Estava começando a achar que minhas folgas eram zicadas. E não tinha nada que tirasse isso de minha cabeça. Eu estava animada de verdade porque hoje eu consegui trocar meu plantão e vir para casa, iria ver a equipe – eu nem sei o porquê ainda os chamava assim, - e ia ficar com a minha irmãzinha.

Até que recebi uma mensagem. Na verdade, foram seis. Sobre o mesmo assunto. A mais apavorante veio de Abby.

A Jibblet tá doente!! Tá muito mal!! A Jenny falou que é dor de cabeça, mas eu acho que é coisa mais grave.

Se o intento da Abbs era me apavorar, ela conseguiu. Ia ligar para McGee ou Tony, os mais sensatos – nem pensar que ligaria para Ziva – até ter uma certeza do que estava acontecendo para, então, ligar para Jenny.

Foi quando eu recebi as demais, embora menos alarmantes, me diziam que algo estava errado. E se até a reservada Cynthia tinha me mandado mensagem, algo estava muito errado.

Ziva foi outra que me mandou também. Teoricamente eu queria ignorar a dela, porém, na minha pressa, acabei por responder a todos.

Diante de todo esse alvoroço, parti correndo para casa.

Tentei ligar para Jenny dez vezes e ela não me atendeu. Mandei um monte de mensagens e não recebi nenhuma resposta. Foi o que bastou para que eu entrasse em desespero de vez.

Era muita injustiça que minha irmãzinha estivesse doente!

Parei na entrada de carros de casa. Nem me importei se iria bloquear o carro de Jenny pela manhã, e depois de pegar as minhas coisas correndo – e derrubá-las também! – corri para a porta. Não precisei tocar a campainha, todo o barulho que fiz denunciou a minha presença, e a porta fora aberta.

— Jen, o que tá.... – Eu parei ao fitar quem abrira a porta para mim. – Mas o que você está fazendo aqui? – Cuspi a palavras e busquei pela dona da casa ou por Noemi.

— Oi, Kells. – Meu pai me disse.

Eu olhei para o meu carro. Queria ir embora o mais rápido possível. Estava além de magoada com ele. Dei um passo para voltar e buscar outro lugar para ficar, tenho certeza de que Ducky não se importaria de me ceder o sofá, quando uma voz do alto da escada me ordenou.

— Entre, Kelly. Vocês dois têm muito o que conversar.

Supliquei com o olhar para que ela me deixasse sair, mas além do tom de voz que impedia qualquer reposta de minha parte, Jenny tinha aquele olhar de mãe que não está pedindo. Está mandando. E, mesmo que eu já fosse velha o suficiente para ter a minha própria vida, e mesmo que ela não fosse a minha mãe, eu a obedeci, entrei na casa, tirei os meus sapatos e olhei desamparada para qualquer lugar menos para o meu pai ao meu lado.

— Vão para o meu estúdio. Ninguém vai interrompê-los lá. – Ela tornou a falar.

— Como está a Soph? – Perguntei. Vi que meu pai já estava indo para lá e esperei que ele entrasse para que eu soltasse a minha frustração com a situação. – Por que ele está aqui? Ele nem se importa!

— Sophie está um pouco melhor, pelo menos não teve mais enjoos, mas ainda está com muita dor de cabeça. Duvido que ela vá conseguir dormir tão cedo, converse com seu pai e venha vê-la.

Eu bufei para a última parte.

— Jen... – Pedi.

— Vocês dois estão precisando disso, Kelly. Vocês precisam resolver isso, essa situação está cobrando um preço absurdo nos dois. – Ela desceu para pegar as minhas coisas. – Vá. Vou arrumar o seu quarto.

— Onde está a santa Noemi?

— De férias.

— Por que tudo tem que acontecer nas piores horas? – Murmurei.

Jenny me deu um leve empurrão no ombro, como que mandando seguir meu pai. Quis ser uma criança e fazer birra, dizer que não ia.

— Ele conversou com a Sophie?

— Mais ou menos... ela que ainda está com receio dele. E eu conheço seu pai, ele não está feliz com isso.

— E você? Ele...

— Nós dois somos um assunto diferente. Você e Sophie são as filhas dele. Família primeiro. Agora vá. – Novamente ela usou aquele tom de mãe. Eu não pude dizer não. Devagar caminhei pelo corredor atapetado até o estúdio. E eu nunca deixava de me maravilhar ao pensar que fora o meu pai e a minha irmã quem idealizaram os móveis daquele lugar.

Papai estava sentado em um dos dois sofás, de frente para porta, e me viu assim que pus os pés no cômodo.

Eu tinha tanta coisa para dizer, tanto para jogar na cara dele. Tinha cinco meses que eu não o via, agora era a minha vez de falar.

Lembrando do que Jen havia dito sobre Sophie, fechei a porta e cruzei os braços encarando meu pai. Ele sustentou a minha encarada e essa foi a segunda vez que eu o vi com um olhar tão perdido. Era o mesmo olhar de quando ele disse que mamãe havia morrido, contudo, dessa vez eu não tive dó. Minha fúria, há tanto guardada, explodiu.

— Quem vai começar? – Perguntei sem chegar perto dele. E eu sabia que isso o magoaria ainda mais, eu sempre o abraçara quando ficava muito tempo sem vê-lo, era o meu jeito de me sentir em casa. Só que eu não estava me sentindo em casa. Eu estava me sentido rejeitada.

Ele respirou fundo.

— Kells eu sinto muito.

Eu quis gargalhar.

— Sente muito?! Olha, Sophie pode ter acreditado nisso, mas eu não tenho seis anos. “Sentir muito” não vai mudar o que aconteceu há cinco meses. VOCÊ ME ABANDONOU AQUI!!! Eu te implorei para voltar. Eu te pedi para voltar para casa, que todos iam te ajudar, mas não, o grande Leroy Jethro Gibbs teve que tentar resolver tudo por ele mesmo. E olha no que deu! Ninguém confia mais em você! Minto, só a Ziva, mas a sua amada filha postiça, é tudo o que importa agora, não é mesmo? Os demais não te importam tanto assim... fico me perguntando o motivo... ter matado o Ari não pode ser a única explicação. Não pode, mas acontece que eu não encontro nenhum. NENHUM MOTIVO! - Eu explodi. – Porque todo mundo queria que você voltasse. Eu te disse isso. Eu te contei como Abby estava, como McGee estava, como Tony parecia perdido às vezes, como Ducky sentia falta de conversar com o amigo dele, até como Jimmy parecia sentir que faltava uma peça da engrenagem que era o NCIS. Porém você não ligou. Nem quando eu te contei da Sophie. SUA FILHA CAÇULA QUE SE CULPAVA POR VOCÊ TER IDO! Você não se dignou a pegar um avião e voltar. Eu precisei de você, pai. Eu queria o senhor aqui. O senhor sabe que é a minha família de sangue. Mas você não voltou. Deixou que lidássemos com isso sozinhos. Se foi uma tentativa de nos fazer aprender algo, saiba que deu certo. Aprendemos. Aprendemos que não podemos contar com você. Aprendemos que só temos uns aos outros. E olhe a ironia da situação. Sabe quem segurou todo mundo junto, quando achamos que o barco ia naufragar? Jenny. – Parei para tomar ar e vi que meu pai estava assombrado pelo tanto que eu tinha guardado dentro de mim. – E não me olhe assim. Você deveria saber que ela era capaz de fazer isso. Depois de tudo o que fez por mim, depois de criar a Sophie sozinha por cinco anos, ela é quem nos manteve inteiros. Mas esse não é o assunto. O assunto aqui é você. Você e eu. Por quê? Por que o senhor me deixou para trás? O senhor quebrou a sua promessa. A promessa que me fez quando a mamãe morreu. O senhor prometeu que estaria do meu lado pelo resto da sua vida, pai... prometeu que todas as vezes que eu tivesse um problema, bastaria que eu te ligasse, que corresse para você e o senhor me ajudaria, que estenderia a mão, me daria um abraço.... E eu precisei. Os últimos meses foram brutais no treinamento, eu vi coisas que nunca imaginei que veria. Me mandaram para um navio médico, eu tive que receber homens e mulheres feridos da guerra, pai. Alguns não tinham chances de serem salvos, e me pediam para segurar a mão deles, enquanto eles morriam! Faz ideia do que isso foi para mim? É claro que Jenny, Henry e até a Sophie me ajudaram, mas eu queria um outro abraço. O seu, pai. Lembra de quando eu te liguei, três meses atrás, pedindo que o senhor voltasse? – Parei e o encarei, eu já não conseguia conter as lágrimas.

Ele balançou a cabeça, confirmando.

— Eu nunca precisei tanto de um abraço seu quanto naquele dia. Foi a primeira vez que eu perdi um paciente, ele morreu nas minhas mãos, na sala de cirurgia. Eu fiz tudo o que eu podia, mas eu ainda acho que foi a minha culpa. Eu ainda acho que poderia ter feito mais. Mas ele se foi. Não era muito mais velho do que eu, e eu descobri que a noiva dele estava grávida. – Comecei a soluçar, lembrando do momento em que tive que dar a notícia para a família do Cabo. – Uma criança vai crescer sem saber quem o pai dela é. A única coisa que ela terá de lembrança é uma bandeira em forma de triângulo e uma foto. Ouvi dizer que ele ganhou uma condecoração. Mas o que é uma condecoração quando essa criança jamais vai poder abraçar o pai dela? Ele nunca vai colocá-la para dormir, vai dar um beijo na testa dela. Não vai ensiná-la a andar de bicicleta e nem vai estar do lado dela quando cair, para sair desesperado para o hospital, porque ela ralou o joelho. E talvez isso tudo não aconteça por minha culpa. E enquanto eu pensava nisso tudo, eu me lembrei de que eu tenho um pai. E desejei que ele estivesse do meu lado para poder me abraçar e dizer que tudo ia ficar bem. MAS VOCÊ NÃO ESTAVA LÁ. ESTAVA NO MÉXICO. O senhor não voltou quando eu precisei, mas voltou pela Ziva. POR QUÊ?? – Eu não tinha mais condições de falar. Eu já nem sabia mais o que dizer, me lembrar desse dia me machucava mais do que deveria, mais do que seria saudável. Eu chorei por horas ao telefone, depois que meu pai me disse que não viria, primeiro com Henry, depois com Jen. Eu me demorei tanto no telefone, que até a Sophie conversou comigo. Minha irmã de seis anos me reconfortou mais do que meu pai.

Eu chorava copiosamente. Eu precisava mais do que nunca de um abraço. Estava cansada, esgotada, lembrar desse dia era horrível, e eu percebi tarde demais que eu jamais superaria aquela morte. Como se o Cabo fosse alguém da minha família, e não um paciente que chegou até mim em estado gravíssimo, com poucas chances de sobreviver.

Meu pai se levantou de onde estava e veio na minha direção, e sem dizer nada, me pegou em um abraço de urso, daqueles que ele sempre me deu quando eu acordava de noite gritando depois de um pesadelo, ou em todas as vezes que eu chamei pela minha mãe nos meses que seguiram à morte dela, ou quando eu caí da bicicleta e quebrei o braço. Era aquele abraço de pai que eu precisava tanto. Há tanto tempo.

Ainda chorando e mal me sustentando de pé, acabei escorregando pela parede e me sentando no chão. Papai não me soltou hora nenhuma e só me abraçou mais forte e me deu um beijo na têmpora. E foi quando eu comecei a chorar ainda mais. Eu tinha sentido falta disso. Não importa a minha idade, eu sempre vou sentir falta do apoio do meu pai.

— Calma, Kells. Respira, filha. – Ele falava ao meu ouvido.

Eu ainda não tinha a resposta da última pergunta que havia feito. Eu não sabia o motivo dele não ter voltado.

— Por que o senhor não voltou antes, pai? Por quê? – Pedi novamente.

— Eu ainda tinha muito o que pensar, filha. Tinha que tentar organizar tudo.

— E o senhor conseguiu? Quando a Ziva te ligou, o senhor já pensava em voltar?

— Não. Eu voltei para ajudá-la, mas esperava conseguir algumas respostas.

— Para quais perguntas? Talvez eu possa te ajudar.

— Uma delas era Sophie. Eu precisava lembrar o que me ligava à Jenny.

— E as demais? – E só de olhar para ele eu sabia que tinha pisado em um campo minado.

— Acho que eu vou ter que descobrir sozinho.

— É sobre você e a Jenny, não é?

— Em partes, sim.

— E eu não posso fazer nada para ajudar?

— Por enquanto não, Kelly. Primeiro eu tenho que saber o que a sua irmã tem.

— Sim... e como foi com ela... fiquei sabendo que vocês dois se encontraram hoje de tarde...

Meu pai fez um barulho estranho, como se ele estivesse dando uma gargalhada, mas o som saiu estrangulado.

— Eu não sei como foi e muito menos como vai ser, Kelly. Ela está... Sophie está – Ele respirou fundo. – Ela está com medo de mim. Das minhas reações.

Não deveria ser mentira.

— E eu quero ficar do lado dela.

— O senhor DEVE. Independentemente do que ela tenha. – Eu disse e comecei a me levantar. – Vem. – Estendi a mão. – Vamos vê-la. Quero dar uma olhada nela, para tirar uma dúvida.

Papai se levantou e abriu a porta do estúdio para mim, logo no corredor tinha um espelho, e assim que vi meu reflexo eu percebi que a minha irmãzinha ia dar um treco se me visse desse jeito.

— Acho que antes de ver a Sophie eu preciso dar um jeito nesses olhos vermelhos e nessa cara inchada. – Comentei. – Ou ela vai ficar apavorada.

— Jenny me disse que você tem ficado aqui. Talvez deva tomar um banho e descansar um pouco, Kelly.

— Pai. A Sophie precisa de nós. Além do mais, se eu fico três noites por semana acordada para tomar conta de outras pessoas, por que não poderia fazer isso pela minha irmã?

Ele me guiou escada acima, por um tempo, ficou indeciso se entrava ou não no quarto de Sophie, as luzes estavam apagadas, mas era possível ouvir Jenny tentando acalmar a pequena.

— Vai lá. Ela precisa disso. Eu já tô indo. – Rumei para o meu quarto e quando abri a porta, vi que a grande cama de casal não estava vazia.

— Henry?!

Ele me olhou de cima a baixo antes de falar qualquer coisa.

— Oi, Kelly. Conversou com o seu pai?

— Sim... acho que eu só estava precisando de um abraço dele no final das contas. Mas, me diga, o que você está fazendo aqui?

— Abby me disse que você estava vindo e que Sophie está doente. Passei para te ver, Jenny me disse que você e seu pai estavam conversando no estúdio. Não sou louco de interromper. Fiquei conversando com a Jenny por um tempo, mas Sophie começou a chorar alto. Para não atrapalhar, acabei aqui.

— Vai ficar aqui? Porque se for, nem mostre a cara para o meu pai...

— Não, eu vou para casa. Tem muito acontecendo aqui hoje, e eu só atrapalharia. Sei que você vai me contar assim que tiver processado tudo.

— Na verdade, minha preocupação agora é a Sophie. Eu não sei o que ela tem e dores de cabeça podem ser diagnóstico de um monte de doenças e podem não ser nada...

— Talvez, seja só saudade do pai. – Ele tentou.

— Acho que é mais do que isso. Mas preciso ver o que é.

— Então, não sou eu quem vai te impedir de fazer a sua consulta, Doutora Gibbs. Só me fale o que é. Não gosto de pensar que a pequena cabeça dura está doente. Ela não merece isso. – Ele me deu um abraço.

— Nem eu gosto de pensar nisso. – Fiquei ali aproveitando o momento, que, infelizmente não durou muito, pois Sophie recomeçou a chorar.

— Eu já vou indo. Se soubesse como ajudar, eu ficaria, mas não quero piorar a situação. – Ele me deu um beijo enquanto saía para as escadas. Fui atrás dele para fechar a porta, depois voltei, mesmo ainda com olhos vermelhos eu precisava ver a minha irmã, mas fui impedida por Jen que me encontrou no meio da escada e disse que era hora de meu pai conversar com Sophie.

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Conversar com Kelly foi exatamente o que eu esperava. Ela era assim, guardava tudo até que uma hora, explodia. Eu já estava esperando por isso, ela já tinha me dado uma prévia em seu último telefonema, há mais de um mês. Acontece que eu sabia que ela não tomaria a iniciativa, nunca fez isso, não seriam cinco meses que mudariam uma característica herdada de mim. E como sempre lá estava Jenny, dando uma ordem como se fosse a mãe dela, como se ela soubesse o tempo todo o que nós dois precisávamos.

Não foi fácil ver a expressão de desgosto de Kelly quando me viu e muito menos quando ela falou todas aquelas verdades. A cada palavra, a cada lágrima que ela deixava rolar por seu rosto, a dor dela ela refletida em mim. Muito mais forte do que ela sequer imagina. E saber que eu causara aquela dor... chegava a me deixar doente.

No fim, Kelly precisava falar, como eu sempre soube, e só me pediu uma coisa. De todas que ela poderia ter pedido, ela queria um abraço.

Como se um abraço pudesse desfazer todas as coisas erradas. Eu sei que não podia, ela também sabia. Mesmo assim, foi tudo o que pediu. Foi tudo o que ela precisava para voltar a ser a Kelly de sempre. E logo que já estava livre de tudo o que a assombrava, ou parcialmente livre, o que me contou, o paciente que ela perdeu, jamais vai deixar de assombrá-la, seu foco foi outro.

Sophie.

Se com Kelly fora relativamente calmo, tendo em vista tudo o que ela passou, não podia dizer o mesmo de Sophie.

A pequena ruiva não sabia como reagir a minha presença.

Mais cedo, quando cheguei, ela estava no colo de Jenny. Antes de bater a campainha, pude ouvi-la conversando com a mãe, como ela sempre fizera, sempre falando muito sobretudo e com todos. Mas bastou que me visse e ela se retraiu. Se encolheu no colo da mãe e escondeu o rosto. Na mesma hora pude ver que Jenny já tentava acalmá-la. E o olhar que Jen me lançou era um claro pedido de desculpas. Nem ela parecia entender o comportamento da filha.

Não demorou muito e escutei Sophie sussurrar que queria ir para o quarto. Jenny ainda tentou fazer com que ela fosse comigo, perguntando se ela queria que eu a colocasse na cama. A pequena disse somente não. E era até absurdo o tanto que uma palavra tão minúscula tinha me machucado.

Talvez eu merecesse isso.

Não tinha muito tempo que mãe e filha tinham subido e Kelly chegou.

E agora eu me via de novo, parado perto do quarto da minha caçula. Podia ouvir mãe e filha conversando. Eu era o assunto da conversa. Jenny tentava entender o comportamento de Sophie.

— Mas me diga só uma coisa, Miniatura, por que a mocinha não quer conversar com o seu pai?

Sophie desconversou. Queria poder ver a sua expressão, ela, assim como a mãe, às vezes fala mais com o olhar do que com as palavras.

— Não quero que ele se zangue de novo... eu já tô feliz que ele voltou. Não quero que ele vá embora por minha causa... – A voz dela era de uma sinceridade ímpar.

— Ele não está zangado com você, Ruiva. Comigo sim, mas tenho certeza de não está bravo com você. – Jenny disse.

— Mas mamãe... tem muito tempo, e ele não ligou para mim... só conversava com a Kells. E a Kells me disse que ele só voltou porque a Tia Ziva pediu...

— Ele voltou porque era a hora dele voltar, Sophie. – A voz de Jenny era firme. – Entenda uma coisa, seu pai não faz nada que ele não queira. Ele sempre vai fazer o que bem entender. Ele não voltou pela Ziva. Ele voltou porque ele quis ajudá-la. E nada mais.

Ao que parecia, Kelly tinha feito um bom trabalho espalhando a aversão dela por Ziva até Sophie, mas não tinha sido o suficiente para que a pequena ficasse com raiva da tia emprestada.

Sophie ficou quieta, eu não escutava mais nada. Até que Jen resolveu perguntar:

— Se você não ia conversar com seu pai, por que fez aquele diário nos últimos meses?

O silêncio que se seguiu foi pesado. E eu me lembrei da primeira noite em que passei com Sophie. Ela me mostrara cada um dos diários dela, com tudo o que ela havia feito enquanto nós ainda não nos conhecíamos. Me deu um aperto no peito ao pensar que ela havia feito tudo isso de novo. Por mim.

Escutei um barulho, depois o som de dois pés correndo dentro do quarto, temi que Sophie abrisse a porta e me visse ali, escutando a sua conversa com a mãe, mas ela não abriu. Ouvi o som de uma gaveta ser aberta e depois, parecia que ela pulava na cama.

Pude imaginar a cena, pois eu a presenciei incontáveis vezes, Sophie pegando algo, um livro ou um filme e voltando correndo, pulando para os braços abertos de Jenny, seus grandes olhos coloridos pedindo para que a mãe lesse com ela, ou que visse algum de seus desenhos preferidos.

— Vai mostrar para ele hoje? – A voz de Jenny me tirou dos meus devaneios.

— Será que ele não vai ficar chateado... não quero que ele fique com raiva... acho que eu deveria deixar que o papai converse só com a Kelly hoje.... – A pequena divagou.

— Seu pai está aqui por vocês duas. Ele precisa conversar com Kelly e você precisa deixar que ele converse com você.

— Mas eu deixei... no NCIS! – Sophie protestou baixo.

— Não, Sophie. Você não deixou. E eu sei que você sente saudades dele. Mais do que você me conta.

— Não mais do que a senhora, mamãe... a senhora sente mais falta do papai...

— Sophie... é sobre você e seu comportamento.

— Minha cabeça tá doendo de novo....

— Não fuja do assunto. – A voz de Jenny, apesar de suave, era firme.

As duas ficaram em silêncio de novo. Eu não queria que a conversa virasse uma bronca de Jenny em Sophie. Eu até poderia entender o comportamento de minha filha.

— Ele prometeu, mamãe... – Sophie falou antes que eu pudesse bater na porta. – o papai prometeu que ia me colocar na cama naquela noite. Que ele ia voltar... e ele não voltou... – Era evidente que ela chorava só pelo tom de sua voz.

— Shhh. Shhh. Ele está de volta agora, bebê. E te garanto que está doido por um abraço seu. Assim como você quer ganhar um abraço dele.

Fiquei parado sem saber o que fazer nesse momento. Até que ouvi Kelly abrir a porta do quarto, e descer as escadas conversando com Henry. E eu nem sabia que o moleque estava aqui.

Para evitar que Kelly me pegasse escutando a conversa das duas ruivas, bati na porta que estava aberta, mas só para que Sophie não se assustasse com a minha presença.

As duas ocupantes do quarto me olharam, Jen estava sentada, com as costas apoiadas na cabeceira da cama, Sophie em seu colo, com a cabeça apoiada em seu ombro, assim que me viu, limpou correndo as lágrimas e seus olhos pousaram em um caderno que estava em sua cama.

O diário que ela havia feito.

— Entre Jethro. – Jenny me convidou, depois olhou para a filha.

Sophie ficou desconfortável. E quase desesperada quando viu que Jenny se levantava da cama.

— Mamãe... – Ela choramingou.

— Só vou pegar um copo de água para mim. Quer algo? – Ela olhou para nós dois.

Sophie arregalou os olhos e balançou a cabeça em negativa.

— Jethro? Uma xícara de café, talvez? – A forma como me olhou me indicava que era muito bom aceitar. Ela tinha um plano se formando.

— Por favor.

Sophie olhou para a mãe com uma expressão de que fora traída. Se encolheu na cama no segundo em que a mãe deixou o quarto e tentou não olhar para mim, se concentrando em olhar as pantufas que estavam em seus pés.

E mais uma vez Jen me dava a chance de ficar à sós com uma das minhas filhas.

O silêncio ficou pesado e pude até ouvir os pés descalços de Jenny descendo a escada e o momento em que ela e Kelly se encontraram.

Sophie se encolheu na cama e abraçou o dragão de pelúcia, não me lembrava o nome dele, só sei que ela ama aquele bichinho. Do seu lado estava a bola verde com um olho só. Perto de seus pés, o que pensei ser o diário. Ela me encarava, mordendo o lábio e incerta do que fazer.

— Você está melhor, Ruiva? – Perguntei.

Ela olhou para os pés, calçados em pantufas da Minnie, e balançou a cabeça.

— Um pouquinho. Minha cabeça ainda dói. Mas não tô mais enjoada. Não precisa ficar preocupado... – Falou sem me olhar.

— Posso me sentar?

Ela deu de ombros, e abraçou mais forte o dragão. Ficou calada por um tempo, eu fiquei observando o que ela iria fazer. Seus olhos pararam no diário e ela o pegou com um movimento rápido.

— O senhor se lembra de quando nos conhecemos? Eu te mostrei os meus diários... para contar para o senhor tudo o que eu tinha feito... – Ela falava baixinho, como se eu fosse brigar com ela só por estar conversando comigo.

— É claro que me lembro, Soph. São aqueles ali, não são? – Apontei para a estante.

— Sim... são aqueles. O senhor sempre gostou de ler, então... eu pensei em continuar fazendo, para quando o senhor voltasse... – A ruivinha mordeu o lábio e olhou para o diário.

— Você fez? – Perguntei.

— Sim... para o senhor não perder nada... não tem coisas só minhas, tem da Kelly e de todo mundo também...

— E você fez igual aos outros, com desenhos, ou só escreveu?

— Tem os dois... minha professora, a Tia Isa, disse que temos que escrever mais... que é bom, a mamãe fala a mesma coisa.

— E a sua mãe te ajudou?

— Ela me deu a ideia, e me levou para comprar o diário. Mas ela me deixa aqui no quarto quando eu vou escrever.

Dei uma olhada pelo quarto. Meus olhos parando em cima do criado dela, onde tinha quatro porta-retratos. Dois eu já conhecia, eram os mesmos que já tinham ali, os outros dois eram novos. Uma foto de Sophie e Kelly que pareceu ser tirada na Academia Naval e outra onde eu via Kelly, Henry, Jen, Sophie e o restante da equipe, não reconheci o lugar, mas percebi que na cintura da ruivinha tinha um distintivo do NCIS. E, apoiado na minha foto, tinha um distintivo. Sophie percebeu para onde eu olhava e ficou de pé na cama para pegá-lo.

— É do senhor. O Tony me deu quando ele me disse que eu era a Agente Baby do NCIS. Era o que o senhor usava. Eu falei para a mamãe que ia tomar conta dele até que voltasse. Tá aqui... – Ela me estendeu a mão.

Tentei entender o que ela falava.

— Agente Baby? – Perguntei.

— É... Tony me empossou como agente... fiz até o juramento. Tenho um monte de coisas para fazer... e depois de nove meses o Tony vai levar a minha avaliação para a Diretora. – Ela parou, nervosa por ter falado demais.

— E você está cumprindo as suas obrigações direito?

Ela balançou a cabeça, me confirmando, e continuou:

— Mas agora não importa mais, o Tony não é mais o líder da equipe. Acho que não sou mais a agente baby... – Ela deixou o distintivo do lado da minha perna, pegou uma boneca de cabelos ruivos que já tinha um aspecto de ser velha, e desceu da cama.

— Vai aonde, Sophie? Sua mãe pediu para que você ficasse aqui. – Falei, parando na frente dela.

— Procurar a mamãe, tenho que perguntar uma coisa para ela. – A pequena desconversou olhando para o chão.

Me agachei na frente dela, bloqueando o seu caminho. Ela apertou a boneca e continuou a olhar para as pantufas da Minnie.

— Sophie. – A chamei e ela teimosa como só, não me olhou. Levantei o seu rosto com o meu indicador. Ela desviou os olhos. – O que eu vou ter que fazer para você acreditar em mim? – Perguntei.

O queixo dela começou a tremer, ela iria começar a chorar, e tendo em vista que a dor de cabeça não tinha passado totalmente, isso não seria bom para ela. Grossas lágrimas rolaram pelo rosto dela e, pela primeira vez, Sophie me encarou sem ter nada que a escondesse. E em seus olhos eu li a dor que ela sentia. E o receio de que eu a esquecesse de novo.

— Ah, Ruiva! – A puxei para os meus braços. Ela envolveu meu pescoço com os seus braços e começou a soluçar. Eu não podia fazer mais nada a não ser apertá-la em meu abraço. – Isso não vai acontecer nunca mais, Sophie. Eu te prometo.

— Eu não gosto de promessas. – Ela falou entre os soluços.

— Mas é verdade. – Dei um beijo na têmpora dela. Ela afundou o rosto em meu pescoço, como ela havia feito com a mãe.

— Eu senti a sua falta, papai. Todos os dias! – Ela me disse.

— Eu sei que sentiu. – Respondi. E me perguntava se eu merecia todo esse carinho que ela tinha por mim.

Depois de um tempo, Sophie soltou o abraço. Não chorava tanto mais, mas seus olhos vermelhos me diziam que ela não estava passando tão bem assim.

— A dor de cabeça piorou?

— Sim. Muito.

Peguei-a no colo e a coloquei na cama. Tirando de perto dela o diário e o distintivo, que coloquei de volta no criado.

— Mas papai... – Ela tentou protestar.

— Você não pode ser uma agente, sem distintivo, Sophie. – Disse e dei um beijo na ponta do nariz dela. Ela na hora começou a gargalhar e tentou sair de perto de mim, coçando o nariz. – O que foi? Precisa de mais um remédio?

— Seu bigode... faz cócegas... – Ela fez uma careta ao falar. – E... bem... o senhor ficou estranho de bigode. Gosto mais como era antes. Pelo menos não pinicava quando o senhor me beijava.... – A ruivinha disse envergonhada.

— Você não gosta do meu bigode?

— É... não. Não gosto. - Falou um pouco incerta, tentando tampar o rosto com o cobertor. E eu tive que rir da sus sinceridade. Definitivamente Sophie tinha herdado isso de Jenny. E antes que eu pudesse dizer algo, continuou – Papai... – Parou e me olhou por baixo da manta preta cheia de caveirinhas rosas, com certeza um presente de Abby.

— Diga....

— Eu posso te contar tudo o que aconteceu amanhã?

— No dia que você quiser, Soph. Nós temos tempo.

— Tá bom... – Ela pareceu mais tranquila, porém ainda tinha algo para falar.

— O que mais você quer conversar comigo, Sophie?

— O senhor vai dormir aqui em casa? Igual o senhor fazia antes? – Ela questionou e em seus olhos eu vi o quanto ela esperava que isso pudesse acontecer.

— Se a sua mãe não se importar... – Foi a minha resposta incerta. Se Jenny não se importasse, eu poderia ocupar até o sofá da sala.

— Ela também sentiu falta do senhor. Mais do que todo mundo. Ela ficou tão quietinha... – Sophie me informou.

Jenny ainda era um assunto complicado. Eu sabia que tinha algo inacabado entre nós, algo que estávamos tentando resolver. Só não sabia até onde nós tínhamos resolvido. Ou o que estávamos fazendo quanto a isso. Porém, a minha preocupação era Sophie. Jenny e eu poderíamos esperar até que tivéssemos todas as dúvidas esclarecidas.

Fiquei ao lado de Sophie por um bom tempo, mesmo depois que ela pegou no sono, ela não soltou minha mão. Já estava me acostumando com a ideia de que teria que dormir no chão do quarto dela, quando Kelly apareceu:

— Conseguiram conversar também? – Ela perguntou baixo da porta.

— Sim. Conseguimos.

— Isso é bom. – Ela entrou no quarto e colocou a mão na testa da irmã.

— Para que isso?

— Só medindo a temperatura. Ela não está quente, isso é um bom sinal. Jen te disse que a consulta dela é amanhã cedo?

— Ainda não, mas não tive muito tempo para conversar com ela sobre isso.

— Ela está lá no estúdio, acalmando a equipe que não parou de ligar... se quiser conversar com ela, eu tomo conta da Moranguinho.

— Sophie me pediu para ficar, como eu fazia antes...

— E o senhor não se lembra, não é? Até onde eu sei, tem roupas suas aqui. – Kelly deu de ombros. – E um quarto sobrando... – Ela completou ao analisar a minha feição.

— Vou ficar mais um pouco com a Sophie. Depois vou para casa. Amanhã antes de ela acordar, eu vou estar de volta.

— Se o senhor acha melhor assim... E ela, falou tudo o que precisava?

— Em partes sim. E foi mais sincera do que você.

— É mesmo?! – Kelly arregalou os olhos.

— Sim, pelo menos ela disse que não gostou do meu bigode.

Kelly teve que se conter para não cair na gargalhada.

— Bem, sendo sincera agora, nem eu gostei. Que tal tirar isso aí?

Fingi que não escutei. E Kelly, antes de sair, comentou qualquer coisa como: “só a Soph para bancar a sincerona e dizer que não gostou do bigode. E olha que todo mundo já estava achando que isso aí era um caso de delírio coletivo.”

Vigiei o sono de Sophie por mais quarenta minutos. Vi que ela não acordaria e resolvi ir embora. Ficar dentro daquela casa não estava me ajudando muito.

Desci a escada e vi que a luz do estúdio estava acessa. Achei que deveria avisar Jenny. Parei na porta e ela encarava alguns relatórios.

— Diga, Jethro. – Ela falou sem levantar a cabeça e antes que eu pudesse me anunciar. Me perguntei se sempre fora assim.

— Sophie dormiu. Volto amanhã antes da consulta. Se você...

— Ela é tão sua filha quanto minha, Jethro. Você tem o direito e o dever de estar lá. Não prefere ficar? Tem um quarto sobrando. – Ela me olhou ao fazer a última pergunta.

— Vou para casa, Jenny. Melhor para todo mundo.

Ela se levantou.

— Te levo até a porta. E para confirmar, a consulta de Sophie é às 08:00. – Ela disse ao abrir a porta. Fitei os olhos verdes. – Algum problema? – Jen perguntou um tanto defensiva demais.

— Não. Só que você e Sophie estão compartilhando a mesma cor de olhos hoje.

Ela abriu um mínimo sorriso.

— Boa noite, Jethro. Até amanhã.

— Boa noite, Jen. – Sai para a noite sem saber o que esperar sobre Sophie.