CAPÍTULO 7

Já se passaram dois meses desde que Roberto voltou da Argentina e conheceu Motoko no Burajiru Gyoen. Neste meio tempo, a relação de amizade entre os dois se estreitou, ao ponto de se tornarem excelentes amigos. Enquanto Motoko explicava os segredos do Japão e do kendo, Roberto se esforçava para ensinar português para a sua amiga, além de contar as curiosidades e o estilo de vida do Brasil. Também neste intervalo de tempo, a Nishi Gyoen se tornou atração turística de Vale Verde, com pessoas de todos os cantos do Estado e até do País visitando e comprando os produtos oferecidos pela loja; a casa de chá da Haruka, que ela abriu ao lado da loja e que foi batizada de Hinata, também estava fazendo o maior sucesso entre os moradores da cidade. Setsuna e Tsuruko inauguraram a academia de kendo da loja, cujo número de alunos crescia a cada semana; e Kitsune, satisfeitíssima com o trabalho no restaurante como garçonete, comprou uma moto de 150 cilindradas para se locomover na cidade e na região.

Roberto, por sua vez, voltou a trabalhar na Sidernibra, onde recebeu um aumento de salário e folgas todos os sábados, além de vários elogios do Eng.º Henrique pelos tarefas realizadas no escritório. Também voltou a freqüentar a faculdade, onde voltou a aturar as piadinhas sem graça de Pierre e a agüentar as monótonas aulas do curso; apesar disso, ele era considerado o melhor aluno da classe e o único que tinha bolsa integral, conseguida após uma prova que ele fez depois de passar no vestibular.

Manhã de um sábado de março. O sol brilhava no céu de Vale Verde, depois de quatro dias de muita chuva. Em uma das ruas da zona urbana, Roberto guiava de forma tranqüila o Alfa-Romeo da sua família; ele estava indo para Sorocaba, aonde iria comprar algumas coisas e dar um passeio para relaxar depois de uma semana exaustiva. Mas, ele não iria sozinho desta vez; convidou a Motoko no dia anterior para que o acompanhasse, e ele aceitou o convite, pois estava curiosa em conhecer um pouco mais da maior cidade da região.

Ao chegar na Nishi Gyoen, Roberto estacionou o carro e entrou na loja, que já estava funcionando. Encontrou Motoko na academia de kendo, onde estava assistindo as aulas ministradas pela Setsuna e pela Tsuruko; a garota vestia calça jeans, camiseta azul, tênis All Star preto e estava com o cabelo amarrado ao estilo rabo-de-cavalo.

- Bom dia, Motoko! – Roberto a beijou no rosto – Tudo bem com você?

- Oi, Roberto! Tudo bem. E então, vamos?

- Claro, mas antes posso dar uma palavrinha com a sua irmã?

- Ah, sim. Só um instante; o intervalo será em cinco minutos.

Motoko e Roberto assistiram à exibição de golpes de kendo feitas pelos alunos da academia, enquanto esperavam o intervalo. Tsuruko, ao ver o amigo da sua irmã, pediu licença para Setsuna e se dirigiu ao casal de amigos.

- Ora, bom dia, Roberto! – Tsuruko deu um largo sorriso para o jovem.

- Bom dia, senhora Tsuruko. Vim aqui pegar a sua irmã para dar um passeio hoje. Pode ficar tranqüila que comigo ela vai ficar bem.

- Que bom. É a primeira vez que Motoko vai sair da cidade, desde que nós chegamos do Japão.

- Pode deixar... Vou mostrar a ela como é a verdadeira civilização ocidental. Garanto que ela vai gostar.

- Assim espero... – Tsuruko se voltou para Motoko – Minha irmã, tome cuidado. E se divirta, tudo bem?

- Tudo bem. Vou voltar de tarde, lá pelas 17:00. Até mais, irmã! – E Motoko acompanhou Roberto até o estacionamento, onde entrou no carro dele e desceu a avenida principal.

Enquanto dirigia rumo ao portal da cidade para alcançar a estrada de acesso, Roberto colocou um CD no aparelho de som do carro; em poucos minutos, a música Well All Right, do grupo britânico Blind Faith, cujo um dos integrantes era ninguém menos que Eric Clapton, começou a ecoar dentro do veículo.

- E aí? Curte rock, Motoko? – perguntou Roberto, com os olhos na avenida.

- Não, quase não ouço música ocidental... Na verdade curto somente o chamado J-pop e J-rock.

- Ah, a música pop japonesa... Tem umas que são realmente muito boas. Toca direto aqui em Vale Verde. Motoko, abra o porta-luvas e tire um CD com capa vermelha. É de uma banda que com certeza você adora.

Motoko pegou o CD que estava no porta-luvas do veículo e deu para Roberto, que trocou o disco no aparelho de som. Logo, a música Ex-Dream, do grupo japonês X-Japan, começou a explodir nas caixas de som do carro.

- Oh, adoro este som! – Motoko se entusiasmou com a música – Ouvia direto quando morava no Japão. Esta banda é demais!

- Tem razão. Ganhei este CD de um amigo que mora aqui; ele comprou lá em Nagoya, onde passou as férias. Realmente a banda é muito boa; pena que ela já não existe mais... E olha que os jovens daqui curtem J-rock e J-pop...

Quando a música terminou, Roberto saiu da estrada de acesso à Vale Verde e entrou na rodovia Raposo Tavares, que já apresentava tráfego intenso de caminhões nos dois sentidos. Depois de dez minutos, avistaram a cidade de Sorocaba e a sua enorme mancha urbana contendo mais de 600 mil habitantes. Motoko olhava a cidade através da janela do automóvel e estava já um pouco confusa: de longe, ela não parecia em nada com as cidades japonesas que conheceu lá; ao contrário de Tóquio, Kyoto ou mesmo Hinata, Sorocaba era grande em área, bem espalhada, não tinha muitos edifícios e sua zona urbana parecia se perder no horizonte, que não quase tinha nenhum morro à sua volta, com exceção do majestoso Morro Araçoiaba localizado a noroeste do município.

- Ei, Motoko... Bem-vindo à cidade de Sorocaba! – disse Roberto, enquanto apontava uma das suas mãos para a cidade – E então, o que achou?

- Bom... Interessante... – Motoko estava ainda mais confusa, pois observava os outdoors na estrada, sem entender o que estava escrito neles – Quantos habitantes tem esta cidade, Roberto?

- Tem mais de 600 mil... É uma das maiores cidades do Estado, e uma das mais importantes. E ela é maravilhosa, apesar de ser quente... – antes de continuar a sua fala, Roberto tirou o carro da estrada e acessou o trevo de acesso à Avenida Armando Pannunzio, uma das principais avenidas da cidade. Com um sorriso, continuou a falar – Agora, você verá o que é o Ocidente, Motoko. Preparada?

Motoko balançou a cabeça, afirmando a pergunta, enquanto olhava a avenida, Era diferente de tudo que vira no Japão: relativamente larga, movimentada, um pouco suja, arborizada no canteiro central, com algumas placas em português e muitos carros de tecnologia européia percorrendo o asfalto recém-recuperado. Uma das coisas que chamou a atenção da jovem samurai foi um senhor mal-vestido e sujo, com um cachorro ao seu lado empurrando um carrinho improvisado com caixas de papelão e outros materiais recicláveis.

- Roberto, o que é isto? – perguntou, apontando para o senhor com o carrinho.

- Este daí é um carroceiro. Ele vive da coleta de matérias recicláveis para vender e ter o que comer para ele e sua família de noite. Infelizmente, Motoko, nosso país é desigual; temos muitos miseráveis, principalmente nas grandes cidades. Se sair um pouco do centro e ir para os bairros periféricos, verá famílias extremamente pobres, que não tem nem o que comer e vivemos em casas improvisadas de madeira. A coisa só não está pior porque a economia está crescendo depois de anos de recessão e inflação...

- Ah, tá... Já vi alguns mendigos em Tóquio também... Nosso país também passou por uma estagnação, mas também esta se recuperando.

- Hum... Mas, a verdade é esta: a miséria está em todo lugar, seja no Brasil, seja no Japão – concordou Roberto, enquanto entrava na avenida Afonso Vergueiro.

O trânsito na avenida estava extremamente carregado, ao ponto de formar grandes filas nos semáforos. Motoko continuava a estranhar as ruas de Sorocaba, entupidas de carros, motos e muitos ônibus, além das inúmeras placas de publicidade em português. De repente, um motoboy apareceu de surpresa na frente do carro de Roberto, que teve que frear para evitar o choque; após o susto, disse um palavrão em português.

- O que você disse, Roberto? – perguntou Motoko, curiosa.

- Não, não disse nada. Só disse que estou um pouco com sono – mentiu, pois sabia que não devia ensinar palavrões em português para a jovem.

- Hum... Esta forma de dizer que está com sono é um tanto estranha, não?

Roberto demorou para achar uma vaga para estacionar o seu carro no centro, pois todas as vagas de Zona Azul estavam lotadas; no final das contas, acabou deixando o Alfa-Romeo em um estacionamento perto do Largo do Canhão, uma das praças centrais da cidade. Ao sair do estacionamento, o casal de amigos atravessou a rua e entrou na praça, onde o jovem ocidental gentilmente mostrou e explicou os dois canhões expostos no local para a sua amiga samurai.

- Este tipo de canhão foi muito utilizado por exércitos ocidentais nos séculos passados. Aqui, neste caso, eles foram usados em uma revolta que ocorreu aqui no século retrasado; note que aquela ponte ali embaixo sempre foi a entrada de Sorocaba desde o seu surgimento, e estes canhões foram apontados exatamente para lá no caso das tropas inimigas invadirem o vilarejo.

Motoko prestava atenção na explicação de Roberto, mas estava ficando cada vez mais confusa com o choque cultural que estava sofrendo. Apesar de ser uma descendente de samurais e conhecedora profunda da arte da guerra japonesa medieval, nunca vira um canhão ao estilo ocidental de perto. Além disso, via as pessoas apressadas nas calçadas e se sentia como um alienígena, pois ela era totalmente diferente da miscigenada população brasileira.

Os dois amigos continuaram a caminhada, subindo as ruas XV de Novembro e São Bento até alcançarem a praça Cel. Fernando Prestes, marco zero de Sorocaba. Foi lá que Motoko viu a imponência da Catedral Metropolitana da cidade; ela já vira uma igreja católica em Vale Verde, mas desta vez estava maravilhada com a beleza da arquitetura da catedral, ao estilo ocidental do começo do século XX. Após a pequena aula de Roberto sobre a igreja, desceram uma rua até o Mercado Municipal da cidade, que também tinha movimento intenso.

Quando chegaram no relógio do Mercado, construído ao estilo japonês em 1954 como uma homenagem à colônia nipônica de Sorocaba, a garota-kendô reconheceu um casal que atravessava a rua de mãos dadas e que se dirigia para o Mercado.

- Motoko? Você aqui? – disse a moça, uma oriental alta de cabelos longos e negros bem lisos, olhos negros puxados e franja na testa, acompanhada por um rapaz de origem nipônica alto, cabelos negros curtos, portando um boné com a aba voltada para trás e com um sorriso largo no rosto.

- Oi, Arashi! – Motoko sorriu para a moça. Ela era Arashi Kishu, filha do sacerdote do santuário xintoísta de Vale Verde e uma das funcionárias da loja da sua irmã – O que faz aqui? Passeando com o seu namorado?

- Ah, claro. Hoje é meu dia de folga e tenho que aproveitar, né? – Arashi estava acompanhada pelo seu namorado, Sorata Arisugawa, um jovem técnico da Sidernibra que morava com o monge budista da seita Shingon, cujo único templo das Américas ficava em Vale Verde - E você? O que faz com este ocidental aqui em Sorocaba?

- Hum, este é meu amigo, Roberto. Ele está mostrando a cidade para mim – Motoko se virou para o seu amigo ocidental – Estes são meus amigos: Arashi Kishu e Sorata Arisugawa. Eles são lá de Vale Verde mesmo.

- Prazer. Me chamo Roberto José Antunes – e cumprimentou as mãos do casal – Vocês são de lá? Estranho... Nunca vi vocês lá...

- Ah, eu já te vi lá na fábrica – disse Sorata, com o seu característico bom humor – Você é aquele sangue bom que está bem na foto na Logística, né? Cara, eu trabalho no setor de Laminação, uma seção meia-boca, mas que dá para levar.

- Eh, sou eu mesmo... – Roberto virou-se para Arashi – Ei, acabei de me lembrar! Você trabalha lá na Nishi Gyoen, né? Vi você uma vez, no caixa...

- Ah, lembrei de você agora... Você vai lá na loja todo dia para ver a Motoko... – disse Arashi, uma garota de 19 anos que quase nunca sorri – E então, vão para o Mercado Municipal, Roberto?

- Sim, eu ia mostrar o Mercado Municipal para ela. Como disse, estou apresentando Sorocaba para a minha amiga aqui.

- Hum, legal. Roberto, você fala japonês muito bem, hein? Quem diria que viria um ocidental que falasse o nosso idioma de forma tão perfeita?

- Obrigado, Arashi... E pensar que todos falam a mesma coisa sobre o meu japonês... Se quiserem me acompanhar até o Mercado, tudo bem. Assim, podemos nos conhecer melhor. O que acham?

Arashi e Sorata aceitaram o convite do ocidental e os quatro amigos se dirigiram ao Mercado Municipal de Sorocaba, localizado no outro lado da rua. No papel de cicerone, Roberto explicou para os três japoneses todos os segredos e a história do Mercado, inaugurado em 1938 e ponto de encontro de vários sorocabanos. Após comerem um bom pastel em uma das lanchonetes do prédio, caminharam pela rua Álvaro Soares, enquanto conversavam sobre os mais diversos assuntos. No calçadão da rua Barão do Rio Branco, tiveram um pouco de dificuldades para caminhar devido ao grande número de pedestres; ao ver o movimento das pessoas, Motoko se lembrou imediatamente do centro de Tóquio, onde a multidão se espremia para andar nas pequenas calçadas lá existentes.

Depois de mais de uma hora passeando pelo centro de Sorocaba, Roberto e seus amigos chegaram ao Largo do Canhão. O jovem ocidental, com uma lata de refrigerante na mão, perguntou para Sorata.

- E então, estão de carro ou vieram de ônibus? Meu carro está naquele estacionamento ali embaixo – e apontou a sua mão para um grande estabelecimento do outro lado da rua.

- Bem, Roberto... Estou com a minha moto, que recebi na semana passada. Ela também está naquele estacionamento, cara! É uma bela máquina, eu a adoro!

- Hum, Motoko, porque não pede para o seu amigo para acompanhar a gente até o shopping? – disse Arashi – Nós vamos comprar umas coisas lá e ainda vamos visitar um amigo nosso que tem uma loja lá.

- Qual shopping, Arashi? – perguntou Roberto, se intrometendo na conversa entre as duas amigas.

- Aquele que fica em um bairro daqui. Acho que o nome do lugar é Campolim...

- Nossa, que coincidência! A gente está indo para lá. Quer acompanhar a gente? De lá, a gente volta para Vale Verde.

- Por mim, tudo bem, cara – Sorata sorria enquanto abraçava Arashi – Sempre levo o meu docinho para passear lá.

Assim, a turma entrou no estacionamento. Sorata mostrou para Roberto sua moto: uma Honda Hornet esportiva novinha, pintada de vermelho e com um baú na rabeta do veículo. Roberto, por sua vez, mostrou o raro Alfa-Romeo para o seu novo amigo japonês, que ficou impressionado com a conservação do mesmo. Após pagar a estadia no estacionamento, Roberto e Motoko entraram no carro, enquanto Sorata e Arashi colocaram seus capacetes e subiram na moto. Em seguida, os dois veículos saíram do estabelecimento e seguiram para o shopping no nobre bairro o Campolim, zona sul da cidade de Sorocaba, uma das maiores cidades do Estado de São Paulo.