Brincando de Boneca

Brincando de Boneca


Pedi silêncio uma última vez. Suas palavras irritavam-me e ter que pronunciar as minhas só fazia a irritação crescer ainda mais.
Não queria nossas vozes masculinas maculando aquela fantasia. Não queria que aqueles sons graves quebrassem a frágil imagem feminina que eu tentava compor.
Estava quase pronta, minha criação. Depois de tanto tempo em minhas mãos, acertando cada detalhe. Como uma escultura feita em mármore bruto, cuidadosamente lapidada.
Ele estava impaciente, não sei se pelo resultado ou para se livrar daquelas roupas.
Roupas minuciosamente preparadas, feitas à semelhança das minhas. Babados e tules. Anáguas e bordados. Adereços infantis tingidos de negro, pervertendo a imagem inocente daqueles adornos.
Faltava apenas um último detalhe, o batom. Vermelho, num tom de sangue, passado cuidadosamente pelos lábios carnudos daquele homem. Tão belos e delineados que sequer precisava de artifícios para aumentá-los ou deixá-los mais femininos, como frequentemente tinha de fazer comigo mesmo.
Dei um passo para trás a fim de apreciar melhor minha obra. Ali sentado em uma cadeira de meu quarto, frente à penteadeira. Uma boneca tímida em trajes negros, com belos cachos loiros, mimetizando tão bem a beleza de uma jovem dama. Numa mescla antagônica de doçura e perversidade.
Sorri para ele um dos meus raros sorrisos, satisfeito com a visão que estava tendo. Sentia-me olhando num espelho, vendo refletida a imagem da perfeição.
Aquela mulher que sempre idealizei, altiva e soturna, estava diante de mim e não mais do outro lado do espelho. Era outra criatura, minha criação.
Quase tive medo de aproximar-me daquele corpo, medo de desfazer o encanto, de experimentar pela primeira vez o prazer de tocar a mulher que residia em meus sonhos.
O trouxe pela mão até a cama onde sentamos frente a frente, para assim continuar a contemplá-lo.
Admirado que estava, como Narciso diante do espelho, era apenas sorrisos. Sorrisos que via refletidos em seus olhos artificialmente azuis, adornados por cílios negros muito longos.
A interpretação dele não era das mais perfeitas. Faltava lhe a prática com os maneirismos, as pequenas sutilezas. Contudo, ele não me parecia a caricatura disforme que vi em outros homens ao interpretarem aquele papel.
Tantas tentativas frustradas com os homens que quis transformar naquele ideal pervertido e secreto de beleza. Homens que não souberam perceber as nuances de meu desejo.
Mas ele era diferente. Soube disso desde a primeira vez que o vi. E não era só por sua beleza ou por seu porte. Havia algo nele de especial. Algo em seus olhos que transpareciam tanta inocência, ao passo que sua boca emanava a mais pura luxuria.
Ali, na forma bruta, ele já possuía as características que eu considerava ideais. Já havia nele a dualidade que tanto procurava. O misto entre a redenção e o pecado. Desde o primeiro momento, sabia que seria ele a realizar meus desejos.
Agora punha toda a relação que possuíamos em risco. Uma relação profissional diária, séria. Uma relação onde dependia dele, onde outras pessoas dependiam dele.
Aquilo era egoísmo de minha parte, esquecer de tudo para realizar aquela fantasia. Entretanto, não experimentava tipo algum de culpa. Sabia que seria mais fácil reerguer minha vida profissional, caso fosse necessário, que encontrar outro homem tão perfeito para saciar meus desejos.
Meus lábios tremiam de ansiedade. Queria beijá-lo, queria provar seu gosto. Mas faltava coragem. Ansiava por aquilo há tanto tempo que agora que tinha não sabia como proceder.
Ele parecia notar o quão confuso eu estava, acovardado por meus próprios anseios. E via minha boneca sorrir em divertimento diante disso, como se já esperasse de mim a falta de iniciativa.
Aos poucos foi se aproximando, tocando minhas mãos, tomando para si as rédeas da situação.
Pude vislumbrar por um instante o que seria feito de meu corpo. Vislumbrar em minha mente as surpresas que esta boneca tinha para mim.
Fiquei estático ao ser tocado, ao ser lentamente acariciado por cima das roupas.
Para o outro eu devia ser uma boneca, tal qual ele era para mim. Uma boneca para poder brincar, se divertir. E penso que realmente esse papel me coube melhor que a ele.
Duas bonecas brincando, ganhando vida, abandonadas pela ama que cresceu. Agora só tínhamos uma a outra para brincar e, quem sabe assim, a brincadeira não seria ainda mais divertida?
Uma das mãos dele foi traiçoeira para baixo do tule de minhas anáguas, procurando algo que uma mulher não deveria ter entre as pernas.
Quase o impedi, pensando que não queria ser tocado como um homem, que dar me conta de meu próprio desejo tão masculino iria estragar a fantasia.
Que engano. Que engano pensar que àquelas alturas algo podia estragar o que estava sentindo.
Nenhum beijo, apenas me tocava com suas mãos habilidosas por entre as saias, sem me desnudar. Brincando em silêncio, com um sorriso nos lábios rubros.
Entregue as vontades dele, assim como ele estivera as minhas enquanto eu o maquiava, deitei na cama. Cuidava para manter-me impecável, sem tirar meu olhar do dele.
Ele via um olhar frio e vazio. Olhos como de vidro, sem vida ou brilho. Eu sabia disso. E saber de meu próprio poder de dissimular me excitava.
As caricias continuavam, com a outra boneca a vir por cima de mim, roçando vulgarmente o corpo no meu.
Não o tocava. Mantinha minhas mãos uma de cada lado de meu corpo num gesto que podia ser visto tanto como entrega quanto como descaso.
O farfalhar das roupas começava a se confundir com minha respiração, cada vez mais pesada. O ruído dela me irritava, mas era única reação de meu corpo que eu não podia evitar. A única, junto de minha ereção, que não era possível controlar.
Senti que podia chegar ao ápice apenas por ter a mulher de meus sonhos por cima de mim, ditando seu ritmo enquanto dava prazer aos dois corpos.
Tolo eu em pensar que aquela boneca iria querer tão pouco. Que se contentaria apenas com aquele prazer de meninas.
Mas se era a dualidade o que eu amava, talvez amasse ser tomado de um jeito controlador pela dama que criei.
Tudo me parecia tão rápido que mal me dei conta de já estar noutra posição, com os antebraços apoiados na cama e tendo minhas roupas íntimas abaixadas até meus joelhos.
Certa tontura começava a se apossar de mim, fazendo-me ver as cenas daquele momento em flashs. Como se perdesse a consciência e a recobrasse poucos segundos depois, por vezes seguidas.
Imaginava ser culpa do prazer que sentia. O prazer tão intenso de ser tomado em silêncio por meu reflexo, em ser possuído tão completamente por alguém que antes existia apenas nos meus sonhos.
E devo dizer que meus sonhos não chegavam nem aos pés daquela realidade. Talvez minha inexperiência não me permitisse imaginar com tantos detalhes aquela cena e nem mesmo fantasiar tão longe sobre aquele ato.
A dor era uma surpresa, meus próprios gemidos descontrolados eram uma surpresa. Assim como ter os cabelos puxados e o rosto pressionado contra os travesseiros.
E o fato mais surpreendente era não mais me importar com minha voz emanando pelo ambiente, com minha maquiagem borrando contra o tecido das fronhas, com meus cabelos desgrenhando-se enquanto eu pedia por mais.
A dignidade se esvaia junto da consciência. Aquele desejo se mostrava melhor na realidade e o prazer que sentia era mais intenso que minha imaginação conseguira fantasiar.
Estava no ápice daquela loucura, já sem forças nos braços, sendo embalado no vai e vem dos movimentos de minha boneca. Ele apertava meus quadris com seus dedos, fazendo com que eu o sentisse cada vez mais fundo, até por fim não agüentar mais.
Um último grito escapou de minha garganta e não demorou muito até sentir ele também chegar ao seu limite, preenchendo meu interior com seu liquido quente.
Algum tempo passou enquanto esperava minha respiração se normalizar. Deitado de bruços, com o rosto nos travesseiros, me perguntando como seria olhar para ele naquele momento. Agora que as mascaras haviam caído, que a fantasia se tornara parte da realidade.
Virei-me na cama com o olhar baixo, demorando até encará-lo. Demorando até ver seu sorriso, sua maquiagem imaculada, os cachos ainda com forma e a roupa sem um amarrotado sequer.
Não conseguia acreditar e ele parecia notar isso, pois seu sorriso aumentava à medida que minha face devia demonstrar espanto.
Estava perfeito e intacto, mesmo depois de me possuir daquele jeito. Totalmente o contrário da minha aparência. Da minha maquiagem borrada, das minhas saias amassadas, da minha roupa intima abaixada até as canelas.
Isso fazia com que eu me sentisse uma boneca quebrada, violada. Gasta, suja, sem serventia.
Pensei em dizer qualquer coisa, mas palavras não se faziam necessárias. Éramos cúmplices em nosso silêncio, pois o sorriso dele me dizia tudo e meus olhos de vidro deviam demonstrar a ele todas as coisas que eu não saberia dizer.
E o que aquele sorriso dizia, naquele instante, é que a brincadeira apenas estava começando.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.