O céu da Estônia estava cinza como sempre. Enquanto meus cabelos rosa-desbotados estavam bagunçados ao vento, eu corria com toda a sutileza que podia. Eu perseguia uma borboleta. Aquele inseto me fascinava com as suas cores delicadas e bonitas, destacando na paisagem sombria que me cercava. Estava perto de chover, o que era engraçado, já que chuvas quase não aconteciam no meu país. O céu começou a ser riscado por trovões, e por um instante eu parei para olhá-los, como se fossem desenhos feitos de crianças levadas usando gizes de cera esperando uma bronca do pai. E por um segundo me esqueci do inseto mais belo que o Criador já pôde ter feito.

A pequena borboleta tinha fugido de mim durante toda a minha tarde. Se eu tivesse me empenhado mais, com certeza eu teria pegado, mas eu gostava de ver suas asas batendo num ritmo lépido e fugindo de mim. Eu me divertia em querer pegá-la com os dedos e vê-la escorregar por entre as minhas mãos brancas. Ela entrou em minha casa usando uma janela aberta, esperando fugir da chuva que chegava, e eu, amavelmente a deixei entrar. Finalmente, depois de um pouco de insistência, a borboletinha pousa em meu dedo comprido, me deixando feliz. Por um segundo, meus olhos arderam ao olhar para o pequeno inseto azul, e tudo ao meu redor ficava embaçado e indistinguível. Eu não entendia o que tinha acontecido. Parecia um redemoinho particular, dando voltas e mais voltas em mim mesma.

Num minuto, a minha sala estava vazia, e a decoração estava um tanto diferente; no outro, crianças, adultos e parentes me vigiavam com o olhar. Todos pareciam ter viajado no tempo. Todos estavam um pouco mais jovens. Faces que há muito tempo eu não via estavam lá na minha sala, me olhando como se eu fosse a última pessoa da terra. Eu fiquei muito tempo olhando cara rosto com uma cara de interrogação, até que eu o vi. Eu vi o amor da minha vida. Ele me olhava curioso, querendo saber o motivo da minha aparição. Oras, era a minha casa! Será que eu não podia estar em minha própria casa?

- Oi Bill. – disse eu, com a voz trêmula de emoção. Ele parecia mais jovem... Parecia ter 10 anos a menos... E estava com os cabelos curtos e o rostinho de criança...

- Oi. - Ele me respondia secamente, como se mal me conhecesse.

- Que fazes aqui? – perguntei. Que eu me lembre, não o tinha convidado para evento nenhum... Ele me olhou com a cara mais de espanto possível:

- Sua avó. Ela faleceu. Na verdade estou surpreso por encontrá-la em estado de felicidade... Eu vim aqui dar os pêsames. “Minha avó morreu? Como assim?” – pensei assustada. Eu senti uma pontada no peito.

- O que aconteceu? – eu senti lágrimas de fogo escorrendo pela minha face, enquanto meus joelhos fraquejavam. - Parada cardíaca. – respondeu ele, friamente enquanto punha as mãos nos bolsos. Eu ajoelhei no chão... Senti dores terríveis no peito enquanto eu ouvia cada palavra dita com pesar.

- Onde ela está sendo velada?

- No seu jardim. – disse ele me pegando pela mão e me levando até lá. No meu jardim? – pensei. Que estranho!

A partir daí ele me puxou até o jardim, onde tinha uma imensidão de pessoas chorando, vestidas de preto:

- Olha ela ali... – disse ele apontando para o lugar mais cheio. Eu fui até lá a passos lentos. Ninguém me acompanhava, eu ia só. Miraculosamente, todos abriam caminho para mim, e finalmente eu veria a minha avó. Até que a borboleta azul passou perto de mim de novo. Eu sentia os meus olhos arderem, e tudo ficar embaçado de novo... Era como se eu estivesse viajando no tempo. Tudo ficou nítido outra vez...Mas eu não estava mais no jardim. Eu só via meu amor dar as costas pra mim mais uma vez...

Novamente eu estava num lugar diferente. Meus cabelos já não tinham mais a cor rosa que eu exibia na infância, e sim um louro quase branco que me deixara mais bonita. Eu estava numa rua cheia de carros estacionados vestida com um vestido branco e chiquérrimo, coisa de festa e de alta costura. Logo percebi tratar-se de uma festa. Eu sorri. Gosto de festas. Eu andei suavemente pelo até o salão, como se eu estivesse flutuando e sequer precisei entregar o convite para entrar, já que o porteiro abriu a porta com toda a gentileza do mundo, além de um grande sorriso:

- Por aqui senhorita – disse ele. Eu nada respondi, apenas passei pela porta, mas não antes de lhe dar um sorriso de agradecimento. As luzes me cegavam. Estava tudo bem iluminado num salão enorme e cheio de convidados. De repente, um homem lindíssimo me cercou, dizendo que eu o conhecia:

- Oi Kerllu! Como vai?

- Er... Oi – eu o cumprimentei para não ser grossa. Mas para mim, eu nunca tinha visto esse cara na minha vida.

- Estive pensando - começou ele – eu gostaria que você dançasse comigo esta noite.

- Cla... Claro – gaguejei – adoraria. Eu não o conhecia. Ou achava que não:

- Vespertine – disse alguém na mesa ao lado – como vai?

‘Então seu nome é Vespertine? Nããão isso deve ser apelido.’

- Vou bem. Agora se me dá licença, vou dançar com a moça mais linda desta festa.

Eu fiquei vermelha como uma maçã. Depois de olhar muito para os olhos dele, consegui me lembrar de quem ele era. Só que ele estava um pouco mais novo e não tinha os cabelos arrepiados como eu me lembrava. Vespertine dançava muito bem. Nós parecíamos flutuar pelo salão. Quando de repente alguém anunciou a entrada dos noivos. Só agora naquela hora que eu descobri que aquilo era um casamento. Nós sorrimos e paramos da dançar para aplaudir os noivos. Eu sequer sabia quem estava se casando. Foi quando eu vi um cabelo arrepiado ao longe, lembrando uma juba:

- Desejem felicidades aos noivos – dizia alguém no microfone – Bill e Ina!

Meu coração parou. Minhas mãos ficaram geladas e eu fiquei pálida. Vespertine percebeu que tinha algo errado e me abraçou:

- Está tudo bem?

Não, não estava nada bem. Eu queria gritar. Eu queria um canto para chorar. Queria ficar sozinha:

- Querido... Não estou me sentido bem. Vou tomar um pouco de ar puro.

- Ah sim, claro – respondeu ele tirando seus braços que estava sob os meus.

Andei sem rumo até chegar numa parte do salão que estava deserta e cheia de ar puro porque estava perto de uma janela. Eu debrucei sobre ela a fim de olhar a lua. Lutei contra mim mesma, mas meus sentimentos foram mais fortes e como conseqüência, lágrimas escorriam. Eu tentava parar, mas não conseguia. Até que depois de muito tentar, elas cessaram. Eu olhava para a lua (que estava cheia e linda por sinal) e cantei pra ela. Eu sabia o que era direito. Eram apenas palavras soltas:

All… I… want All… I… want… was right here… Love… don\'t live… here… anymore…

E na minha frente apareceu a borboleta azul. De novo. Meus olhos arderam e tudo ficou embaçado. Aquela borboleta estava me passando raiva. Eu estava me sufocando. Ainda não entendia o motivo da borboleta sempre me perseguindo, mas no fundo, me sentia confortada. Ver pessoas que eu não me lembrava mais, ver o enterro da minha avó novamente (mesmo que pareça esquisito) foi de certa forma boa para mim. A saudade me consumia, e vendo esses rostos, mesmo de uma maneira triste me fez cavoucar em meu peito lembranças que eu, Kerli nunca tinha tido. No fim de tudo, percebi o porquê de estar sonhando com a borboleta.

Eu estava repensando em toda a minha vida. Em tudo o que eu deixei de fazer. Em todos os que eu magoei. Minha avó só queria o meu bem. Eu insistia num namoro que não daria certo, insistia num amor forçado, que no fundo não sobreviveria como uma flor no sol quente de verão. Os meus amigos. Há quanto tempo eu não os via! Eles pareciam mais jovens, eu sei, mas eu não tinha mais parado pra prestar atenção nos rostos de cada um deles desde que passei a ficar horas ensaiando e me drogando sem parar, tentando escrever músicas e sonhando com uma carreira promissora.

E o maior de todos os motivos: Bill. Bill era o maior dos motivos. Eu achava não conseguia compor nada que fosse digno que ele ouvisse, ou que ele visse. Acabei adoecendo. Adoecendo de amor. Me drogava até não ter senso nenhum da realidade. Aquela borboleta nunca existiu. Era tudo fruto da minha imaginação. Tudo fruto das drogas. Eu me sentia mal, muito mal por ter amado e não ter sido correspondida.

*-*-*-*

Kerli respirou fundo. O seu terapeuta que até agora a tinha ouvido com toda atenção sem ter dado um pio, resolveu abrir a boca:

- Kõiv, querida. Você acha que isso é amor? Chega a ser doentio. Você já foi para o hospital uma vez, por conta das drogas. Seus pais, familiares estão muito descontentes com você. Não quer botar um ponto final nisso?

A loura não respondeu. Apenas pegou sua bolsa e saiu do consultório, sem nem ao menos se despedir. Aquela conversa não tinha ido longe, mas ver seus erros contados por si mesma doía. Mesmo com tudo ruim no seu dia, Kerli foi até a sua casa sorrindo. Ela tinha colocado uma meta em sua vida: iria mostrar o porquê se ter nascido: Pra cantar.

A loira passou no mercado e comprou um pequeno caderno, onde seria agora a sua pauta de composições. Seu cabelo que outrora era cheio de vida e macio; estava todo desgrenhado e mal cuidado. Já que tinha um salão perto de sua casa, logo ela tratou de marcar um horário no mesmo, além de providenciar uma manicura de primeira. Depois de ficar linda – parecia um milagre o salão estar vazio e poder atendê-la sem marcar horário – Kerli foi até a sua casa, sentou-se na beirada da sua cama e lá ficou refletindo sobre tudo o que ela tinha passado. Segundos depois, ela imaginou uma grande borracha sendo passada por cima da sua infelicidade, e do seu passado. Ela estava com o lápis e ele dali em diante seria usado para escrever suas vitórias e suas lutas, sempre de cabeça erguida.

O primeiro passo seria mudar da Estônia. Ali as suas lembranças estariam a magoando profundamente. Bill ainda viveria a sua vida com a sua esposa, e iria lhe doer andar pelas ruas da Terra do Céu Cinzento e ver o seu rosto mesmo que sem querer. Não pensou duas vezes antes de fazer suas malas. Enfiou suas roupas com rapidez, e tratou de ver o saldo da sua conta on-line, para ter certeza que estaria bem para onde quer que fosse. Qual seria o destino? A Cidade do Pecado. Não sabia o porquê ao certo, mas sabia que estaria bem lá. Sabia que longe de tudo e de todos, talvez a sua dor fosse amenizada com o tempo. ‘Um telefonema rápido para cada amigo’ – pensou, enquanto ouvia vozes estupefatas que não acreditavam que a amiga e a parente iria embora sem nem se despedir corretamente – o que para eles seria algo como ‘encher a cara, e fazer uma festa de arromba’. Mas ela não queria olhar pra trás e nem mudar de idéia. Kerli fechou a sua mala e foi em busca do seu sonho. Foi embora para nunca mais voltar. Uma última olhada no seu quarto foi dada. E sorrindo, saiu pela porta. Atravessou a rua. Pegou um táxi. Pediu para que o motorista a levasse para o aeroporto. E não foi mais vista. Pelo menos até semana passada. Mas isso é estória pra outra fanfic.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.