Bubbly

Primeira vez


Após soltar um grande bocejo, Keith se levantou do sofá e iniciou o alongamento diário para depois ir ao café. Adormecera no móvel mais uma vez, não que fosse uma surpresa, pois adquiriu o costume desde quando se mudou para o apartamento. O quarto onde supostamente deveria dormir permanecia intacto a tempos. Em sua defesa, a sala estava mais próxima da entrada, também era simples e confortável, havendo apenas um sofá, uma televisão e uma mesinha.

Em seguida, pegou as chaves e deixou o apartamento vazio. Sua rotina consistia em acordar, tomar sua cafeína diária, correr, ir para o trabalho e dormir.

Keith fez o trajeto tranquilamente, apreciando o silêncio matinal. O Café Altea era apenas a uma quadra de onde morava, era aconchegante e ao mesmo tempo sofisticado, de cor azul-turquesa. Na entrada, o nome foi escrito em letra cursiva e elegante. Quando entrou no local, o pequeno sino bateu.

— Oi, Keith. — Cumprimentou Pidge, julgando pela abordagem, parecia estar de bom humor. Provavelmente, já tomara seu café preferido.

Ele assentiu com a cabeça e foi comprar a bebida. Sempre escolhia um café preto e forte, pensar em beber algo como ‘’mocha’’ o fazia enrugar o nariz em desaprovação. Posteriormente, se sentou na cadeira branca, perto da amiga, e bebericou o líquido preto.

— Você teve sorte de chegar agora, Coran estava aqui e me fez ouvir suas histórias de discoteca. — Reclamou, massageando a cabeça. — Ah, Hunk disse para te avisar que ele recebeu dois projetos novos.

— Outros?! — Exclamou, quase engasgando a bebida.

— Bom, sabe que ele é requisitado.

Keith era parceiro de um gênio da engenharia mecânica, simplificando, quem apelidavam de Hunk. Já havia perguntado o nome dele alguma vez, recebendo como resposta ‘’Gordon Ramsay’’, porém duvidava que era o real.

— Tenho que ir. — Disse após terminar o café.

— Até mais.

Existia um parque próximo dali, no qual ele aproveitava o tempo restante antes de ir se encontrar com Hunk. O logradouro era agradável, havia carvalhos-vermelho e outras árvores de ambiente temperado decorando-o, além de sempre haver um vento refrescante batendo no rosto. Considerava um de seus lugares favoritos porque mesmo sendo bonito, ainda era silencioso.

Depois de discutir longas horas e executar os projetos, Keith voltou para casa e desabou-se no sofá. Ficou minutos olhando para o teto, esperando que alguma coisa estranha acontecesse ou apenas ele estivesse cansado, tanto por dentro e por fora. Suspirou. Não queria reclamar de sua vida, ela era boa, nem da rotina. Havia estabilidade e tinha um lugar para voltar, que lhe dava segurança. Formou amizades com Pidge e Hunk, não eram tão profundas, mas não se sentia pressionado ou desconfortável. No entanto, sinceramente, ele parece estar preso num loop que nunca terminava.

Era inevitável que ficasse estressado com a mesmice. A única que coisa que salvava eram suas viagens com Shiro, seu irmão. Pelo menos duas vezes ao ano, decidiam escalar montanhas ou praticar um esporte novo. Contudo, lógico, que não era sempre. Talvez, a rotina de lobo solitário a qual fora acostumado estava o enjoando cada vez mais.

Levantou-se e foi para a sacada. Tocou nas grades de ferro e suspirou, olhando para cima. A bruma da noite conquistara o céu completamente, pontilhando somente com alguns pontos brilhantes. Caso fosse uma cidade grande, estaria vendo muitas luzes e ainda ouvindo o barulho daqueles que ainda estavam acordados. Essa diferença era ótima, porque o lugar que estava era quieto. Impossível que aguentaria um minuto em Nova Iorque.

Enquanto relaxava, foi surpreendido por uma voz, que vinha de um lugar próximo. A pessoa cantava uma música familiar, Keith já escutara antes, talvez em algum rádio há muito tempo atrás. No entanto, não era isso que chamava atenção, mas sim o seu tom harmonioso.

A voz era doce e suave, como fizesse quem a escutasse nunca mais querer parar de escutar. Ele respirou fundo, deixando toda tensão ir embora e continuou a apreciar a melodia, que complementava com o timbre jovial, lembrando um verão ensolarado. À medida que a vibração dos sons aumentava, ele percebia que estava próxima. Seria um novo vizinho? Desde que chegara na cidade, ninguém ocupara o apartamento ao lado. Quem quer que fosse, possuía uma voz muito boa. Keith fechou os olhos e esperou a pessoa acabar.

***

Keith bebia seu café como fazia em dia qualquer. Pidge não estava presente porque fora à faculdade. Sim, ele estava sendo sincero. Aquele ‘’minion’’ de catorzes anos era um gênio e frequentava uma faculdade. Não que isso fosse o problema, porém as vezes ele não compreendia nada do que ela falava.

Estava absorto em seus pensamentos até que a porta ruiu desagradavelmente. Uma pessoa de pele escura e cabelo marrom curto, o qual vestia uma camisa azul e calça caqui, entrou no café de forma que Keith considerou espalhafatosa. Andou pelo local de um jeito que parecia estar em casa e gritou o nome de um dos funcionários.

— Coran?! Coran?! Você está aí?! Poxa...

Keith percebendo que o estranho iria perguntar-lhe em que lugar o funcionário estava, virou a cabeça e olhou para a janela. Julgando pela quietude, o cliente havia desistido. Segundos se passaram e Coran apareceu, demonstrando sua excentricidade que dificilmente agradaria a todos.

— Lance! — Ele exclamou e foi abraçá-lo. — Faz muito tempo!

A partir desse instante, Keith perdeu a paciência e se dirigiu ao trabalho. Lá, encaixou cada peça e fez as alterações necessárias para que servisse no esqueleto da moto, essa era uma das melhores partes, assim podia exercitar sua criatividade, usando tanto cores e formas, arranjando modos de se complementarem. Isso serviu como uma espécie de relaxamento, fazendo-o esquecer de todas as irritações, inclusive daquele cara.

No dia seguinte, a dona do estabelecimento apareceu. Ela havia uma beleza incomparável, que dificilmente acreditavam que ela era real. Por mais que as madeixas fossem tingidas, o azul dos seus olhos era verdadeiro. Keith iria cumprimentá-la, mas notou que ela acompanhava alguém mais alto.

Permaneceria em plena ignorância de quem era o rapaz caso este não houvesse aberto a boca. A mesma voz irritante e aguda de ontem. Keith respirou fundo. Sem chance que entraria numa briga, continuaria a beber o café calmamente.

— Allura, veja, veja! Coran consegue desenhar um tubarão no café! – O jovem abriu um grande sorriso e mostrou a xícara para amiga.

— Incrível! — Ela elogiou e bateu as palmas levemente.

— Allura, precisam de sua ajuda. — Coran informou.

— Ah, sim, já vou!

— Então... Me vê um frappuccino de caramelo, linda? — O cliente piscou para atendente, que o ignorou e preparou o pedido.

Keith estremeceu. Era um daqueles viciados em açúcar, talvez a grande quantidade dela o havia deixado idiota. Bem, logo sairia e esqueceria de tudo isso quando estivesse criando. Foi isso o que aconteceu, no entanto, o mesmo jovem voltou várias vezes durante a semana.

Conquistara a amizade de todos que lá trabalhavam, impressionante como conseguia se socializar mesmo com a personalidade irritante. Ficou claro de hoje de diante que o período de tranquilidade de Keith tomando cafeína acabou. No entanto, tudo estaria bem se ficasse quieto.

— Ei, cabelo esquisito! — O cliente chamou. — De jaqueta vermelha! Você aí!

Keith errou. Havia vezes que as desgraças podiam vir ao encontro das pessoas.

— Não responde quando os outros estão falando contigo?! — Gritou, empurrando seu rosto para perto de Keith.

— O que você quer? — Keith perguntou. Segurou sua vontade de socar o outro com todas suas forças.

— Vai ficar caladão assim? Toda vez que venho aqui você só nem fala nada. Não está com medo, é? — Falou a última frase em tom de deboche.

Agora isso foi longe demais. Keith podia sentir seu sangue fervendo.

— Medo? Sim, de ser contaminado pela sua estupidez. — Respondeu e cruzou os braços.

— Ora, seu... Eu que tenho medo de ser contaminado pela... pela... — Hesitou e aparentou estar procurando uma palavra. — Pela sua aura de emo/punk. Consigo sentir esse cheiro de longe.

— Se isso for o suficiente para te manter longe.

— Ah, pode crer que sim! — Afirmou e mostrou a língua.

Keith considerou o incidente o suficiente para ir embora.

***

Aquilo que mais desejava no momento é afundar no sofá macio e dormir. Keith estava exausto. Mesmo a atividade que ele mais gostava poderia ser cansativa. O tintinar das chaves produzidos enquanto ele abria a porta aguçou os ouvidos de uma pessoa presente no andar.

— Olá, prazer em conhecê-lo! Eu sou o Lance, seu novo vizinho!

Keith quase pulou de espanto e virou-se para ver quem era.

— Você é... — Lance arqueou as sobrancelhas. — Ah não! Impossível que você é meu vizinho! É vingança, é?!

— Vingança?! Estou aqui há muito tempo! — Berrou.

— Não sei, não confio. — Declarou, fazendo um beicinho que nem uma criança.

— Ótimo, somente não me atrapalhe.

— Eu que deveria dizer isso! Seu cabelo já me atrapalha! — Contou e ergueu as mãos dramaticamente.

— O que tem errado com meu cabelo?!

— Tudo! Quem tem esse corte em pleno século XXI?! Você deveria saber que ‘’él no es bueno’’ para as garotas.

— Não entendi o que falou, mas deixa meu cabelo em paz! — Advertiu e entrou no seu apartamento, deixando o Lance sem uma palavra final.

Ele se acalmou depois de comer macarrão, comida acalmava. Desta vez, foi jantar na sacada, como fazia quando queria relaxar. Sentou-se e desfrutou do céu limpo. Estava um silêncio desagradável como se faltasse algo, então se lembrou daquela ocasião, daquela voz. Seria bom se pudesse ouvi-la.

Keith não era nenhum mágico, porém após desejar escutá-la, simplesmente ouviu alguém cantar. As notas ficaram mais altas e reconhecíveis. Ficou claro que era a que ele conheceu. O ritmo era parecido, a atmosfera veranil ainda existia, porém se tratava de outra música. Ele prosseguiu e comeu a comida.

Engasgou de súbito no segundo que captou uma informação importante. Caso a voz viesse próxima de seu apartamento, mais precisamente ao lado, e Lance fosse seu vizinho, portanto... Não! Jamais! Outra pessoa morava com ele, essa era a única resposta. Keith soltou uma risadinha, achando engraçado sua dedução. Inacreditável! Incrível! Sem chance. Ele nunca acreditaria que a voz pertencesse a Lance.

— Ei, ‘’mullet’’! — Disse Lance à direita. Existia apenas um espaço dividindo a sacada dele e a de Keith. A distância era boa o bastante para que Keith enxergasse a fita azul segurando os fios marrons. — Fazendo o que essa hora?

Ele iria responder, contudo, Lance o interrompeu.

— Ah, já sei! Gostou do que ouviu, não é? — Presumiu e colocou dois dedos no queixo. — Pois é, adivinha quem foi campeão de um concurso de canto duas vezes seguidas? Sim, Lancey Lance fez isso!

— Chama isso de canto? — Riu, preferia que fosse de ironia, todavia, saiu mais como um riso de nervoso.

— Isso é inveja! Iria te mostrar uma, mas tenho coisas importantes para fazer! — Declarou e desapareceu de vista. Certamente, ele estava ocupado... com a limpeza dos quartos.

Os nervos de Keith estavam saltados, devia ser a pessoa mais azarada do planeta. Foi escolhido a dedo para ter o vizinho mais insuportável do mundo. Adeus, paz. Jazia aqui a tranquilidade. Sim, pedira por mudança e não uma surpresa desagradável. Será que se dissesse que era uma brincadeira isso seria desfeito?

Levantava-se, mas parou quando escutou Lance cantar. Analisando, era a mesma voz, porém sem os gritos estridentes semelhantes a uma hiena. Antes que percebesse, sentara novamente no chão. Desta feita, era notável um ritmo mais dançante, entretanto, a harmonia era mais calma, a qual o lembrou de R&B. Poderia desconhecer vários aspectos da música, porém pelo menos sabia reconhecer alguns gêneros.

Admitiu, Lance cantava realmente bem. Fechou os olhos e sentiu sua irritação sumir. Por mais que quisesse ir embora, não conseguia. Queria escutar. Esperava que não acabasse mesmo sabendo que iria. Ele se deixou ser levado pela melodia e balançou levemente a cabeça, desfrutando do som. Tudo bem, ele não diria para ninguém, mas esse seria seu segredo e se certificaria de esconder a sete chaves.