava a atenção (acho que já falei disso) eram o seu belo par de olhos azuis, eu era uma criança, mas achava lindo seus olhos. Lizzy era muito gato!

Outro membro da banda eram Otto , o baterista alto que explodia em seu instrumento, ele era forte em suas pancadas e Ulisses sempre dizia que um dia ele iria desmontar a bateria em pleno show, acho que isso realmente aconteceu uma vez. Lembro-me de ele ser piadista e engraçado, se dava muito bem com crianças porque eu o adorava, era visível o quanto ele gostava de ter longas conversas não muito reflexivas comigo, adorava ter sua atenção. Tenho que dizer que hoje nada sei sobre Otto Austin, acredito que ele tenha assumido uma vida normal, longe da música com um emprego fixo e família, mas de nada tenho certeza.

Tinha também na Eleonore Peter Baker, o baixista de barba espessa, alto de olhos verdes, casado com a irmã de tio Lizzy, e que já tinha um filho de dois anos, o Gabriel, mas o chamávamos de Kato (nunca soube o motivo, quando eu nasci já chamavam o garoto assim). Tio Peter (como eu chamava) era bem reservado , quase nunca demonstrava suas emoções e reações, sempre estava na dele vestindo uma camiseta do Ramones, lembro-me de que ele gostava muito de solos de violão apesar de ter escolhido o baixo como instrumento, ele nunca se via com “apenas um baixista” , e dizia que “baixistas são essências, mais do que imaginamos, para o som de uma banda e só um bom baixista pode preencher belissimamente uma música”. Ele era um tanto poetizado em suas palavras, sempre foi de um jeito romântico.

Quando eu tinha quatro meses, o primeiro filho de tio Lizzy nasceu. Isso no dia 20 de abril de 1988. Era um garotinho com poucos cabelos dourados e olhos azuis iguais ao do seu pai que viria a se chamar James. Ulisses foi escolhido como seu padrinho, apesar que nunca seguiam o cristianismo tradicional, a função de padrinho era um mero rótulo de ligação emocional.

— Esses garotos vão ser grandes músicos, vão tocar juntos no mundo todo e revolucionar o mundo da música !

Sorria Ulisses acreditando em um futuro certo para os pequenos. Acho que ele deveria estar bem bêbado toda vez que falava isso, ele bebia com a mesma frequência com que dizia essas palavras. Todos riam quando ele falava sobre, acho que nunca levaram a sério.

Dois anos depois, outro filho de Lizzy nasce, também de cabelos dourados e olhos azuis iguais do pai e do irmão mais velho, este se chama Zachary, mas o chamamos de Zach. Isso porque o nome do garoto é muito extenso, Z-A-C-H-A-R-Y.

—Agora a banda está completa!- disse Ulisses, mais uma vez orgulhoso ao segurar seu "sobrinho" Zach pela primeira vez em seus braços. Desta vez não bêbado, ele evitava as bebidas quando estava perto das crianças.

Partir de então, eu não passei um dia se quer sem ter isso na cabeça, que eu , Zach, James e Kato iríamos ser uma banda marcante para o mundo da música... É mais ou menos isso. Que grande ironia é a vida não é mesmo Doris Birnfield?

Os garotos se tornaram meus melhores amigos, mas de quem mais me aproximei foi de James. Na época era só uma garoto que eu conhecia, não sabia o significado de amizade ou "melhores amigos" , ele era meu confidente e eu era a dele , apesar que nossos segredos eram a nível “quem havia quebrado o copo da cozinha”.

Ele tinha medo de dias de tempestades, principalmente dos trovões (isto era um segredo). Quando penso na minha infância com James é a primeira coisa que vem da minha memória. E eu dizia a ele que tudo ia ficar bem. E para esta lembrança tenho um dia em especial:

Era normal o fato de James passar as noites na casa de minha avó Alice , junto de mim e de tio Ulisses, e em um certa noite houve uma tempestade. Eu estava em meu quarto e James no sofá da sala (ele era muito durão para dormir em um quarto de menina, e ao lado de uma menina). É claro que raios e trovões surgiram em meio a tempestade, lembro-me de ser barulhos estrondosos e amedrontadores até pra mim que não tinha problemas com esses fenômenos da natureza, mas para James não, acredito que para ele era quase o fim do mundo.

—Doris ! Acorda Doris – a porta se abre e eu pulei assustada acendendo meu abajur rosa ao lado da cama.

— O que foi James !

— Posso dormir com você? – ele pergunta segurando seu travesseiro azul e usando um pijama também azul de botões e seus cabelos loiros estavam desarrumados, lembro-me exatamente.

— Por que ?

— Você sabe porque...- ele diz enquanto há um clarão no quarto provocado por um raio, e depois veio o estrondo que fez James pular para a cama.

—Ta bom! Você dorme do outro lado – falei e o garoto loiro deitou do lado ao contrário da cama, com os pés quase no meu rosto, e como infantil que era, passou algumas horas me infernizando com os seus pés no meu rosto.

Tínhamos apenas nove anos. Nesta época não havia problema de ele dormir ao meu lado não é? Não éramos como somos hoje, cheios de malícias, tão idiotas, e ainda assim muito imaturos.

Como toda criança, tínhamos inúmeras brigas é claro. James sempre foi um garoto mimado e todos se encantavam pelo fato de ele ser um garotinho loiro de olhos azuis, eu era sempre a culpada das brigas. Sempre.

Íamos a escola juntos e éramos da mesma turma. Ele era implicante comigo até na escola. Eu não tinha muitos amigos, e já ele tinha uma pequena turma, que nada mais nada menos era toda a turma da sala. Tenho que dizer que essa parte da minha vida era horrível, mas pior eram as garotas que faziam amizade comigo por causa de James! Isso era demais pra mim! Ele não era um galanteador é claro, mas QUAL O PROBLEMA DE GAROTOS LOIROS DE OLHOS AZUIS NESTA SOCIEDADE FEMININA! ?

A escola pra mim foi horrível enquanto estudei com James, ainda mais que eu era uma garotinha um tanto abaixo do peso e um tanto alta para a idade, apelidos para mim não faltavam, o mestre em apelidos era James é claro. As vezes ele me pedia desculpas, mas isso longe dos amigos. Na minha concepção, crianças são os seres mais maquiavélicos que existem!

Já Zach era como o meu irmão mais novo, quando ele teve idade o suficiente para interagir comigo ele acabou sendo o meu melhor amigo, o que causou um certo ciúmes em James e ocasionando mais brigas. Ironicamente, não acha? Nunca briguei com Zach, nem quando criança, nem depois. Ok, apenas uma briguinha ou outra, nada de discussões, não consigo ficar furiosa ou para de falar com Zach! Não sei se é pelo fato de ele ser dois anos mais novo ou porque ele era bem diferente do irmão, sim ele é bem diferente do irmão, nada de se fazer de mimado ou me provocar, colocar apelidos, ser o gatinho da escola, Zach era apenas o Zach , divertido, companheiro, amigo, ele tinha um carinho por mim e eu tinha por ele e nesse período eu tinha um amigo, um defensor nas vezes em que alguém na turma de James e até o próprio James me provocavam.

—Queria que você fosse minha irmã Doris, ao invés de James– uma vez Zach disse depois de um briga com o James. Eles sempre diz isso pra falar a verdade. Também sempre desejei que fossemos irmãos maninho.

Enquanto a Kato, éramos amigos, ele era mais velho e não participava muito das atividades que eu James e Zach fazíamos, estava sempre em seus vídeo games, até que um dia descobriu a música e teve o seu primeiro baixo, sendo influenciado pelo pai. Gostava, e achava incrível ter um amigo mais velho, e poder conversar com um garoto mais velho era destaque em meio aos pirralhos da escola.

Mesmo sendo todos crianças pequenas, íamos aos shows da Eleonore e acabávamos dormindo no furgão velho de Ulisses o resto da noite. Aquilo não nos fazia mal, era o mundo que conhecíamos, o mundo da música.

Tio Ulisses se esforçou o máximo para nos ensinar o que passou a sua vida toda para descobrir sobre rock ou metal, ou música em si. Ele nos fazia escutar discos e fitas de inúmeras bandas, ouvíamos até decorar e então cantávamos para os membro da Eleonore em ensaios da banda, amávamos aquilo! Era tão ingênuo.

Quando eu e James tínhamos aproximadamente sete anos, Zach cinco e Kato nove , éramos projetos de headbengers. Eu tinha cabelos castanhos muito longos e desgrenhados, enquanto James e Zach tinham cabelos loiros e compridos até os ombros, Kato era o único que era mais “normal” aparentemente. Todos com as mentes envenenadas pelo rock e pela música, e tendo o sonho de serem “estrelas do rock” como seus ídolos.

Foi nessa época que eu e James ganhamos nossa primeira guitarra elétrica, não era uma guitarra daquelas que tem um som impecável, era apenas uma guitarra para pirralhos sonhadores, a minha vermelha e a dele era azul. Com um pouco mais de idade Zach ganhou seus primeiros pratos de bateria, até ter uma bateria completa e dar os seus primeiro socos, ele queria ser igual a Otto.

É claro que os meus primeiros acordes, escalas, solos, etc.. foram ensinados por tio Ulisses que ensinava James a tocar junto comigo. Zach fazia aulas com Otto, que era muito divertido, e Kato com seu próprio pai, mas depois de um tempo ele partiu para outros instrumentos. Sim, foram os caras da Eleonore que nos influênciaram em praticamente toda a nossa formação bizarra do rock... quero dizer, envenenou nossas mentes prematuras.

Foram nessas aulas que fora descoberta a minha afinação vocal (era um tanto surpreendente pra voz de uma garotinha que não tinha nem dez anos) , os sopranos ,agudos e os graves foram aparecendo assim com algumas dificuldades e novidades musicais. Saber cantar não é simplesmente abrir a boca e soltar a voz, mas eu tinha uma certa habilidade que consegui controlar isso, e tudo foi sendo trabalhado. Já com o tempo James foi moldando sua voz forçadamente, mas ele não era muito bom o que ocasionou em “ciúmes da voz da Doris”.

Entramos em diversos festivais infantis de música, era a melhor parte da minha vida! Não ganhamos todos os festivais e estávamos longe de ser os melhores e de ser “estrelas do rock” e eu não tinha uma afinação perfeita assim como os instrumentos que tinham um som um tanto sujo, em partes porque não tínhamos tanta experiência com palcos e com o próprio instrumento, mas amávamos aquilo! E isso, jamais voltaria.

Quando eu tinha meus dez anos de idade, a Eleonore tivera a oportunidade de fazer um show na Florida, do outro lado do país, e assim foram a procura de seus sonhos, era a primeira vez que a banda fora reconhecida tão longe de casa, pois o mercado da música nunca foi fácil.

Na noite de 18 de julho de 1998, quando a Eleonore estava voltando no furgão velho de Ulisses com o próprio ao volante, no meio da estrada, não se sabe o porquê nem como, o furgão sofre um terrível acidente arremessando Ulisses e Peter, que estavam nos bancos da frente, para fora do furgão que segundo dizem, estava com os freios desajustados. Isso é o que me contaram. Apenas isso.

No dia seguinte, me trouxeram a notícia.

A realidade derramou prematuramente sobre mim.

Me perguntava se ele iria voltar e se aquilo era temporário, mas com o passar das horas comecei a perceber que aquilo era bem real. Meu desespero fora aumentando a cada momento, eu sentia uma dor inexplicável, eu não só chorei, mas berrava, não eram berros de uma menina querendo chamar a atenção, eram berros de dor, dor da perda.

Eu tinha pais, família, amigos mas me sentia sozinha. Posso dizer que jamais senti esta dor antes, e eu tinha apenas dez anos e cheia de sonhos que incluíam tio Ulisses, e ele se fora para sempre junto com Peter. Sim ,Peter se fora juntamente com Ulisses.

O trauma em todos foi enorme, nunca soube como Kato ficou por perder o pai (nunca tive a oportunidade de perguntar isso a ele) mas eu me senti sozinha e com um vazio enorme em mim e na minha vida, e isto para o resto dela.

Foi o meu primeiro contato com a morte.

Meu pai me carregava no colo, todos a minha volta vinham falar comigo e diziam algumas palavras que eu não dava ouvidos. Enxugava os meus olhos com raiva e tristeza, eu apenas não queria ter passado por isso. Vê-lo morto em um caixão foi o pior de tudo, eu desejava que a qualquer momento ele levantasse, e eu não teria medo disso, eu iria para seus braços. Esperei, mas isso não aconteceu, e assim entregaram seu corpo a terra.

Para eu não sofrer, meus pais acharam melhor eu me separar dos garotos. Comecei a estudar sozinha em casa e não fui mais a escola. Não sabia como chegar sozinha até a casa de tio Lizzy, e muito menos sabia o seu telefone. Voltei a morar com os meus pais em uma casa grande e própria desta vez. Isolada de tudo nos meus dias cinza.

Minha maior alegria era a música, ou aquilo que restara dela. Eu a busquei sozinha dentro das limitações que eu tinha, já que meus pais não gostavam disso, deste "mundo ilusório da música" que eles chamavam. Acredito que em parte sua aversão pela música vinha da morte de Ulisses e de Peter, mas de um certo modo enquanto eu tocava minha guitarra vermelha, me sentia conectada com ele, por algum motivo que nunca entendi.

Eu deixei James, Zach e Kato. Tive que seguir outro rumo. E o destino, ele não quis assim.