Reacostumar-se a alguns preceitos antigos é tarefa dolorida e, para mim, proibida. Reler amores passados, então... Só que as memórias não cessam. Eu não consigo – nem por um momento – esquecer-me. Nem esquecê-lo. É difícil demais.

Gotas de sangue (puro, raro, meu) rastejavam pela minha pele no último dia em que estive vivo; digo, vivo fisicamente. (Porque, caso não tenha percebido, eu estou falando, o que implica em estar vivo. Sem filosofias de escritores birutas que acreditam que os mortos contam histórias, por favor.) A mão esquerda de Ville transpassava minhas entranhas – que jeito mais clichê de se matar alguém. Mas Ville sempre foi clichê, em sua busca desesperada por... por alguma coisa que já não lembro mais. Não importa muito.

Entretanto, quando me referi às gotas que, languidamente, deslizavam pela minha boca, queixo e pescoço, ao sangue raro e puro, não me referia ao meu propriamente.

Ele estava desmaiado abaixo de meus pés. Não... Os olhos ácidos de Ville corroíam essa minha teoria. Frank jazia, inteiramente morto, estático, oco abaixo de meus pés. Não lembro como morrera. Suas feições, aos poucos, desaparecem de minha memória frágil. A cena é confusa em minha mente: um morto, um monstro, dois monstros, só que um inteiramente esfacelado, o outro, em um escandaloso desespero. A paisagem era a mesma de sempre: era nublado, era frio, os pinheiros choravam o eterno orvalho. Só que, dessa vez, o tom monocromático (do branco pálido ao cinza-esverdeado) contrastava com uma cadência de vermelhos. Havia sangue em cada detalhe da última imagem que me vem à cabeça.

Depois disso, breu.

Não sei o que houve, se eu bati a cabeça em algum lugar e entrei em coma, se alguém invadiu minha mente e me deixou de castigo em algum canto. Sei que estou vivo (“penso, logo existo”), ao menos em parte, e que não posso fazer nada. A verdade é que acho que nunca pude. Aliás, para não dizer que não posso fazer nada, posso fazer algo, já que, por não poder fazer nada, não posso me suicidar ou cometer qualquer outra auto-punição por fazer isso. Estou sendo confuso demais? Acho que estou enlouquecendo.

Tudo que posso fazer agora é admitir, para mim mesmo, cada erro e impotência. Vai que existe um Céu em algum lugar... Gostaria de entrar de consciência limpa, pelo menos (com as mãos sujas, é, eu sei... Que ser patético que me tornei com o passar do tempo). No final das contas, não deu em nada. Acho difícil haver terceira chance para me redimir. Talvez eu mereça o castigo de ficar remoendo uma vida jogada fora até... Sei lá, até Deus cansar de mim. Ele já deve ter cansado, mas tudo bem. Eu me viro.

Na verdade, estaria mentindo se dissesse que prefiro esquecer tudo. Gostaria de pecar mais um pouquinho.

Ainda lembro seus olhos escuros, ora assaltados por um brilho desconfiado, ora entregues a mim como pequenos animaizinhos travessos. Lembro suas mãos pequenas e grosseiras, dúbias, e, caso estivesse conectado ao meu corpo, sei que ainda sentiria seu toque por todo ele. Lembro as feridas, apesar de não lembrar se fora você o responsável por elas ou qualquer outro ser, por motivos que tampouco recordo, mas lembro seu corpo sobre elas também. E lembro, lembro quase como se pudesse senti-lo: lembro o cheiro de seu sangue eriçando os pelos da minha nuca, inebriando-me como álcool, meu coração batendo cada vez mais forte e meus lábios a palpitarem... E, com tudo isso, lembro da dor, e da eterna pergunta que me dividia e maculara meu olho esquerdo.

Amor?

Mesmo no completo vazio em que me encontro, Frank, mesmo sem corpo ou sem qualquer outra conexão com o mundo físico, ao que parece, essa dúvida vai continuar me corroendo até o mundo virar pó. Talvez essa seja a verdadeira maldição daqueles que nascem sob a benção da Lua e a cisma do Sol...

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.