Both of us

Jogo para dois


Levantaram as mãos até a altura do rosto, repetindo o mesmo juramento de sempre:

— Prometo aqui e agora dizer apenas a verdade, não omitindo fatos ou modificando-os para meu conforto. A sinceridade será mantida independe de qual for a pergunta, ou quão difícil seja respondê-la. Na presença de espíritos que antes aqui viviam – disseram em uníssono, cuspindo nas mãos e apertando-as -, eu prometo.

Moveram seus corpos até a cama, sentando-se um de frente para o outro. Gabrielle recostou a cabeça na cabeceira, enquanto observava o moreno com a testa franzida, finas linhas atravessando sua pele de uma ponta a outra.

— Você começa – ele disse, estralando os dedos.

Ela fechou os olhos, revivendo a cena que presenciara mais cedo. Lembrou-se do ciúme que crescera dentro de si, mas também da dúvida latente que escolheu sua mente como morada. Embora jamais tivesse se importado muito com os namoros de Lucas, chegou à conclusão que valia a pena ouvir sobre este.

— O que há entre Isabel e você?

— Realmente, eu esperava qualquer coisa, menos isso – riu, uma covinha surgindo em sua bochecha esquerda – Não fique chateada porque não te contei. É só que eu esperei para ver se ia valer a pena.

— Não ficarei. Prossiga.

— Ok... Isabel e eu namoramos por mais ou menos três meses. Estranhamente, foi ela quem me pediu em namoro e eu não vi problema nenhum em aceitar – o moreno passou as mãos pelos cabelos - Não é como se eu gostasse dela. Na verdade, estou apaixonado por outra garota, mas a criatura em questão não tinha me dado motivos para crer que aquilo pudesse evoluir.

— Compreensível, vindo de você – comentou, uma fisgada de dor lhe atingindo bem onde o coração se encontrava.

— O que você quis dizer com isso?! – falou de modo afetado, fingindo indignação.

— Você e o Victor são os maiores cafajestes que eu conheço. É típico que vocês fiquem com milhares de garotas enquanto gostam de uma em especial.

— Eu não fico com milhares de garotas – defendeu-se, fazendo bico -, e me arrependi da Bel logo nos primeiros dias. Ela é profundamente possessiva e exagerada, e não tem o menor senso de responsabilidade: queria perder aulas o tempo todo para ficarmos juntos, e se chateava quando eu dizia não.

“Nós não tínhamos absolutamente nada para conversar: ela queria falar das roupas que estava usando e em como foram compradas, como seus sapatos eram bonitos e que eu deveria me vestir melhor para estar de acordo com ela; eu queria falar sobre como a letra de uma música era emocionante e bem escrita, como estavam as filmagens da adaptação de um dos meus livros favoritos e em como eu estava ansioso para a apresentação do musical. Nenhum dos dois queria saber do mundo do outro. O que aquele namoro era? Uma situação insuportável... Que só me fez apaixonar mais ainda por aquela outra garota.

“Eu terminei o namoro. Não conseguia continuar com a sensação de que estava enganando-a, então fui totalmente sincero em relação ao que sentia. Mas parece que ela tem algum problema de entendimento, porque me perseguiu durante as férias, e agora que voltamos às aulas, continuo sem paz. Hoje impediu que eu fosse ao almoço, disse que não posso falar com você. Perdi o resto das aulas para tentar colocar algum juízo naquela cabeça, mas parece que lá só tem descolorante mesmo.

— Tenho certeza que tudo vai se resolver. Quer dizer – começou, adquirindo um sorriso sarcástico -, caso não seja possível, temos Katherine Marthelly e um penhasco próximo. Fácil de resolver.

Suas risadas ressoaram por entre as paredes de concreto.

— Você deu um beijo na minha bochecha hoje de manhã? – perguntou assim que o silêncio retornou a seu trono.

— Sim – respondeu –, e não faço a menor ideia do porquê. Tive vontade e fiz, simplesmente.

— Ok – murmurou, piscando duas vezes seguidas como que para manter-se concentrado -, sua vez. Seja criativa.

— Por que você insiste tanto para que eu volte a ter cabelos castanhos?

— Em parte porque tenho uma queda por morenas, e também porque você fica absurdamente bonita e angelical com o cabelo daquela cor – explicou rapidamente entre risos -, mas isso não quer dizer que você não seja bonita ruiva. É que assim chama muita atenção. Esse cabelo te deixa misteriosa de um jeito sexy. Isso não é ruim para você, mas me irrita ver tantos garotos a sua volta.

— Ah – exclamou, tentando absorver corretamente as palavras que ouvira.

— Ok, aí vai a próxima – ele parou e respirou fundo, como se criasse coragem -, responda como quiser, mas seja sincera: os boatos sobre você ser apaixonada por mim são verdadeiros?

Gabrielle não parou para pensar com clareza. Não queria que a sanidade lhe tirasse a determinação adquirida para fazer o que sempre desejara: mostrar para Lucas o que sentia por ele; deixar fluir aquele sentimento contido, guardado a vinte e sete chaves bem embaixo de seu coração.

Sem dizer qualquer palavra, a ruiva se inclinou na direção do garoto e rapidamente envolveu a nuca dele com as mãos, colando seus lábios nos dele de forma totalmente desajeitada.

Gabrielle o beijou mesmo sem se lembrar como.

Ele não perdeu tempo. Embora tivesse sido pego de surpresa, não se demorou em seu estado de estupefação: pousou delicadamente as mãos sobre a cintura dela, puxando-a para perto, porque naquele momento a menor distância parecia demais. Da forma como nunca fazia, correspondeu o beijo com mais paixão ainda.

Ela sentia todo o seu corpo tremer em reação a Lucas. Embora frias, suas mãos suavam e prendiam-se uma ao pescoço do garoto, outra aos cabelos macios que ele possuía. Seu coração bombeava sangue com tanta força que a sensação era de que saltaria para o exterior a qualquer momento.

Interrompeu o beijo e empurrou-se para longe, os lábios só não mais vermelhos que o rosto corado de vergonha. Passou as mãos pelo cabelo, fazendo os fios voltarem ao lugar, e respirou fundo, numa falha tentativa de fazer o coração bater normalmente, uma tarefa impossível para quem estava dividida entre felicidade e culpa.

— Me desculpe – disse, embora não quisesse mesmo pedir perdão -, esqueça isso – mesmo que desejasse que ele fizesse o contrário.

— Gabrielle – chamou, segurando o queixo dela, obrigando-a a olhá-lo diretamente -, tenha um pouco de educação. Você não pode dar o melhor beijo da vida de uma pessoa e depois pedi-la para esquecer.

— O quê? – seu rosto se tingia numa mistura de expressões, tornando-o indecifrável. Sentimentos conflitavam em seu interior, lutando com espadas, facas e pedras: sentiu a euforia correr por suas veias até lhe causar a morte, e a dúvida enchê-la de energia até estar bruscamente de volta a vida.

O apocalipse aconteceu em um segundo quando Lucas sorriu: presenciou a extinção de tudo aquilo que conhecemos quando ele a abraçou e juntou seus lábios em mais um beijo, agora calmo e sereno, e em sua mente pétalas de rosa desciam dos céus enquanto tudo se consumia em fogo e dor. No entanto, quando moveu as pálpebras para cima, tudo ainda estava ali.

— É... Acho que aquele agora é o segundo – concluiu depois de um tempo encarando-a com olhos brilhantes – Eu nunca tive coragem de dizer, mas tudo com você acaba se tornando o melhor, não importa quantas vezes eu o faça. Já te abracei inúmeras vezes, mas a sensação é sempre nova quando o faço. Esse é um dos meus medos: não quero fazer nada demais até que se torne comum e perca a importância que tinha antes.

— Eu amo você – declarou depois de inspirar o máximo de ar que pode. Misturou o gosto salgado das lágrimas com o hálito quente dos dois novamente, e foi enviada para o paraíso pela quadragésima quarta vez só nos últimos minutos.

— Nós somos dois idiotas.

— Somos dois idiotas – repetiu, assentindo -, e amo você por ser idiota e amo você porque sou idiota, e existem tantas outras razões para que eu ame você, mas não consigo pronunciá-las porque só o que quero dizer, no fundo, é eu amo você, amo você, amo você... Eu amo você, Lucas Leal, e não o sobrenome que inventamos. Seus abençoados defeitos e suas malditas qualidades fazem com que eu me apaixone por você todos os dias. O jeito como você canta, como toca seu ukulele, como compõe e não precisa de mais nada para soar perfeito faz com que minha vida pareça pelo menos um pouquinho completa, mesmo que seja um eterno quebra-cabeça com uma peça faltando. Eu amo você por me dar esperança, por me fazer crer que as coisas vão ficar bem mesmo quando tudo está desabando em uma tempestade de lágrimas. E o motivo para que eu não permita que você diga o mesmo é porque tenho medo que você não acredite nessas palavras como eu poderia vir a acreditar.

Lucas estudou carinhosamente cada centímetro do rosto da ruiva: passou os dedos por seu queixo, seus lábios, suas bochechas, seu nariz... Secou as lágrimas que caíam rapidamente dos olhos dela e beijou-lhe a testa, guardando em sua memória cada nova sensação que lhe invadia ao passar dos segundos, tão perto dela que podia sentir o ar entrar e sair de seus pulmões. Encarava aquelas írises e só o que conseguia pensar era em como poderia morrer apenas para continuar a vê-las brilhando como estavam.

— Você é incrível. Indescritível é a única palavra que pode expressar minha reação ao te ver tocar, ao te ver liberando suas emoções de forma tão graciosa por entre as cordas de uma guitarra, sem medo de errar ou de ser julgada. Quando você sorri, enche meu mundo de luz, porque, meu Deus, Gabs, que sorriso lindo você tem! É uma pena que você não o mostre com tanta frequência quanto deveria, porque ele poderia ser a cura para uma doença chamada tristeza.

— Está exagerando.

— Quem dera eu estivesse, Ruiva. Sou tão vítima do seu sorriso quanto todos as outras pessoas que te cercam. Devo ter realmente muita sorte por ser eu quem esteve com você por todos esses momentos, porque sei que existe gente que mataria para estar no meu lugar. Você se finge de durona, mas dá para perceber quão apaixonantemente extraordinária você é. – respirou fundo, pressionando seus lábios bem na ponta do nariz dela – Amo você, Gabrielle Santos, e não o sobrenome que inventamos. E te odeio justamente por te amar tanto. E faço isso há tanto tempo que já não consigo imaginar um mundo onde eu não ame você.

Gabrielle piscava vagarosamente seus olhos castanho-esverdeados, com medo de acordar em meio a imagens enevoadas de um sonho ou devaneio. Não queria que aquelas palavras começassem a derreter e mostrassem-se apenas mais uma ilusão criada por sua mente perturbada; um delírio semelhante ao chocolate amargo: doce ao início, mas deixando-lhe de lembrança apenas um azedo que demora a ir embora.

Recostou sua testa na dele, puxando o ar para dentro de seus pulmões e expirando-o em seguida. Seus dedos fizeram um caminho silenciosamente calmo a procura dos de Lucas, e entrelaçaram-se uns nos outros assim que uma mão encontrou a outra, um riso escapando por entre os lábios dos dois.

— Não queria dizer nada, mas sinto que devia dizer alguma coisa – começou, sentindo a respiração descompassada dele contra si.

— Isso é um sonho?

— No momento, meu maior medo é que seja.

O moreno expôs os dentes de forma que sua felicidade fosse exprimida junto ao brilho de seu sorriso.

­­— Você teria dito apenas “não” caso fosse.

Fecharam os olhos por um longo tempo que, em sua memória, pareceram curtíssimos segundos onde estudaram mais uma vez a perfeição com que seus lábios se encaixavam e seus corpos eram atraídos um para o outro como se tivessem seus próprios campos gravitacionais. E, ao abri-los de novo, quando o estalar de um sino reverberou pelo aposento, o mundo parecia novo, embora tudo continuasse ali da mesma maneira que estava antes.

­— Você tem que ir, não é? – sussurrou Gabrielle, perdendo-se no perfume que tomou suas narinas ao ser envolvida pelos braços dele.

— Sim. Mike me encontrou de manhã, e tive sorte de não ter levado uma detenção. Sei que não seria igual se acontecesse de novo. Não posso correr o risco.

— Eu sei – levantou-se e o puxou consigo -, mas venha amanhã.

Abriu a porta e empurrou-o com delicadeza, dando-lhe um abraço que misturava contentamento e melancolia; um sentimento que não era ruim nem bom, era apenas sentido.

Antes de ir, Lucas virou-se com um sorriso maroto.

— Ei, Gabs! Está chovendo lá fora?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.