Ela agora não tinha mais a mão direita.

Mas precisava de uma nova vítima para continuar vivendo, sua alma era com certeza vazia então sem tomar a vida presente em outras pessoas ficava impossível sentir-se completa de novo. As crianças é claro, possuem muito mais vividez e a outra mãe sentia-se bem ao enganá-las, as achava muito bobas.

Ela por sua vez não perdeu tempo. Logo que Coraline foi embora ela não passou um dia sequer ponderando a respeito, ao invés disso já preparará o lugar para outras crianças.

A lua lá fora lembrava aos mais atentos um botão no céu escuro e limpo, não que alguém notasse algo assim antes de ser muito tarde.

Jane, a nova garota que atravessará a porta, fora a terceira depois de Coraline, que foi embora do palácio cor de rosa por não conseguir lidar com as assombrosas lembranças que rodavam a sala de visitas e a porta que dava aos tijolos. Jane tinha um que de detetive, talvez pelos livros que lê, talvez pelo seu sobrenome, Holmes, ele dá certo charme a brincadeira. A diferença entre Jane e Coraline seria com toda certeza a desconfiança, algo que Jane não tinha, e que poderia lhe custar a vida:

– Jane querida - A voz característica da que chamavam de outra mãe ecoou pelo lado de fora da casa. Nesta nova versão, o palácio continuava exatamente igual, mas o jardim era florido e bonito e a quadra de vôlei agora era nova, Jane jogava vôlei - entre para o jantar, preparei especialmente pra você.

– Estou indo - Ela correu pelo jardim pisando em algumas flores. O gato preto, o mesmo que havia visto Coraline fugir e também se mudar do palácio cor de rosa observava Jane com reprovação, mas desta vez não faria nada. Em poucos minutos ela já estava novamente dentro do palácio cor de rosa.

O sorriso da outra mãe parecia verdadeiro, somente um especialista nessa realidade alternativa poderia ver o ponto fraco de seu disfarce, não os botões, mas o brilho que se via neles ao mentir para uma pobre alma inocente, como o brilho nos olhos de um psicopata ao fazer uma nova vítima.

A mesma coisa ia se repetindo por mais uma vez, jantares fantásticos, quartos encantados, brincadeiras, bons vizinhos e uma vida que parecia ser perfeita. A outra mãe achava Jane uma garota interessante, seus cabelos eras longos e pintados de um verde menta muito doce, suas roupas eram chamativas e além de detetive ela jogava vôlei profissionalmente na divisão nacional de sua idade, sim, ela era uma garota muito peculiar e interessante, mas a outra mãe, não lembraria de seu nome por nem mais dez dias depois que estivesse morta. Não tinha sentimentos apenas uma curiosidade estranha. De todas as crianças com que ja esteve só se lembrava de um nome, ela sentia ódio só de se lembrar, ódio muito ódio. Um belo nome mas que pra ela deixou uma marca terrível em seu histórico de mentiras perfeitas, a única que escapou. Coraline.

A outra mãe não tinha sentimentos, além do ódio é claro, mas outrora já teve. Em um passado muito obscuro de que só ela se lembra. No único dia que ela amou alguém.

Alguns dizem que é apenas uma lenda, coisa inventada. Outros acreditam tanto que dizem que é uma história perfeita para ilustrar que dentro de todo mal a um pouco de bem.

Dizem que, a muito tempo, talvez por volta do século XIX, a outra mãe esperava pacientemente por sua próxima vítima, uma nova alma. Naquela época não existia o palácio cor de rosa, mas em outra casa qualquer que ninguém sabe qual ficava a pequena porta. Foi quando entrou em seus territórios um jovem garotinho, parecia ainda mais pequeno e inocente do que a maioria das crianças que ela conhecia. Mas não havia importância, isso só serviu para que fosse ainda mais fácil, ela o ludibriou com as magias daquele mundo.

Mas apesar da facilidade em manipular o garotinho, o disfarce não poderia ser o habitual. Ele não tinha mãe, consequentemente não poderia ter uma outra mãe. Mas isso também não a impediu, ela continuou com o jogo, até o dia que costuraria os botões nos olhos do podre Peter.

Porém antes de qualquer coisa, naquela mesma noite, ele pronunciou as palavras do qual a outra mãe lembrava-se tanto. Depois de ter subido as escadarias do quarto e antes de fechar a porta ele pronunciou discretamente, quase que num sussurro, mas alto o suficiente para que os ouvidos atentos da outra mãe distiguicem as palavras, "Eu te amo mamãe". Muitos já haviam lhe dito isso é verdade, mas eram por motivos interesseiros e egoístas, não que a própria outra mãe desse algum exemplo de humildade, ainda assim era visível nos olhos do garotinho que ele não tinha dito aquilo da boca pra fora ou simplesmente porque ela lhe deu muitos presentes. Por alguns momentos ela chegou a perguntar a si própria se alguém poderia verdadeiramente ser capaz de amá-la, logo depois, se ela poderia verdadeiramente ser capaz de amar alguém.

No dia seguinte ela o mandou embora, apesar de lhe cortar o coração, se é que ela tinha um, o choro do menininho. Ela sabia que o amava mas não podia deixar que ele vivesse com ela, um dia ela poderia ceder a sua febre assassina. Não queria matar Peter, tampouco queria deixá-lo ir embora. Mas as vezes até mesmo ela sedia ao que parecia correto e não ao que desejava. Se para ela o mal era representado por botões, ele estava em seus olhos, os botões e o mal também. Não poderia deixar seu Peter conviver com algo assim. E então ele foi embora.

Agora temos conhecimento de que duas pessoas escaparam da morte. Coraline e Peter.

Agora temos conhecimento de que a outra mãe se lembra de dois nomes. Coraline e Peter.

Agora temos conhecimento de que a duas formas de enganar a morte. A inteligência e o amor.

Até o mal tem um pouco de bem. Mas pouco bem pouco, porque Jane agora está morta. Enquanto isso a outra mãe espera por outra criança, pacientemente.

E agora voltou do poço sem fundo sua mão direita.

"Não atravesse a pequena porta"

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.