Carta para você

Uma Mãe e Duas Filhas


Sophie já tinha se acalmado depois da minha explosão. Ela estava de pé, no colo de Jen, que me disse que ela tinha que arrotar depois de ter tomado a mamadeira. E eu esperava pacientemente minha irmã se ajustar.

— Leva muito tempo? – Perguntei ansiosa.

— Depende. – Jen sorriu. – Você quer segurá-la, não é. – Não era uma pergunta.

— Está tão na cara assim?

— Escrito em sua testa! – Ela sorriu. – Eu só não te passo ela agora, porque às vezes ela costuma arrotar e acaba por golfar também, não quero te deixar com cheiro de leite azedo...

Me sentei na mesa de frente para Jen, que andava de um lado para outro na sala.

— Vamos lá, filhota, se apresse, sua irmã quer te conhecer... – Ela arrulhou para Sophie.

Eu sorri com a cena.

— Sabe, Jen... – Eu comecei. Ela se virou na minha direção e levantou a sobrancelha. – Depois de todas aquelas cartas, de tudo o que você fez, eu podia jurar que você era capaz de fazer qualquer coisa maluca, mas te imaginar segurando uma bebê e pedindo para ela arrotar porque a irmã quer conhecê-la, isso nunca passou pela minha cabeça.

— Nem na minha. – Jenny me respondeu sincera.

— Você nunca quis ser mãe? – Perguntei surpresa.

— Não. Ter uma filha, isso nunca foi minha meta. – Mas ela olhou com um carinho, um amor tão grande para Sophie que eu duvidei das palavras dela.

— Então... porque você... você sabe... você tinha a oportunidade de... – Deixei as palavras no ar, ela entenderia o que eu queria dizer.

— Eu não tive coragem. – Ela suspirou. – Eu estive a ponto de fazer isso. – Notei que ela não disse a palavra. – Mas na hora eu não tive coragem. Eu sonhei com ela, - Eu levantei minha sobrancelha em descrença e ela deu de ombros fazendo um carinho na bochecha de Sophie com a ponta do nariz. – Com ela e com seu pai, eu vi uma criança linda, feliz, e eu sabia que era a minha filha. Então eu pedi para parar. Eu não podia matar uma inocente. Não podia matar a minha filha. A filha de Jethro. – Ela terminou com lágrimas nos olhos.

— Mas um bebê, no seu trabalho, não atrapalha? – Eu podia dizer que eu tive nojo dela, mas no fundo, talvez fosse melhor se ela tivesse seguido em frente, porque deixar Sophie sozinha, como meu pai faz comigo...

— Sim.... e não. Um bebê muda a sua vida. Você deixa de ser a prioridade e ele vira a prioridade, sua vida gravita em torno dele... mas é isso para todo mundo. Desde uma agente federal até uma dona de casa. Se tantas no mundo conseguem, eu também vou conseguir. – Ela deu um sorriso, quando Sophie finalmente arrotou.

— Sim... você vai. – Não era uma afirmação para a autoestima dela. Era uma confirmação. – E você a manteve por quê?

— Porque ela era a minha lembrança do seu pai. – Jenny respondeu olhando através da janela, para algo que só ela sabia o que era. – Porque, depois de tudo o que passamos, de tudo o vivemos, eu soube que eu não poderia viver em um mundo onde ele não existia, e não deixar Sophie viver, era viver em um mundo onde um pedaço dele não estava mais aqui, por minha culpa. Então eu fiquei com ela. Sua irmã, - e ela me olhou nos olhos, e eu vi o tamanho do amor que ela tinha por meu pai e por minha irmã e por mim. – é o maior presente que o seu pai me deu, Kelly.

Engoli em seco. Jenny disse tudo o que sentia naquelas frases. E eu só pude pensar no que meu pai tinha feito. Será que se ele ouvisse isso, ele teria voltado atrás?

— Está pronta para segurar a sua irmã? – Jen mudou de assunto e o clima a sala também mudou. Mesmo que o tempo estivesse ainda pior lá fora...

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Kelly não me respondeu, apenas deu um passo na minha direção e, enrugando a testa, me olhou com receio, seu olhar imitando o do pai quando não entendia algo.

— É fácil, você precisa firmar a cabeça dela assim, – Apoiei a mão dela na base da cabeça de Sophie. - e passar o outro braço para que a mantenha segura, como você já está com ela de pé, passe a mão atrás dos joelhos dela, fazendo uma espécie de cadeira. – Acabei de instrui-la.

- Céus, que medo de deixá-la cair! – Kelly falou, e ao fazer isso, Sophie virou a sua cabeça em direção a voz. – Ela está olhando para mim!! Oi irmãzinha! Sou eu, a Kelly! Eu sei que você sabe disso! – Kelly disse imitando uma voz de criança.

Sophie não pareceu gostar muito nem do colo nem da voz da desconhecida e feliz garota que a carregava agora. Então, tratou de enrugar a testa e olhar atentamente para a irmã, além de levar a mão dela até a boca de Kelly, como se a silenciando.

— É impressão minha, ou ela está tentando me lançar “o olhar”? – Kelly riu, por baixo da mãozinha da irmã.

— Sim, ela tem feito isso. Genética poderosa. – Eu disse.

— Mas o dela não impõe medo... só é fofo! – Kelly beijou o topo da testa da irmã que continuava a encará-la com a versão bebê da olhada poderosa do pai. – Um dia, Sophie, eu vou te apresentar ao papai, e ele vai te ensinar a dar essa olhada. – Kelly sussurrou no ouvido da irmã.

Eu tinha que trocar de assunto, eu sei o que Kelly iria me perguntar a seguir.

— Bem... eu estou nesta casa há umas duas horas, e devo passar mais tempo, tendo em vista a tempestade lá fora. Não está se esquecendo de me mostrar nada, Kelly?

— O barco!

— Para mim ainda é só uma lenda.

— Vou te provar que não é. – Ela me garantiu e saiu andando com a irmã no colo.

Depois de passarmos pela cozinha e pela lavanderia – minúscula, por sinal, - Kelly abriu uma portinha à esquerda.

— Veja por si mesmo, ó senhorita descrente. – Ela fez uma mesura com a cabeça para me dar passagem, depois de acender a luz.

Eu não acreditei no que vi. Realmente, lá embaixo, o esqueleto de um barco, que parecia ser um veleiro muito parecido com o que eu roubei na França para salvar Jethro e Ducky, estava sendo construído.

— E eu achando que nada mais me surpreendia... – Eu disse.

— Vindo do meu pai?! Não duvide de nada! – O tom de voz de Kelly era amargo.

— Agora a pergunta de um milhão de dólares: Como ele tira isso dali?

— Sabe que eu não sei? – Kelly chegou no alto da escada comigo e nós duas ficamos olhando para o projeto de barco...

Só o Jethro para fazer algo assim...

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Por todo o caminho do aeroporto até o escritório do NCIS em Londres, Stephanie não parou de comentar sobre a bebê ruiva.

— Mas, Jethro – Ela cantarolou. – Ela era tão linda. Aquele cabelo ruivinho, e os olhos!!! Aqueles lindos olhos, um de cada cor!

Eu não disse nada, concentrado nas ruas londrinas, lembrando de quando eu cruzava essa cidade com outra companhia do meu lado...

— Você tem vontade de ter mais filhos, Jethro? – Stephanie perguntou depois de algum tempo.

Apertei o volante com mais força. Com ela? Definitivamente não.

— Não. – Respondi secamente.

— Será que tem jeito de mudar essa sua opinião? – Ela fez um carinho na minha cabeça.

— Kelly já está muito velha para ter irmãos. – Foi a desculpa que eu dei.

— Ela não se importará, tenho certeza.

Não se importará? Kelly te odeia, foi o que eu quis responder.

— E além do mais, - ela continuou – Kelly já está saindo para viver a vida dela, Jethro. Ela não tem mais que dar opinião sobre o que você faz.

Pensei no que fiz com Kelly dessa vez. Eu a deixei sozinha, só com um bilhete. Se eu tinha odiado ter sido deixado com uma carta, eu havia feito a mesma coisa com a minha filha.

Estava preso em meus pensamentos, mas Stephanie parecia não querer parar de falar da criança que ela tinha visto.

— Eu até consigo imaginar nossos filhos, Jethro. E eu quero uma garota ruivinha igual a que eu vi.

Revirei os olhos para não responder. Uma garota ruivinha. A única que eu conseguia pensar era a que aparecia em meus sonhos de vez em quando. Sempre a mesma garota, o mesmo rosto. Ora ela estava feliz, ora vinha com uma carinha triste, me perguntando o motivo de eu nunca tê-la conhecido. E eu não sabia o que dizer, hipnotizado com a beleza da garota e a potência de seu olhar. E o sonho sempre terminava do mesmo jeito, Jen aparecia, não dizia nada, apenas pegava na mão da menina e a levava embora, e eu, paralisado, ficava vendo as duas partirem para longe de mim.

Respirei fundo e me concentrei no trânsito, faltava pouco para o prédio de escritórios onde ficava o NCIS, então estacionei umas ruas abaixo, falei para Stephanie ir tomar um café ou um chá, e percorri a pé os poucos metros, olhando ao redor e torcendo para que eu tivesse o vislumbre de uma certa ruiva.

Entrei no prédio e nada de vê-la, eu sabia que ela estava de licença, mas não sabia o motivo dessa licença. Fui encaminhado para a mesma sala onde meses atrás eu encontrara Morrow e o Diretor do Mossad, para dessa vez me encontrar com uma mulher loira, alta, na casa de seus trinta anos. Que se apresentou como a Agente Willows.

— Você deve ser o Agente Gibbs? – Ela estendeu a mão para me cumprimentar.

— Sim. – Repeti seu gesto.

— Ótimo. Acabei de ler o seu arquivo, fico feliz que tenha aceitado a missão. As coisas saíram do controle desde que a Agente designada para o caso teve a sua bebê. – Ela me garantiu. – Mas vejo que você não terá problemas.

— Assim espero. – Falei a meia voz.

— Bem por favor, venha comigo. O agente Callen está na sala do esquadrão te esperando. – Ela saiu por uma porta lateral que eu não tinha notado, e entramos em uma sala repleta de janelas. E lá, todos os agentes do NCIS trabalhavam. Por instinto e curiosidade, eu a procurei por ali. Talvez essa licença poderia ser um tipo de disfarce.

Mas ela não estava ali, contudo vi sua mesa. Ao lado da de Callen. O nome Jennifer Shepard brilhando na placa de identificação.

— Agente Callen, seu novo parceiro, Agente Gibbs. – Willows nos apresentou.

Ele estendeu a mão e me cumprimentou.

— Prazer em te ver. Pode se sentar aí, Jenny não vai se incomodar. – Ele indicou a mesa de Jen.

Por um segundo eu hesitei. E se ela aparecesse por aqui? Callen pareceu notar.

— Não se preocupe, ela deixou tudo o que nós precisamos pronto. Deve estar rumando para a viagem que ela tanto precisava fazer. – Foi a informação que recebi. – Mulher estranha, forte como um touro, mas parece que tem muito na cabeça...

— E todas não têm? – Tentei fazer graça. O que será que vinha incomodando Jenny?

— Bem, mas pode ter certeza de que toda a inteligência da missão está correta e é bem precisa, ela é boa no que faz. – Callen me garantiu.

— Sei que deve ser, senão não estaria lotada neste escritório. – Comentei. Não quis deixar transparecer que eu a conhecia.

— Bem, já que você parece concordar com o que eu falo, vou te passar os dados do voo e você pode ler os arquivos enquanto estamos indo para Moscou.

— Se você prefere. – Eu já não via motivos para ficar aqui. Jen não apareceria de qualquer forma.

— Eu parto em duas horas. Você e sua esposa, se me permite dizer, isso vai ser um senhor disfarce, partem no voo de três horas depois. Nossos apartamentos serão no mesmo prédio, mas em andares diferentes. Você usará este codimone. – Callen continuou, me apesentando a minha nova identidade. – Nos encontraremos dois dias depois do desembarque.

— Certo. Então até lá. – Eu disse

— Até lá. Pena que você não vai poder aproveitar a cidade, - ele disse colocando uma velha bolsa nos ombros. - mas pode fazer hora aqui no escritório. Sinta-se em casa, Shepard não vai ligar! – Ele terminou e foi embora.

— Boa viagem. – Falei de volta.

Assim que vi que nenhum agente estava de olho em mim, comecei a mexer nas coisas de Jen, tomando o cuidado para não tirar nada do lugar, eu sabia o quanto ela era observadora sobre isto.

Abri as gavetas, nada a não ser documentos e pastas com dados de missão, seu computador, apenas desligado na tela, não tinha nada que pudesse ser útil, resolvi olhar o histórico de navegação.

Páginas de informações de diversas agências, inclusive do Mossad, e página de pesquisa de arquivos de agentes. Jen deve ter andado dando uma checada no histórico de Callen... quando abri para verificar o que o meu parceiro já tinha feito, me surpreendi, Jen não pesquisou uma palavra sobre agente, ela vinha observando o meu arquivo...

Mas por que, se foi ela quem foi embora? Remorso? Olhei as datas, era praticamente uma vez por semana, exatamente como eu fazia.

O que ela queria saber sobre mim que ela não soubesse?

Notei que a movimentação perto da mesa dela começava aumentar, então desliguei o monitor e tentei ler as informações da missão. Precisas, com os detalhes certos, inclusive informações pessoais de nossos alvos. Jen tinha trabalhado direito.

Me pergunto se ela não estivesse com essa licença temporária, será que ela seria a terceira pessoa na Rússia?

Por fim, pouco antes de sair, eu resolvi dar uma última checada na mesa dela, não sei se por curiosidade ou se por necessidade de saber o que ela estava fazendo, então achei uma agenda. Enquanto ela estava comigo, ela não carregava nada parecido. Abri para ler, tomando o cuidado para não ser pego. E não entendi nada.

Era nada mais, nada menos que horários para alimentação. Café, lanche da manhã, almoço. Um lembrete de que ela não podia comer determinadas coisas. E várias consultas com médico.

Jen estava doente, por isso não foi para a Rússia. E deveria ter sido este o motivo para ela ter ido viajar com tanta pressa.

Olhava para os escritos atônito. Começava a pensar se não teria sido o mais correto procurar por ela, saber se ela estava bem.

Mas o que eu falaria agora? O que eu tinha para dizer para ela?

Continuei folheando a agenda até que parei no dia 30/09, o dia do aniversário de Kelly estava destacado, como um lembrete. Pulei o mês de outubro e fui para novembro. Outro dia em destaque 10/11. Meu aniversário.

Só por curiosidade abri na data do aniversário dela. 28/10. Não tinha nada ali. Nada que pudesse dizer que era o dia dela. Eu não resisti. Peguei uma caneta e escrevi “Feliz Aniversário, Jen.” Não assinei. Ela sabia quem era.

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Já tinha horas que eu estava aqui com Kelly. E a tempestade lá fora não parecia que iria passar tão cedo. Me sentia uma intrusa dentro dessa casa, e, por alguma razão, não achava que minha filha pudesse se encaixar ali. Talvez isso fosse paranoia minha, ou talvez seja só o fato de que o dono da casa não fazia a menor ideia do que acontecia por aqui.

Ponderei por alguns instantes, a essa altura Jethro já teria passado no escritório de Londres, já teria conversado com Callen e Willows. Será que ele descobriu alguma coisa? Ou será que ele desconfiou de alguma coisa?

Sacudi minha cabeça, o que isso importava agora? Nada. Ele tinha seguido em frente, cabia a mim fazer o mesmo. Porém, algo que Kelly havia dito não saía da minha cabeça: Ele fugiu. Fugiu do que? Da conversa que ela conseguiu ter? Do passado?

Eu não conseguia imaginar Jethro fugindo de nada. Ele não era uma pessoa que simplesmente fugia. Eu sim. Não ele.

Voltei minha cabeça para o presente. Kelly tentava a todo custo distrair Sophie da tempestade que caía.

— Sophie, hei irmãzinha, não chora, está lá fora! Não vai acontecer nada com você aqui dentro.

E minha filhota não ajudava e continuava a chorar.

— Kelly, não se preocupe, ela tem pavor de tempestades, e mesmo morando em Londres não se acostumou com a chuva. – Falei indo pegar minha filha no colo.

— Eu já te avisei, Soph, mamãe não pode ficar com você no colo pelo dia inteiro, e nós duas sabemos que isso já é um pouco de manha, né? – Disse ao ouvido da minha bebê, e se ela entendeu ou não eu não sei, mas ela parou de chorar.

Kelly suspirou em alívio.

— Achei que ela estava doente ou algo assim. Estava ficando preocupada.

— Kelly, essa criaturinha aqui só tem três meses, mas sabe ser manhosa como ela só. Se pudesse só ficava no meu colo.

Kelly deu uma risada e chegando perto da irmã, perguntou:

— Mas já é assim?

— Com certeza, além de ser persuasiva e manipuladora! – Eu ri também, enquanto isso, Sophie, que parecia saber que falávamos dela, apenas me encarava.

— Nossa! Me lembre de ficar longe dela quando ela crescer! – Kells veio e beijou o topo da cabeça da irmã mais nova. – Agora falando sério, é fora de cogitação você sair com ela no meio dessa chuva. Vão as duas dormir aqui, e isso não é um convite! – Ela disse séria.

— Sim, senhora. Eu posso ficar aqui no sofá, Sophie ficará bem acomodada no bebê conforto. – Respondi.

— Tem três quartos lá em cima.

— Um é seu, outro do seu pai. Eu não vou te dar o trabalho de arrumar o outro só por uma noite, Kelly.

— Você vai ficar quanto tempo por aqui, Jen? – Ela me perguntou incerta.

— Meu plano inicial era de uma semana, mas o que eu vim fazer aqui não tem mais propósito, devo ir embora assim que conseguir remarcar a passagem de volta.

Kelly fez uma carinha de cachorro abandonado.

— Pelo tanto que você chorava quando cheguei, eu presumo que seu pai não te contou que ele iria ou quanto tempo ele ficará fora dessa vez, não é?

A garota só balançou a cabeça negativamente.

— Bem... você já está com dezessete anos, menor desacompanhada não pode voar, mas acho que posso dar um jeito...

— O que você vai aprontar dessa vez, Jennifer Shepard?

— Eu não vou aprontar, eu vou tentar. O que você acha de passar as férias ou parte delas comigo na Europa? Eu sei que você tem o Henry e seu avô aqui nos EUA, mas... não vejo você deixando o Henry morando temporariamente aqui dentro com o seu pai do outro lado do mundo...

— Você está me convidando para ficar em Londres com você? – Ela disse sem acreditar.

— Sim, se você quiser... – respondi incerta. – Kelly, você pode ficar, sei que...

— Eu não quero ficar sozinha aqui! Não mesmo! E, por mais que eu ame o vovô Jack, Stillwater não tem nada para fazer.

— E Henry?

— Henry... – Ela começou a se balançar nos próprios pés, um claro sinal de que estava pensando. - Ele pode aparecer quando der? É porque, ele passa um mês e meio no rancho da família dele no Texas...

— Se ele quiser ir, só me fala, mas ele vai dormir no sofá! Nada de dormir com você! – Alertei e vi Kelly ficar vermelha da cor do meu cabelo.

— Seu pai vai matar esse menino quando ele souber! – Eu comecei a rir.

— Nem me fala! – Ela, ainda mais vermelha, olhou para os próprios pés. - Mas eu aceito o acordo dele dormir no sofá!

Tive que rir da situação.

— Então, amanhã eu vou resolver a troca da minha passagem e comprar a sua. E agora, eu acho que está na hora de dar banho em alguém, porque está chegando a hora de dormir. – Olhei para a ruivinha no meu colo e notei que ela dava enorme bocejo.

— Em que posso ajudar? – Kelly perguntou animada.

— Bem... eu preciso que você me faça um favor, mas esse vai te deixar muito molhada...

— Não me diga...

— Ou você pode ficar tomando conta da Sophie enquanto eu vou no carro e pego as nossas malas...

— Eu fico tomando conta da Sophie! Nem pensar que eu encaro essa chuva fria!!

Precisei de três viagens até o carro para trazer tudo, no final eu estava ensopada. E Kelly tentava não rir da minha situação.

— Pode ir parando mocinha. Você ficou muito pior do que isso em Londres!

— Precisava lembrar? – Ela falou com um beicinho.

— Lembre-se de uma coisa, Kelly. Eu não esqueço as coisas, apenas as armazeno para usá-las como arma mais tarde!

— Ai meu Deus! Vou tomar cuidado com o que falo a partir de agora!

— Falar? Você às vezes diz muito mais agindo do que falando, Kelly. Exatamente como seu pai!

— Essa genética! – Kelly respondeu emburrada. – Tem certeza de que não precisa de ajuda com o banho da Sophie?

— Tenho! Pode ir ligar para o Henry que eu não vou te atrapalhar!

— Como você sabe?! – Ela perguntou atônita.

— O que você acha que eu faço para viver?

Ela sumiu para dentro do quarto murmurando qualquer coisa sobre eu e Jethro nos merecermos.

E minha mente voltou a ele. Será que ele tinha chegado bem em Moscou? Será que essa operação seria mais tranquila do que a última? A principal pergunta: Será que ele estava feliz ao lado daquela ruiva avoada?

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Eu não consegui dormir, por mais cansada que estivesse e olha que sono não me faltava, foi impossível de pregar o olho.

Toda santa vez que eu tentava, ao fechar os olhos, eu sonhava com ele. E com a atual esposa dele.

Olhei para o lado de fora, a chuva ainda caía forte, porém não tinha mais trovões ou relâmpagos para acordar a bebê que dormia tranquilamente do meu lado, alheia a toda a bagunça que as minhas decisões e a sua chegada tinham causado.

Ah se eu tivesse me virado para ver quem era o marido daquela ruiva!

Se eu tivesse ficado mais vinte segundos na cafeteria, eu o teria visto. Ele teria conhecido Sophie. Contudo, ainda seria tarde.

Suspirei frustrada, não adiantava, eu não conseguiria dormir. Me levantei do sofá, e, depois de me certificar de que Sophie estava bem, acabei indo direto para o santuário de Jethro. Se tinha um local onde tudo, absolutamente tudo, me lembrava ele, era ali.

Fiquei parada por um tempo contemplando o barco que ele construía, me perguntei se a escolha do veleiro foi proposital ou ele somente quis fazer isso para nomear este barco com meu nome e queimá-lo.

Encostei no esqueleto e observei a bancada de serviço. A quantidade de ferramentas era absurda, e pude ver que tinha um kit ainda não usado no alto do armário. Deveria ser este o presente que Kelly tinha comprado no penúltimo aniversário dele.

Até parecia que tudo o que aconteceu naqueles quatro dias fora uma vida atrás.

Eu não sabia exatamente o motivo de ter descido até ali, porém, a minha viagem não ficaria em vão. Eu tinha que avisá-lo da existência da filha mais nova. Eu precisava fazer isso. Pelo bem da própria Sophie.

Assim, procurei nas gavetas por alguma folha de papel e caneta e me surpreendi ao ver um arquivo do NCIS enterrado no meio de folhas de projetos e desenhos.

Minha curiosidade me venceu e tive que tirar para ver o que era.

Abri, esperando ser algum caso em aberto ou até mesmo alguma informação sobre o namorado de Kelly, Jethro era capaz de fazer qualquer coisa para manter a garotinha do papai segura, porém, quando abri fiquei espantada. Não era nada disso.

Era o meu arquivo. Que, pelo visto, era atualizado toda semana por ele. A última folha trazia a data da minha licença, sem especificar de que tipo era. E Jethro tinha rabiscado na folha, grifado o fato de eu estar hospitalizada e, logo em seguida escreveu: Eu não te dei permissão para morrer, Jen. Você não vai me deixar aqui.

Por que ele faria isso agora? Remorso? Ele teve todas as chances de tentar consertar o que ele havia falado! Por que se preocupar agora? No fundo, eu sabia a resposta, ele se preocupava não porque me amava, mas, de algum jeito, o fato de sermos parceiros tinha cobrado o preço. Se em mim ele se tornou uma pessoa que eu jamais vou esquecer, eu acabei por despertar nele o sentido de superproteção. Porque se tem uma coisa que eu jamais vou poder negar é que ele realmente se preocupava comigo. Jethro nunca deixou de ser o meu parceiro, de vigiar as minhas costas.

Fechei o arquivo, antes que todas as memórias me atingissem de uma única vez.

Assim que o fiz, uma folha em branco caiu. Era o que estava procurando.

Sem pensar duas vezes, acabei por escrever.

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Olá Jethro.

Sim, sou eu de novo, e te prometo ser pela última vez. Como você pode ver, eu não estou morta, como você estava com tanto receio que pudesse ter vindo a acontecer. O motivo de eu ter sido hospitalizada foi outro ou quase.

Sim, eu fui atingida por uma bala, quase morri, mas foram capazes de me trazer de volta. Me trouxeram de volta e trouxeram a nossa filha para este mundo.

É exatamente o que você leu. Não tenho certeza se você chegou a ler a primeira carta que te mandei ou ouviu o recado na secretária eletrônica, mas o que importa é que, dois meses depois que eu parti e que você voltou para os EUA, eu descobri que estava grávida. E sim, a bebê é sua. O nome dela é Sophie e parece ter herdado um de seus olhos. Nossa filha, Jethro, tem um olho de cada cor.

Bem, você pode ter estranhado o fato dessa carta ter aparecido no meio das suas coisas. Não culpe Kelly por isso, ela não tem culpa, eu que tenho.

Eu trouxe Sophie para que ela te conhecesse, para que você a conhecesse. Todavia, você não estava aqui. Tinha partido para a missão na Rússia. A mesma missão que eu declinei por conta de nossa bebê. Espero que quando ler isso, tudo tenha corrido bem, que tanto você quanto Callen tenham saído sem problemas para lhes perseguirem.

Assim, Jethro, apesar de saber que essa missão terá a duração de seis meses, eu espero que até a data de seu retorno, até que você leia esta carta, você já tenha se acalmado o suficiente para poder pensar com clareza à respeito do que você quer fazer quanto a Sophie.

Se quiser ir vê-la, quiser conhecê-la, estou morando em Londres, no mesmo apartamento em que ficamos enquanto eu me recuperava, o telefone, inclusive, é o mesmo.

Caso decida por ignorá-la, basta não me responder, não me ligar.

Saiba que Kelly já se decidiu, e vai fazer parte da vida de Sophie; e vai me ajudar a contar a ela quem você é, para o caso de algum dia você mudar de ideia.

Obrigada pelo melhor presente que você poderia me dar. E obrigada por, mesmo não sentindo o mesmo que eu, tomar conta de mim. Saiba que eu faço o mesmo. Você será para sempre o meu parceiro.

Se cuide, Jethro.

Jenny.

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Assim que acabei de escrever, escutei Sophie choramingar no andar de cima. Dobrei o papel e deixei dentro do meu arquivo, endereçado a ele. Torcendo que ele pudesse vê-lo.

Subi as escadas o mais rápido que consegui, quando cheguei no topo, dei uma última olhada para o porão que um dia apareceu em um sonho meu, certa de que, muito provavelmente, eu nunca mais entraria ali.

Balancei a cabeça e me concentrei na minha filha, mais um dia começava.

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Jen tinha conseguido arrumar uma passagem para mim e, dois dias depois de sua chegada, nós três estávamos partindo para Londres.

Dessa vez eu avisei para Henry onde estava indo. Ele pareceu chateado por eu ir viajar sem que pudéssemos nos despedir, mas ficou feliz por eu, finalmente, ter acertado as coisas com Jen. E prometeu que iria a Londres me ver. Ele, diferente de mim, já tinha completado dezoito anos.

Nossa viagem foi tranquila, Sophie apagou assim que chegamos em altitude de cruzeiro, eu lutei contra a vontade de dormir por um tempo, queria conversar com Jen, porém não consegui e acabei apagando, só me lembro de ser acordada quando serviram o jantar.

A viagem, para mim, passou em um piscar de olhos. Não poderia dizer o mesmo de Jen, já que assim que desembarcamos, ela tinha uma cara de quem estava exausta. Que estava drenada emocionalmente.

Passei pela alfandega sem problemas, Jenny mostrou o seu distintivo e, em uma cena que eu jamais vou me esquecer disse que eu era a filha dela e que estávamos em Londres para visitar o meu pai – o marido dela – para que ele pudesse conhecer a filha mais nova.

O segurança do aeroporto caiu que nem um patinho e, quando nos demos conta, até nossas malas já estavam conosco.

— Você deveria fazer isso mais vezes! – Sibilei na direção dela.

— Não se pode brincar com a sorte todos os dias, Kelly. – Ela respondeu em um tom baixinho. – Apenas vá na onda.

Segui exatamente o que ela estava fazendo e, assim que me vi na segurança do carro dela, pude respirar.

— Você acha que não vão contactar o papai sobre essa chegada não?

— Não. Você vai passar as férias por aqui, na hora da volta, eles já terão esquecido. – Ela falou e depois se concentrou em dirigir.

— Céus, isso é mais doido do que quando você me trouxe aqui pela primeira vez! – Exclamei.

Ela me lançou um sorriso triste.

— Dessa vez eu não poderei te levar para um passeio a cada dia, tenho que voltar para o escritório e dar assistência para a operação na Rússia, mas também não vou te deixar morrendo de tédio no apartamento, pode apostar. Noemi estará lá o tempo todo, e quando ela sair para resolver algumas coisas, você pode ir com ela. Sei que ela vai adorar, pois ainda não se acostumou com nada aqui em Londres. – Jen continuou.

— Eu não tenho nada para reclamar, Jen. Pelo menos aqui eu tenho certeza de que você vai conversar comigo!

— Isso eu vou mesmo. E agora, o que você quer fazer? Quer dar uma volta pelo centro de Londres, ou prefere ir descansar um pouco?

— Você ficaria muito brava se eu aceitasse a segunda opção? – Perguntei incerta.

— Claro que não! Poderemos dar uma saída mais tarde, então. Só tenho que voltar para o escritório amanhã pela manhã.

— Unh... Jen? – Comecei sem saber bem como tocar nesse assunto.

— Diga? – Ela dividia a sua atenção entre dirigir, prestar atenção no trânsito, olhar a Sophie no banco de trás e conversar comigo.

— Você é multitarefas, sabia disso? - Brinquei.

— Não era isso que você iria falar! – Ela falou com uma certeza que me deu até medo.

— Não. Eu... é quer dizer, essa operação que você vai supervisionar ou vigiar, sei lá, é a mesma em que o meu pai está?

Ela respirou fundo antes de responder.

— Sim, é exatamente a mesma.

— Mesmo longe assim, você ainda vai protegê-lo?

— Devo isso a ele, e, bem, é o meu dever! – Ela falou, mas notei que ela tinha encerrado o assunto. – Prometo que nada vai acontecer com ele, Kells. Seu pai sabe se cuidar.

— Correção, você cuidava dele. Agora eu não sei...

— Callen é um ótimo agente, vai trabalhar ao lado do seu pai mil vezes melhor do que eu.

— Jen, ninguém nunca será capaz de superar o seu lugar como parceira do meu pai. Pode ter certeza disso! – Garanti.

— Nunca diga nunca, Kelly. Você não sabe o dia de amanhã.

Dei uma olhada nas redondezas, tentando reconhecer algum lugar, mas eu estava tão focada em ler os dois parceiros na primeira vez que vim aqui, que mal prestei atenção na vizinhança.

Não se passaram dez minutos e Jen anunciou a nossa chegada.

Olhei o prédio. Era o mesmo. E ao mesmo tempo parecia tão diferente. E eu tinha a obrigação de fazer esse diferente ser tão bom quanto a primeira vez que vim aqui.