Ela usava um vestido de corte antigo para se apresentar. O batom preto remetendo aos anos 20 junto aos saltos altos que estavam fora de contexto junto do resto do figurino apenas compunham uma imagem mais confusa e artística. O toque final era o paletó preto por cima de tudo, amarrado com a fita vermelha na cintura.

As músicas falavam de política de um jeito sensual agora, mas ela sabia que o que havia escrito de melhor eram as músicas de amor de quando era jovem.

Naturalmente, eram as menos valorizadas.

As pessoas gostavam de palavras difíceis, mas palavras difíceis só foram criadas para descrever sentimentos difíceis.

Era para isso que existiam em primeira conversa.

Ainda não haviam inventado uma palavra que descrevesse a sensação de vazio, abandono, que ela sentiu quando ele foi embora.

Nem outra para descrever a sensação de desencaixe que permanecia acompanhando seu corpo.

Com uma salva de palmas, Julie se curvou em cima do palco uma última vez. Era sua última noite nessa turnê apresentativa.

Há alguns anos, não conseguia mais tocar rock.

Ou um violão.

Ou uma guitarra.

Mas música era uma parte de si, então era disso que vivia.

Com seus vinte e sete anos, era uma das cantoras mais famosas do mundo.

E ninguém conseguia comentar o fato de que ela não escrevia canções de amor.

Ela queria que alguém notasse para que dissesse que o único amor de sua vida partiu trinta anos antes dela o conhecer, e quando Julie o conheceu, eles eram impossíveis.

Então a sua versão jovem precisou tomar as decisões difíceis, porque era o que dava para fazer.

E ainda dizia-se que quando as pessoas são jovens, não sabem de nada.

Daniel a vestiu com seu paletó preto algumas vezes, e isso a fazia sentir como se fosse a única. A única, a favorita.

E não é que ela não soubesse na época que ela não era, porque ela sabia.

Julie sabia de tudo isso.

Mas ele era um fantasma, caramba, e ela não queria virar um também para ficar com ele.

Daniel era um fantasma.

E Julie não deveria ter se deixado levar pelo fantasma, ela, novamente, sabia.

Mas ela conhecia Daniel.

Conhecia como se fosse sua própria alma, como se fosse um pedaço seu. Conhecia a guitarra dele e cada pequena fissura de uso, cada marca nas casas das cordas deixadas sabe-se lá como, porque Daniel era um fantasma e estava morto e não podia tocar nada.... Mas ele conseguia tocar ela.

Como conseguia.

Ele a animava quando ela não estava bem, quando Bia saía com o menino escroto no ensino médio. Ele a ajudou quando Julie subiu num palco pela primeira vez, e eles nem se conheciam direito.

Se conheciam, sim, mas não com convivência.

E quando Daniel ficava invisível para ela quando Julie estava brava por alguma coisa boba que ele fez ou deixou de fazer, ou quando a garota jurava que podia sentir o coração dele nas raras vezes em que se abraçavam.

O miocárdio estava sempre acelerado.

Ela sabia que não era coisa de fantasma.

Se ele estivesse vivo, com certeza ela o beijaria em cantos escuros de festa, distraída demais para perceber que derrubaram alguma bebida alcoólica na roupa dela, e então Daniel iria dizer para eles voltarem para casa. E ele ia oferecer água...

Se interrompeu.

Os aplausos cessaram e as cortinas se fecharam. Era hora de se recolher para o camarim e então ir para casa.

Daniel fez música e poesia ressoarem dentro dela. E então a deixou sozinha, sangrando vazio para todos os lados.

Não que Julie achasse que alguma coisa podia ter sido diferente.

Por achar que nada podia ter mudado é que ela sabia que eles eram feitos um para o outro.

Eles pensavam meio parecido. Ou complementarmente. Nunca de formas opostas.

Era essa parte que era pior.

Julie sabia que faria a mesma coisa, apesar de odiar o fantasma mesmo assim.

Daniel a deixou sem olhar para trás, entrando no desconhecido e sumindo. Deixando a merda do paletó para ela, como uma mancha de sangue ou vinho tinto.

Julie sabia que Daniel tinha tentado resistir, mudar o final, permanecer na banda. E ela o agradecia por isso, mas também sabia que essa situação se tornaria insustentável, porque eles iam ficar famosos juntos.

E ele, Martin e Félix teriam que partir uma hora ou outra.

Peter perdia Wendy no final de Peter Pan para o mundo. Daniel perde Julie para a vida.

Ele foi embora como sua mãe havia ido embora, como água correndo em um rio que não tinha direção.

E isso tudo, quando ela era jovem e diziam que ela não sabia de nada.

Caminhando devagar para seu camarim, Julie ainda ouvia o movimento das pessoas. A adrenalina em seu corpo diminuía aos poucos, ela tirava os saltos e carregava nas mãos.

Desfez o penteado do cabelo, enquanto os fios castanhos caíam sobre os ombros.

Apesar de saber de tudo isso, ela pensava em Daniel todos os dias.

Ele ficou por baixo de sua pele, perseguiria os maiores “e-se’s” dela. A fumaça gélida da ausência do guitarrista permaneceria por todo esse tempo, porque ela sabia disso tudo desde que tinha 16 anos.

Julie escreveu muitas canções falando sobre como Daniel a machucou, traiu, xingando o fantasma de todos os nomes possíveis, amaldiçoando sua alma penada, procurando por ele nos cantos das ruas em pequenos tijolos, em filas de supermercado, esperando que o fantasma estivesse vigiando Julie em segredo.

Mas sua versão jovem também sabia outras coisas que a sua versão mais velha esquecia cada vez mais.

Julie sabia antes que quando tudo aquilo passasse, todos aqueles sentimentos ruins e a angústia, o terror passassem....

Ela olhou seu rosto no espelho do camarim luxuoso enquanto tirava a maquiagem e o batom preto.

Cada passada em seu rosto, uma brisa fria distante que a acariciava nos braços, ombros, pálpebras.

Sentiu seu coração disparar.

Engoliu em seco, e deu um sorriso estranho para o espelho.

A voz veio antes da imagem de seu reflexo.

- Gostei desse seu sorriso largo de sequoia. – Então Daniel apareceu, a camisa vermelha dobrada até os cotovelos, o ombro encostado na parede. Um sorriso de canto meio torto, uma covinha aparecendo.

Ela não sabia se ainda tinha voz.

- Oi. – O fantasma finalmente falou, parecendo mais tímido agora.

- Oi. – Julie respondeu de novo, finalmente voltando a ser jovem e saber das coisas de verdade.

Quando a angústia e o terror passassem, Daniel voltaria para Julie.

E ele voltou.

- Você está bem. – Daniel começou, parecendo sem jeito, sem o encaixe usual.

Ela permaneceu calada, ainda incerta do que tudo isso queria dizer.

- Eu vim... Eu vim para dizer que você tem que seguir em frente, Julie. – Daniel dava um passo em sua direção a cada palavra que falava. Não era bem isso que ela gostaria de ouvir. – Você é uma mulher famosa agora. Bem-sucedida. Todos os quatro cantos do mundo te conhecem. Você precisa seguir em frente, beija-flor... Julie. Eu....

- O que você quer dizer com isso, Daniel?

Ele ficou em silêncio.

De repente, tudo estava muito quieto, denso.

O ar estava denso ao redor deles dois, como uma fumaça, só que não era opaca, era transparente.

Eles dois estavam perto demais, como não ficavam há anos, cheios daquela complementação que sempre tiveram.

Um, dois, três estalos aconteceram.

Eles estavam de volta, e de repente não estavam mais, porque estavam se beijando.

Julie não queria pensar na dinâmica de idades deles dois, Daniel era não-lembrava-mais quantos anos mais velho, mas estava morto, congelado nos seus dezoito anos. Mas viveu no pós-morte.

Já ela, tinha vinte e sete apenas. Ah, ele ainda era mais velho no final.

Então passou a se concentrar nos lábios unidos. Apesar de estar morto, Daniel tinha lábios bem mornos, tranquilos. Macios.

Era como se as estrelas estivessem sendo desenhadas em cada cicatriz em sua alma, suturando os sangramentos abertos com a separação.

A boca dele desenhava na sua boca um padrão diferente de qualquer outro que ela já havia experimentado, promessas de outras vidas que não se cumpriram nessa, promessas que não deviam nunca ter sido não-cumpridas, promessas que ficariam para um futuro, uma outra vida.

Uma outra dimensão.

Os lábios dele acompanharam as mãos – também mornas – que passeavam pelo cabelo da cantora, pelos ombros, pelos braços, pelas mãos. Então caíram em sua cintura,

Daniel tentava tocar em toda parte, tocar em tudo o que ele se privou quando se conheceram, porque era jovem demais para saber que ela era traçada em sua direção, uma linha se cruzando com a outra no infinito.

Julie fazia o mesmo, tocando seu pescoço – que tinha pulsação, assim como seu pulso– seus cachos loiro-escuros macios, suas mãos, suas mãos, suas mãos. Julie o conhecia tanto que tudo lhe era familiar, apesar de nunca terem se encontrado dessa forma, não nessa dimensão, nessa vida, nesse instante, no passado....

- Eu amo você. – Ela sussurrou no ouvido de Daniel enquanto ele escovava os lábios em seu ombro, um não sabia em que ponto o outro terminava naquele abraço-beijo cheio de saudade e angústia, ela precisava falar, porque nunca havia dito e não sabia quando poderia repetir. Então repetiu no agora. – Eu amo você.

Em resposta, o rapaz murmurou algo contra a pele dela, algo que ela ouviu como:

- Eu sempre te amei.

Julie não pediria para confirmar, porque ela sabia o suficiente. Ela sabia que ele sentia o mesmo.

E ela sabia outras coisas também, que preferia esquecer.

Os dois lábio-rios se encontraram, desaguando todo o mar de emoções que os aterrorizavam, repeliam e aproximavam com anos se passando, para então virar uma cachoeira de lembranças que brilhava no fundo da mente dos dois.

Línguas molhadas acenderam faíscas de fogo que aqueceu os corações dos dois amantes desafortunados enquanto eles deixavam rastros de pistas um na pele do outro, a camisa vermelha de Daniel sendo desabotoada em um, dois, três botões.

- Julie. – Ele quebrou a misticidade do momento com um sussurro arrastado e pupilas dilatadas que não condiziam com o que queria transparecer: sua voz chamando pelo nome da cantora parecia um pedido, secreto, velado.

Então ela, por ter voltado a ser jovem, sabia que o que ele estava querendo era ela, mas alguma parte de si iniciou aquele chamado porque era necessário que parassem.

Voltou a beijar a boca do amado, procurando o sofá de couro chique que estava ali.

Em três tempos estavam ambos engalfinhados, agora além das almas, os braços e pernas enlaçados com uma confusão de um fio que há anos e anos na humanidade falavam que podia se emaranhar e nunca partir: eles estavam emaranhados, sim, mas nunca iriam se partir.

E Julie sabia disso, e talvez essa fosse a parte mais difícil de saber das coisas, é que ela nunca poderia fingir que não sabia, porque ela sabia.

E Daniel, o jovem mais velho, também.

Continuaram se beijando, quatro, cinco, seis botões da camisa vermelha abertos, o zíper da parte de trás do vestido dela caído, mais pele que eles podiam usar para trocar calor.

A mão dele estava na base da coluna de Julie, e as mãos dela estavam na pele de seus ombros, até que não estavam mais.

- É melhor não. – Daniel interrompeu de novo, com mais vontade, mais seriedade, nem um pouco menos de desejo.

Em três tempos, a blusa dele estava de volta no lugar como se nunca tivesse sido aberta uma fenda pálida de pele entre aquele cetim vermelho.

Assim como o zíper do vestido, para cima, como se nunca tivesse sido aberto para abrigar digitais de um morno-gélido.

Julie o assistiu em silêncio pegando o paletó escuro, vestindo e caminhando sem olhar para trás.

Sem olhar para ela.

Então, uma cabeça por cima do ombro, os cachos balançando.

- Você tem que seguir em frente, Julie. Por favor. Depois eu te encontro, mas por favor...

E por conhecer Daniel tão bem, ela sabia que ele falava sério.

Então ele atravessou a parede e foi embora.

E Julie sabia que ele estava pedindo de verdade.

Por isso, ela seguiu em frente. Porque ela sabia.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.