Eu esperava que Jen já estivesse dormindo. Mas essa esperança era em vão. Ela estava acordada e escrevia algo. Logo notei ser uma resposta para Kelly. Depois de quase dois meses minha filha, enfim, mandara notícias.

Entrei no apartamento o mais silenciosamente possível. Evitei esbarrar nas coisas, meu único objetivo era dar logo um fim nestas roupas e me fazer apresentável para que Jen não se assustasse.

Meus planos foram para água abaixo assim que ela, parecendo pressentir a minha presença, se virou na minha direção, e no mesmo instante eu pude ver o pânico em seus olhos.

Pelos primeiros trinta segundos, ela ficou sem reação, petrificada em seu lugar, depois correu na minha direção e começou a me tocar, como se querendo saber a extensão dos danos.

— Jethro, por Deus, o que aconteceu com você?

E sem me dar tempo para responder:

— Eu deveria ter ido com você, nem que fosse para ficar escondida em algum lugar. Tinha algo me falando que isso poderia não dar certo!

Tentei fazê-la me olhar. Eu precisava dela centrada e concentrada em mim. Mas tudo o que eu via era a preocupação evidente em seus olhos verdes.

- Jen, eu estou bem. – Tentei afirmar.

— Bem?! Jethro! Olhe todo esse sangue! E você está com dor. Onde foi? – Jen passava a sua mão devagar pelo meu braço.

— Não foi sério! – Falei.

Contudo ela não relaxou, até que achou. O buraco da bala em meu braço.

— Deixe que eu decido se você está bem ou não. – Seus olhos eram duros, e sua voz demonstrava toda a sua fúria, que eu sabia que não era dirigida a mim.

Ela me guiou para o quarto, pegou uma muda de roupa limpa e me mandou tomar um banho.

— Eu vou dar um jeito nessas roupas sujas de sangue, e assim que você terminar vou dar uma olhada no seu braço. – Ela falou, fechando a porta.

Quando eu saí, ela estava sentada na cama, a caixa de primeiros socorros no seu colo. Ainda não tinha melhorado a expressão.

— Não estou brava com você. Mas sim comigo. – Jen respondeu à pergunta estampada no meu rosto. – Eu deveria ter ido com você, Jethro. Agora você está ferido. Isso é culpa minha!

Inacreditável que ela estava se culpando.

— Jen, por favor.

— Sente-se aqui. – Ela pediu sem olhar em meu rosto.

Fiz o que ela falou. E Jen começou a examinar o meu braço.

— A bala atravessou. Menos mal. Vou esterilizar e dar os pontos. Ducky deixou novas suturas. – Seus olhos concentrados em meu braço. – Aviso que vai doer.

— Eu sei. – Falei tentando deixá-la mais confortável com isso do que eu.

Observei quando ela começou a esterilizar a ferida. Cada vez que era obrigada a usar um pouco mais de força, Jen mordia o próprio lábio.

— Hei. – Chamei-a.

Ela, deliberadamente, não me olhou.

— Jen. – Chamei mais uma vez.

Ela continuou a limpar o machucado. Foi quando eu senti algo quente e úmido tocar a pele do meu antebraço. Passei a mão. Era uma lágrima.

Com a minha mão esquerda apoiei o queixo de Jen entre o polegar e o indicador e levantei o seu rosto até que seus olhos ficassem da altura dos meus.

Quando a encarei, ela tinha os olhos cheios de lágrimas.

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Eu tinha escutado Jethro chegar antes mesmo que ele abrisse a porta. E estranhei que ele não se fez presente ou tentou me assustar quando entrou. Foi quando o sinal de alerta se acendeu em minha mente. Para ele tentar passar tão despercebido, algo tinha que ter acontecido.

Encerrei a carta que escrevia para Kelly, dobrei-a e me virei na direção na sua direção.

Fiquei petrificada. Ele estava coberto de sangue. Minha mente começou a trabalhar a mil por hora, foi quando eu percebi que nem todo aquele sangue poderia ser dele, ou ele não estaria de pé e muito menos teria conseguido chegar até o apartamento, porém ali tinha sangue dele também.

Corri na direção dele e comecei a procurar por qualquer ferimento que fosse perigoso a ponto de ele correr riscos. No abdômen não tinha, contudo ele sentia dor, logo imaginei que ele entrara em algum tipo de embate.

Jethro tentou me dizer que estava bem.

Era uma clara mentira. Ele não estava bem. Ele estava com dor. E foi quando eu achei, ao tatear seus braços. Tinha um enorme buraco de bala no braço direito.

Fiquei ainda mais apavorada.

No que ele havia se metido?

A sorte dele – e minha – era que o sangue ali já estava coagulando, indicando que o ferimento, apesar de feio, não era grave. Pude respirar um pouco mais calma, contudo, eu estava brava comigo mesma, eu deveria ter ido com ele. Não sou eu a parceira dele? Protegê-lo em situações assim é o meu dever.

Arrastei Jethro para o quarto, peguei uma muda de roupa limpa e, depois de tê-lo praticamente jogado debaixo do chuveiro, tinha que sumir com as provas do que, até que ele se explicasse, eu consideraria como um assassinato.

Acendi a lareira e quando o fogo já estava bem alto, queimei as roupas, rezando para que não ficasse nenhuma evidência do crime.

Peguei a caixa de primeiros socorros e voltei para o quarto. E, por todo esse tempo a vozinha na minha cabeça me chamava de culpada. Jethro só estava ferido porque eu não estava lá.

Sentei-me na cama e esperei que ele saísse do banho. Escutei o chuveiro ser desligado e poucos minutos depois ele saiu do banheiro só com a toalha amarrada na cintura.

Fosse outra circunstância eu não teria me contido, mas quando meus olhos pousaram na ferida aberta e zangada no braço direito dele, eu não contive as lágrimas que encheram os meus olhos.

De relance eu vi sua expressão. Ele queria saber o motivo por trás da minha raiva.

— Não estou brava com você. Mas sim comigo. – Respondi sem olhá-lo. – Eu deveria ter ido com você, Jethro. Agora você está ferido. Isso é culpa minha!

Eu tinha ciência de que ele me fitava, podia sentir seu olhar me queimando. Quando eu não o olhei ele me chamou.

— Jen, por favor. – Ele me pediu. Jethro nunca fala “por favor”, só quando ele está realmente arrependido ou preocupado.

— Sente-se aqui. – Pedi, batendo com a mão do meu lado. Ainda evitava encará-lo. Tinha certeza de que, assim que levantasse meus olhos, a torrente de lágrima se derramaria.

Para minha total surpresa, ele não reclamou ou me contradisse. Simplesmente se sentou e eu comecei a analisar a ferida.

— A bala atravessou. Menos mal. Vou esterilizar e dar os pontos. Ducky deixou novas suturas. Aviso que vai doer. – Não quis dizer que doeria em mim fazer aquilo. Eu me lembrava muito bem da sensação de queimação.

— Eu sei. – Jethro me respondeu. O tom de sua voz era claramente estudado para me deixar confortável.

Respirei fundo e comecei a esterilizar o local. O cheiro do antisséptico enchendo as minhas narinas. Quando fui obrigada a ir até o meio da ferida, me encolhi. Eu queria gritar de frustração por aquilo ter acontecido. A minha única reação foi morder o lábio e me manter calada e concentrada no que fazia.

Novamente eu senti o olhar dele sobre mim. Ele estudava minhas reações como um todo, e, de uma forma ou de outra tentava chamar a minha atenção. Quando eu não respondi ou o olhei de volta, Jethro me chamou.

— Hei. – Ele começou e eu fiz o meu melhor para ignorá-lo.

— Jen. – Chamou mais uma vez usando o meu apelido, sua voz mansa. Eu continuei a limpar o machucado. Mas fui traída pelos meus olhos e as malditas lágrimas. Tentei piscar rápido para fazê-las voltarem, contudo foi inútil, uma única lágrima me escapou. Eu a senti descer pela minha bochecha e vi claramente quando a gota pousou no braço de Jethro.

Não levou nem um segundo e sua mão esquerda pousava em cima da gota. Acho que foi demais para ele. E, quando notei, seus dedos estavam em meu queixo e sua mão levantava o meu rosto para encará-lo, não me dando alternativa a não ser travar meus olhos cheios de lágrimas nos seus olhos azuis. E eu li o que ele estava pensando antes mesmo que ele conseguisse expô-los.

— Ah, Jen! – Ele tentou me acalmar. – Por que você se culpa?

Por incrível que pareça ele estava tentando me acalmar! Não era hora para ele me acalmar. Não. Era exatamente o inverso!

— Por quê?! – Eu não sei se eu queria gritar, chorar ou estapear a cabeça dele para ver se ele compreendia a situação. – Jethro. Olhe para você!! – Explodi.

— Eu estou bem! – Ele me afirmou.

— Bem?! Você não está bem! Você foi ferido. E sabe quem tem que impedir que isso aconteça? EU!! Mas eu não estava lá. E por conta disso você está nessa situação! – A essa altura as lágrimas de frustração e ódio já escorriam pelo meu rosto.

Mais uma vez ele apenas me olhou. Tinha horas que seus olhos falavam muito mais do que a sua boca. E eu me vi conversando com ele somente pelo olhar.

E ele me dizia, não, ele me garantia que nada disso era a minha culpa. Que fora a exigência do nosso “cliente”.

Tentei sair daquele olhar hipnotizador e voltar para o braço dele.

— Não. – Falei. Minha voz soando muito alta no quarto silencioso. – Você não vai me convencer de que o que eu fiz foi o certo. Não dessa vez. – Balancei a minha cabeça para tentar desviar o foco e voltei a olhar para o seu braço.

Ele suspirou pesadamente. Estava claramente nervoso com a minha explosão.

— E não eu não estou reagindo exageradamente. – Disse, respondendo à sua última reação.

Ele deu uma risada de desdém.

— Você pode responder a um suspiro meu, mas não pode acreditar no que eu estou te falando?

— Vou começar a sutura. – Avisei.

— Não mude de assunto, Jen. – Me alertou.

— Não estou mudando de assunto, só te avisando. – Levantei minha cabeça para olhá-lo. E ele estava perto demais.

— Por que você é tão teimosa? Tão dura consigo mesma? – Ele perguntou sem tirar o rosto de perto do meu.

— Você poderia ter morrido! – Minha voz estava bem baixa. A realidade do que poderia ter acontecido me atingindo. – E teria sido minha culpa.

— Eu não morri, Jen. – Ele levou a sua mão esquerda até a minha bochecha para limpar uma lágrima.

— Não desdenhe o que aconteceu. Será que você não entende a gravidade disso aqui? – Eu estava brava por ele ser tão leviano com o perigo, como ele podia?

— Já passei por coisa pior. – Foi a resposta rápida que recebi.

— Jethro, por favor.

— Jen. Eu estou bem. Isso. – Ele apontou com a cabeça para o braço onde eu estava trabalhando. – Não foi nada comparado com o que aconteceu com você na Sérvia. E lá, eu deveria ter te protegido, sua posição era a mais vulnerável. O que aconteceu hoje, é só o resultado do que nós estamos fazendo. Não está nas nossas mãos. – Seus olhos estavam fixos nos meus e eu vi que cada palavra era verdade.

Concordei minimamente com ele e voltei a suturar seu braço. Mas a sensação de culpa ainda me corroía. E ele parecia sentir que eu me culpava, pois quando estava quase terminando ele apoiou o queixo no alto da minha cabeça e depositou um beijo ali. Fechei meus olhos quando senti seus lábios em meus cabelos.

— Você vai sempre reagir desse jeito, Jen? Você vai sempre reagir de forma exagerada cada vez que alguma coisa acontecer comigo? – Ele sussurrou contra a minha orelha.

Tinha terminado a sutura e estava enfaixando o local. Assim que terminei, juntei a minha coragem e o encarei.

— Você gostando ou não, sim. Eu vou reagir dessa forma exagerada. Sou sua parceira e é isso que parceiros fazem. – Disse firme.

Ele deu um meio sorriso.

— Obrigado.

Fui pega de surpresa.

— É bom saber que tem mais alguém se preocupa comigo. – E, para me deixar ainda mais estarrecida, ele me abraçou e apoiou a cabeça em meu ombro.

— Não fique tão feliz. Você vai acabar por notar que eu sou grudenta demais. – Brinquei, tentando mandar o clima fúnebre embora.

Ele riu contra o meu pescoço. E eu poderia ficar assim, com ele me abraçando, por muito tempo.

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Deixei Jen no quarto, grato que ela ainda estava dormindo quando me levantei, assim ela não teria outro ataque de culpa quando me visse, ou melhor, visse o resultado da briga de ontem.

Depois que ela suturou meu braço, Jen ainda tentou tirar de mim o que realmente acontecera. Dei uma versão resumida. Isso não iria para os relatórios oficiais mesmo. A única informação solicitada era ao final de tudo. E até lá, cada passo pelo caminho era dado no escuro, completamente fora dos registros.

Assim que entrei na cozinha, notei dois envelopes sobre a mesa. Um era a resposta de Jen à carta que Kelly escrevera. Dessa vez eu perdera as suas reações, e, diante disso, não tinha a mínima ideia do assunto dessa carta. O outro era endereçado a mim.

Certos momentos chego a pensar que Kelly tem um sexto sentido. Ela sempre consegue fazer com que suas cartas cheguem no momento exato.

Preparei uma xícara de café e abri o envelope. O que ela aprontara dessa vez?

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Alexandria, 28 de fevereiro de 1999

Carta 15

Oi Papai!

Eu sei, faz um tempão. E, vendo por todos os ângulos, isso não é uma desculpa. Escola também não é, assim, eu não tenho como me desculpar de não ter escrito mais cedo...

Sabe, eu estive pensando ao olhar a data dessa carta, já faz um ano que o senhor está do outro lado do oceano. E eu não sei dizer se passou rápido ou devagar demais ou talvez tenha passado no ritmo normal, eu que, como sempre, reagi de forma exagerada. Minha alegria é saber que está acabando.

Para falar bem da verdade, quando o senhor voltar eu vou te fazer me prometer que nunca mais vai pegar outro trabalho como este.

Sim, eu entendo que faz parte do conjunto e das atribuições de ser um agente federal, porém eu andei pensando em uma coisa. Quem mandou o senhor para essa missão ou não tem família – o que não me surpreenderia, tendo em vista o tempo em que essa coisa está durando -; ou não se importa com a vida e a família dos agentes.

Dito isso, eu só quero dizer que agradeço aos céus por já estar acabando. Tem sido difícil esse último mês por aqui.

Eu sei que é cedo para começar a fazer a revisão de tudo o que aconteceu no último ano, mas só te digo uma coisa, dessa missão eu só vi duas coisas boas.

1º - as viagens que pude fazer, sim, além de matar a saudade que estava do senhor, eu conheci um pouco de Londres e de Paris! E eu nunca vou esquecer isso!

2º - a Jen ter entrado nas nossas vidas. Temos que admitir, ela tem sido uma salvadora!

Porque fora isso, eu te garanto que eu envelheci uns dez anos só de preocupação! Achei até um fio branco hoje de manhã!!! Sério!! Não ria! Você perdeu o show que eu dei... Mas voltando, é meio injusto eles mandarem um agente que tem família para ficar tanto tempo fora... será que ninguém mais poderia ter ido?

Está terminando, e é isso que importa. Já dá para contar os dias. Nunca fiquei tão feliz para o verão chegar.

Eu tô dando essa volta toda para pode te agradecer propriamente a minha visita à Paris. Sei que poderia ter feito isto por telefone, mas me pareceu estranho demais, e eu ainda estava sob o efeito tanto do jetlag quanto da conversa com Henry. E tem uma vozinha no meu interior que fica me importunando e me chamando de ingrata.

Assim, além da viagem, quero agradecer muito os conselhos. Todos eles valeram à pena. Eu realmente estava precisando de um ombro para chorar e uma palavra para poder me colocar para cima. E, na viagem de volta eu fiquei pensando em como eu iria utilizá-los. Acho que nem precisava pensar tanto. O senhor pode não gostar, mas tudo o que falou foi o que salvou meu namoro.

Papai, o senhor não faz ideia da falta que anda fazendo por aqui. Dentro de quatro meses e meio vou estar te esperando no aeroporto! Esperando vocês.

Vou indo, tenho ainda mais coisa para fazer, estão acabando comigo nesse ano.

Te amo e estou com saudades!!

Beijos.

Kelly.

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Paris, 1999

Carta 13

Kelly,

O que você realmente está escondendo de mim? Eu te conheço muito bem para saber quando você está triste e quando você está apenas enrolando.

E, na sua última carta, você enrolou. Sim, senhorita, você tinha muito mais na sua cabeça do que apenas dizer que já faz um ano que a missão começou.

E antes que você comece a xingar enquanto lê a carta, saiba que dessa vez a Jen não teve nada a ver com isso. Eu não estava perto dela quando ela leu e escreveu a resposta para você.

Assim, mocinha, o que realmente está te importunando? O que aquele garoto fez? Ou aconteceu algo muito maior no almoço que você foi na casa dele e você não quer me contar?

Kelly, eu te avisei antes que você embarcasse, eu te disse que sempre que precisasse você poderia me contar tudo. E eu sei que algo aconteceu e você, quando nos ligou não quis contar.

Te darei duas semanas para que me conte, ou vou pedir a Jenny. Sei que ela se manterá do seu lado, mas se você não confiar em mim, filha, como vamos fazer?

Você disse que eu “salvei” o seu namoro. Mas tem algo a mais em tudo isso que não está te deixando sossegada. E seja lá o que isso for, está te afetando.

Não vou te dar um sermão sobre esse seu relacionamento, creio que a essa altura já é tarde demais para tentar abrir os seus olhos, mas gostaria que me contasse o que tem que ser contado e eu não quero saber de surpresas quando eu voltar Kelly. Será muito pior contar cara-a-cara.

Fico esperando a sua verdadeira carta. Caso não chegue, eu dou um jeito de saber.

Também estou com saudades. Falta pouco filha. Posso te garantir que está realmente acabando.

Papai.

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Eu o peguei encarando tanto a carta quanto a resposta que ele havia escrito. Kelly não tinha sido uma boa mentirosa no final. Jethro percebeu que ela escondia algo, ou isso, ou ele realmente tem um radar que detecta problemas mesmo a um oceano de distância.

Agora ele estava mal-humorado e taciturno. Seria um dia difícil para descobrir o que realmente acontecera naquela reunião.

Fiz meu caminho até a bancada onde coloquei a cafeteira para funcionar, foi só aí que ele percebeu que eu estava no mesmo ambiente que ele.

— Não pense você que não vi, porque eu vi. – Falei assim que ele me encarou.

Primeiro ele levantou a sobrancelha, como que me desafiando a falar o que eu vira, quando não desviei o olhar, ele fechou a cara.

— Foi pior do que me disse, Jethro. Você está todo machucado. Quantos eram?

Por alguns segundos ele fingiu não me ouvir, contudo não teve escapatória quando me sentei na sua frente.

— Quantos? – Tornei a perguntar.

— Não eram para estar lá. Não reconheci ninguém.

— Uma embosca de algum outro fornecedor que prendemos, então?

— Pode ser.

— Isso não é bom. Aquele sangue na sua roupa?

— Do ex braço direito de Zukhov. Outro caiu bem na nossa frente.

— Foi você?

— Bem que eu queria, ele me tentou a noite inteira. Mas não. Ele foi o primeiro a cair e como tinha informação para dar, me chamou.

— Informação boa?

— É. Me deu o endereço da residência de Zukhov em Paris. No final, valeu a pena. – Ele disse com um sorriso vitorioso.

— Mais alguma coisa? Não podemos, simplesmente, aparecer na porta deles.

— Nada. Vamos esperar aquele baile.

— O baile... é dentro de dois meses. Até lá poderemos vigiar quem Zukhov e Svetlana colocaram como novo braço direito. – Pensei.

— Não podemos ir lá.

— E o que Decker está fazendo em Paris, além de arranjar uma namorada atrás da outra, Jethro? Ele tem que fazer pelo menos isso.

Jethro deu um sorriso na minha direção. Ele sabia que eu estava certa.

— Alguém sobreviveu, além de você? – Voltei para o tom neutro. Eu tinha prometido a mim mesma que não iria surtar de novo.

— Dois.

— Jethro, você tem mais informações do que isso. – Falei exasperada.

— Agora é a Jen que eu conheço! – O olhar que ele me lançou era tudo, menos inocente.

— Seu bastardo. Pare com isso. O que você tem?

— As identidades, estão no carro. – E o sorriso de lado voltara. Ele tinha um plano.

— Está pensando o mesmo que eu? – Falei, meu sorriso imitando o dele.

— Devo estar.

Esses caras vão se arrepender de terem nascido. Ah, eles vão!

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Olhei em direção à casa. Estávamos parados de vigia há pelo menos três horas. Tempo suficiente para Jen limpar a sua arma umas três vezes. E o olhar calculado dela me dizia que quando ela entrasse naquela casa, todos os segredos iriam ser contados.

— Se você limpar essa arma mais uma vez eu vou tomá-la de você! – Rosnei quando notei que ela olhava minuciosamente para dentro do carregador.

— Você está vigiando. Parece até um cão pastor olhando as ovelhinhas. Eu não tenho nada para fazer, e para ocupar a minha mente com outra coisa a não ser as torturas que estou pensando em fazer com aqueles dois, eu gosto de limpar as minhas armas. E, como limpar essa arma já está te incomodando – Ela colocou o carregador no lugar com um audível cleck – Eu posso pegar a minha reserva. – Jen levou a mão até o tornozelo e começou a tirar a sua segunda arma. Tive que segurar o seu braço.

— Você já limpou essa também, dentro do apartamento. Será que você pode parar? – Rosnei para ela.

E ela me encarou. Os olhos verdes faiscando. Não de raiva ou de desejo, era um novo brilho. Ela queria vingança.

O portão da casa foi aberto, nos abaixamos e, assim que o carro passou e verifiquei pelo retrovisor quantos haviam saído, eu soube, era a hora. Nem precisei olhar para o lado, Jen já tinha a mão na maçaneta para abrir a porta.

Demos a volta até os fundos da casa. Lá, não sei por qual motivo, tinha um portão que, após Jen ter testado, descobriu que estava trancado.

— Quer fazer as honras? – Perguntei,

— Fique à vontade. – Ela me respondeu. – Eu vou vigiar.

Ela realmente vigiou. O meu trabalho.

— Você não sabia arrombar uma porta, sabia?

Shepard deu de ombros.

— Agora eu sei!

— Eu não te ensinei nada.

— Jethro, você nunca ensina, a gente olha e aprende, exatamente como fiz agora. Será que dá para entrar, aqui não é um bom lugar para uma DR.

Eu abri o portão, e ela passou na minha frente, arma empunhada, vasculhando o perímetro.

— Limpo. – falou um pouco mais a frente.

— Limpo. – Respondi.

O gramado era comprido e levada até uma porta de vidro.

Notei que Jenny vasculhava por outra coisa.

— O que foi? – Perguntei chegando mais perto.

— Cachorros. – Ela me mostrou as casinhas. – Espero que você não tenha medo. – Mesmo no escuro eu sabia que ela tinha um sorriso zombeteiro nos lábios.

— Vamos logo! – Passei na frente e ditei o ritmo até à casa.

Não encontramos nada pelo caminho. A porta estava totalmente destrancada.

— Acho que não estavam esperando nenhuma visita. – Jenny falou dando um passo para a cozinha iluminada, surpreendentemente seus saltos não denunciaram a sua posição. E ela notou a minha surpresa e arqueou a sobrancelha para me provocar. - Eu sei muito bem andar com estes sapatos, Jethro.

O primeiro andar estava limpo, porém nos deu uma pista de que, pelo menos um dos homens tinha acabado ferido.

Do alto da escada veio um som. Nos entreolhamos e nos escondemos debaixo da escada. Era um dos homens que me atacara na noite anterior.

— Vai fazer as honras? – Ela me perguntou sussurrando.

Ouvimos ele descer as escadas. Não estava procurando por ninguém, mas carregava uma arma.

— Só mais um passo. – Jen pediu do meu lado, levantando o revolver e mirando a coronha na cabeça dele. Em um piscar de olhos ele estava desmaiado.

— Precisava de tanta força? – Brinquei com ela.

— Ele merecia. Tem outro no segundo andar.

Arrastamos nosso amigo para o segundo andar, e, assim que foi possível, o amordaçamos. Daqui a pouco voltaríamos a ele.

O outro foi mais fácil ainda. Desarmado e machucado, não nos levou nem dois minutos para subjugá-lo.

O colocamos do lado do parceiro desmaiado, sentado em uma mesa e preso na cadeira, ele não tinha para onde ir.

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- Você pode fazer isso do jeito rápido ou do jeito difícil. – Eu o alertei.

— Em qual dos dois você vai estar presente, baby. – Ele falou para mim.

— Nos dois, mas você não vai gostar do que vai acontecer. – Foi Jethro quem respondeu por mim. Seu olhar assassino.

— Quem mandou vocês? – Perguntei mais uma vez.

— Ninguém que te interesse. – Jacques falou e uma veia pulou na testa de Jethro.

— Você está vendo aquela veia ali? – Apontei. – Aquilo ali significa que a paciência dele acabou. Ou você fala na próxima vez que você perguntar, ou... – Apertei ainda mais as algemas, a ponto de machucá-lo de verdade.

— Ou o que? – Ele gemeu de dor.

— Quem te mandou? – Jethro assumiu o meu lugar às costas de Jacques e colocou as mãos em seus ombros. Tive que segurar o riso quando vi a expressão de pânico nos olhos dele.

— Eu te avisei. – Dei de ombros e me ajeitei, fingindo estar muito interessada na tortura à minha frente.

— Se eu contar eu estou morto. – Gritou.

— Se não contar, também. – Jethro falou bem calmamente.

— Quem são vocês? – Jacques olhava desesperado entre mim e Jethro.

— Aqueles que vieram te ensinar uma lição.

— Olha aqui, ruiva. Eu nunca vi vocês, e não vou falar nada... – Ele não terminou a frase, pois Jethro tinha acabado de deslocar o seu ombro, tudo o que ele conseguiu fazer foi gritar.

— Onde nós estávamos? Ah sim. Você iria me dar um nome... – falei de novo, brincando com uma faca.

— Sem nomes.... – Ele gritou.

Jethro olhou sugestivamente para a faca em minhas mãos.

— Mas já vamos começar com isso? Achei que teria mais diversão. – Fiz uma cara de paisagem.

Os olhos de Jacques quase soltaram das órbitas.

Entreguei a faca para Jethro, fiquei de pé e perguntei de novo.

— Quem foi que te mandou para aquela reunião no norte de Paris?

Jethro começou a passar a lâmina pela mão dele, como que escolhendo um dedo. Vi o suor brotar na testa de Jacques.

— Um nome e você continua com todos os seus dez dedos.

Ele achou que eu blefava. E me lançou um sorriso de escárnio.

— Bem, não vai ter jeito. É com você. – Falei com Jethro.

E lá se foi um dedo. E Jacques gritou tão alto que assustou o outro, Armand.

— Isso não é um blefe. Se você falar um nome, isso para e você morre com uma bala na cabeça, se não falar, vai desejar a bala, pois vamos te fazer desejar a morte. Quem te mandou lá?

Jacques tentava respirar normalmente, mas a dor era tanta que ele estava quase oscilando entre a consciência e a inconsciência.

— Esse é fraco. – Jethro falou brincando e, no mesmo minuto lançou um olhar para Armand.

— Quer ver se aquele ali é mais forte? – Respondi com a mesma expressão.

Armand tentou lutar, porém, como estava completamente amarrado era em vão.

— O nome da pessoa, e você não sofre igual ao fracote do Jacques. – Jethro o intimou.

Nada saiu da boca dele. E ouvimos Jacques sussurrar.

— Se contar, estamos mortos! Você sabe o que ele vai fazer!

— Olha, os dois tem medo do papai! – Falei voltando para Jacques. – E qual seria o nome dele? – Apertei a mão sem dedo.

Por mais de um minuto ele ficou sem reação. Pedi a faca a Jethro e apertei a ponta contra o outro dedão dele. Eu não tinha coragem de fazer isso, mas de ameaçá-lo eu tinha.

— O nome do seu Chefe? – Falei e Jethro começou a tortura psicológica em Armand.

Enterrei a faca um pouco mais, Jacques gritou de dor.

— Um... dois.... – Comecei.

Quando cheguei no três e a faca já estava bem funda, Jacques gritou.

— Benoit! Rene Benoit!! Pelo amor de Deus, para com isso!

Olhei para Jethro, ele respondeu meu olhar interrogativamente.

Esse desgraçado de novo. O que ele queria?

— Me conte o motivo?

— Ele quer saber onde um russo está escondido!

— Pare de falar! – Armand pediu. – Ou ele vai nos matar!

— Para que? Negócios?

— Não. Esse russo deve a ele. Eu não sei a história toda. E ele tem uma informação interessante. Sobre dois agentes americanos. Benoit disse que Zukhov foi relapso e agora tem que ser detido.

Eles sabiam demais.

— Bem, obrigado pelas informações. Aposto que o Sr. Zukhov vai ficar feliz em saber que estão atrás dele. – Dissemos.

— Ei! Vão nos deixar vivos? – Jacques disse. – Sabemos como vocês são.

— Sim e não. Alguém precisa alimentar os cachorros, não é mesmo? – Falei.

— Aqueles cachorros não vão nos matar. E antes do amanhecer serão vocês os dois corpos boiando no Sena.

— Eu não falaria isso. – Jethro ameaçou. – Negociantes de armas não gostam de delatores. E você é um. Nada que você disser será tido como verdade.

Jacques e Armand engoliram em seco. Dei dois passos para trás. Não queria ver o que Jethro iria fazer agora.

Ele saiu cinco minutos depois de mim. Eu já estava no volante, então antes mesmo que eu parasse o carro na frente dele ele pulou no banco do carona.

— Dê bastante voltas no centro. Precisamos de um álibi.

Dei uma olhada na direção dele. Não havia nenhuma manja de sangue em suas roupas.

Fiz o que ele pediu e por todo o tempo eu queria perguntar o que ele havia feito dentro daquela casa, mas algo me impediu.

Na manhã seguinte recebemos um telefonema de dentro dos círculos de Zukhov. Estavam nos pedindo para nos escondêssemos no melhor local possível. Quando perguntei o motivo.

— A InterPol descobriu um dos esconderijos de Benoit. Dois dos homens dele foram mortos, e pelo visto contaram tudo o que podiam.

Agradeci a dica, mesmo sabendo que não tinha sido nada disso.

— InterPol? Você conhece alguém lá? – Me virei para Jethro.

— Eu não, Ducky sim. E demos os dois de presente para eles. Uma forma de compensação.

— Vamos nos comunicar com D.C. sobre essa nova concorrência? – Perguntei tentando esconder a minha ansiedade.

— Creio que depois dessa, Benoit não vai tentar mais nada por um tempo.

— Por quanto tempo, Jethro? Ainda temos mais três meses.

— Vamos fazer o que nos foi dito, manter a discrição até que novas ordens cheguem. Eles não sabem da gente, Jen. Pode ter certeza.