Seus olhos eram da cor da inocência.

Seu sorriso tinha sabor de culpa.

Todo aquele homem era paradoxal. Mesmo se fosse fluente em todas as línguas do planeta, jamais seria capaz de encontrar as palavras que descrevessem a aura daquele ser.

O que ele era?

Ele era a fera e o príncipe encantado ao mesmo tempo.

Ele tinha sabor de vida, mas fedia a morte.

Eu quis me entregar de corpo e alma para ele, apenas momentaneamente, somente até sentir o cheiro do seu sangue. E então ele cruzou nossos olhares, e então eu senti minhas defesas acabarem. Vampiros, os dois. Os mesmos pensamentos impróprios. Eu não sabia quase nada sobre aquele demônio, entretanto ele ria, ria como se assistisse ao meu passado através de meus olhos verdes, sádico como só um verdadeiro desgraçado sabia ser.

- Sr. Valo.

- Obrigado, Agnes. – Ele tentava remodelar o sorriso, procurando disfarçar sua óbvia alegria. Devia estar realmente feliz, já que falhava descaradamente. – Sinto muito, mas há tempos não me sinto tão alegre... Soube do acidente e vê-los aqui com esses olhos tão puros me traz imensa felicidade.

Ele contornou a pequena escrivaninha da mesma madeira de cerejeira, arrastando os dedos alongados por sua extensão. Portava-se com uma classe inimaginável e um misterioso charme, atraente. Não fossem aquelas feições sem um pingo de humanidade e talvez até meu sangue subisse à cabeça. Não, claro que não; Frank na mesma hora repreendeu-me, aproximando-se discretamente de mim, envolvendo meu braço com seus dedos pequeninos.

“Não olhe em seus olhos”.

Era tudo o que eu deveria dizer, mesmo em voz alta, mesmo correndo o risco de entregar-me para aqueles lábios avermelhados.

Não olhe naqueles olhos. São feitos de vidro. Refletirão seu medo e cortarão sua esperança. Não me solte! Ele não se cansará até possuir todo o sangue circulando em suas veias obcecadas. Aquele riso carregado de malícia foi o suficiente para fazer-me contrair os músculos e colocar-me a um singelo passo à frente de Frank. Inútil proteção, eu apenas mostrava minha boba inocência para aquele homem. Mais motivos para manter aquele sorriso infeliz.

- Sr. Ville Valo, dono desta pousada. É um imenso prazer tê-los como hóspedes.

Estendeu a mão. Ah, a mão era pior do que o sorriso, o olhar, a linguagem polida, o sibilar das palavras. Era doce, era sim; venenosa. Gélida, uma temperatura inalcançável para qualquer homem. Senti-me incrivelmente estúpido, a impressão era a de que Ville Valo era um manequim, um novo modelo de ser humano.

A diferença?

Uma perfeição calcada na ausência de sentimentos.

Ele era duro como uma rocha, respirava como se viver fosse apenas uma obrigação, ria como se fosse seu único prazer.

- Frank Iero e Gerard Way. Quarto três.

- É... um prazer... – Essas palavras mal deixaram os lábios de Frank, uma mentira hesitante, com medo de ser descoberta. Que mal tinha? Ele tremia ao meu lado, qualquer um ali era capaz de perceber seu pavor. Ville sorriu. Não era compaixão. Talvez, apetite. Ele tinha olhos desejosos, ambiciosos, e eu esperava sinceramente que não acontecesse o mesmo a mim algum dia.

- O prazer é todo meu. Espero que estejam aproveitando a estadia aqui.

Cada palavra era carregada de rancor.

- Claro que sim, o hotel é magnífico. Embora tenhamos aparecido aqui inesperadamente, nada planejado...

A cada instante admitíamos nossa real natureza, interligadas, mas diferentes na essência. Por quê?

- Sim, o infeliz acidente... Foi realmente trágico, um infortúnio descompensado... Mas ambos estão sãos, certo?

Frank apertava meu braço com seus dedos frágeis, porém com extrema força, e eu sabia que queria ir embora dali o mais rápido possível.

Minhas respostas, entretanto, ainda não haviam mostrado a face.

- Senhores Way, Iero? Aceitam um café?

A recepcionista entreabrira a porta e dirigia-se a nós com sua voz fina e pontiaguda. Compreendi que era a deixa de Frank, mirei-o nos olhos e, embora não pudesse simplesmente mandá-lo fugir, dei a entender que poderia sair se quisesse. Óbvio que quis. Com um último toque em meu ombro, o garoto deixou-me e seguiu Agnes, permitindo que Ville Valo finalmente olhasse para mim como almejava há minutos.

- Então, senhor Way... Gerard. Posso chamá-lo assim, se me permite?

- Não me importo.

O céu nublado jogava raios brancos pela enorme janela envidraçada atrás de Ville. Uma imagem interessante: ele apoiava os dedos singelamente na mesa de cerejeira, vestia seu suéter preto e tinha os cabelos escuros quase a tampar-lhe os olhos, enquanto o branco atrás de si e os olhos cristalinos permitiam-lhe um toque angelical. A cor alva, porém, não transparecia um pingo de paz.

- Você quer respostas.

- Por favor.

- Se não as quisesse, garanto que já teria desaparecido daqui há muito. Ou será que não pareço devidamente assustador para você?

O suor nas minhas mãos me desmascarava, mas eu bem que queria lhe dizer umas mentiras. Ou será que ele não percebia o quão esnobe podia ser? Claro que sim... Mas era verdade, não fossem minhas inúmeras perguntas e eu estaria com meu pequeno, tomando um café com bastante açúcar.

Minha boca estava ficando seca, talvez por eu não saber como começar. Eu em pé, encarando qualquer coisa que não seus olhos vazios, e ele à minha frente, seduzindo-me com sua postura de príncipe, imaginando armadilhas e pregando-me peças com o olhar.

- Diga logo. Sei que não é nada fácil quando começa, e obviamente não vou explicar-lhe muito. Mas um básico, quem sabe.

- O que eu sou? – Pergunta óbvia, pelo menos seria um início.

- Não pode ser mais criativo, não? Por acaso ainda não percebeu que é um vampiro? – Ville desdenhou com um riso mesquinho. Se achava o máximo e judiava de mim porque, querendo ou não, eu parecia um aluno dependente de seus ensinamentos.

- Jura? Quero saber por que isso aconteceu, motivos, consequências...

- Quer saber onde você errou, não é? – Minha respiração travou nesse momento e eu finalmente olhei em seus olhos. Aquilo só acendia mais uma dúvida em meus pensamentos embaralhados. Ville Valo, vampiro. Ville Valo, humano.

Não sabia mais quem olhava para quem, quais palavras saíam de nossas bocas e o que aqueles olhos celestiais queriam me dizer. Apenas ouvi.

- Não é uma história simples, tentarei ser breve... Antes que alguma coisa dê errado. Por favor, sente-se. – Obedeci, meus dedos começavam a formigar de ansiedade. Talvez um pouco de medo, também. O que me garantia que ele diria a verdade? Nada, nem uma pista. Ele poderia jogar-me a mais mal elaborada mentira.

Eu iria agarrar-me a ela até o fim, fosse qual fosse, a mentira ou o fim. Seria eu capaz de morrer?

- Por onde começo? Céus, que complicação. Antes de tudo, você precisa saber que não somos poucos. Somos em grande número, e compensamos isso com extrema discrição. Um humano qualquer não é capaz de perceber-nos com facilidade. – Ele não se sentou. Não, Ville Valo jamais desperdiçaria uma chance de ficar acima de mim, de olhar-me por um ângulo superior. Tudo bem, não iria me incomodar, por mais perto que estivéssemos.

Assimilei a primeira explicação. Vários, então? Só agora eu percebia sua existência, agora que seus olhares tinham significado. O médico, o que estava a minha frente, quantos outros eu iria encontrar pelo caminho?

- Como começou... – Um suspiro prolongado, o vampiro fechou os olhos e me pareceu muito mais bonito do que antes. Seria uma pequena demonstração de humanidade? - Você acredita em reencarnação, Gerard?

A pergunta me pegou de surpresa, já que estava predisposto apenas a ouvir. Ademais, não esperava algo desse calibre – reencarnação? Qual era o sentido de suas palavras?

- Não até agora... Pelo visto deveria acreditar, não?

- Sim, é o mínimo necessário para aceitar sua origem. Ser vampiro é a prova clara de que você viveu outras vidas. Ser vampiro nada mais é do que... Como dizer? – Ele parou por um tempo, medindo mentalmente as palavras. Tive medo do que viria a seguir. Algo grande, algo realmente impressionante? Ou uma bobeira qualquer, uma natureza infundada, um mero acaso do destino? – Uma segunda chance bem má concedida.

Pensei. Segunda chance? Palavras vazias para mim. Segunda chance de viver? Ser um vampiro era exatamente o mesmo que reencarnar? “Má concedida”, seria nossa maldição?

- Pelo visto, você não é o tipo de criatura exatamente religiosa. Deixe-me esclarecer um pouco. Deus existe. – Ele havia aproximado seu rosto e eu procurei brevemente por presas, porém logo ele puxava meu olhar para si, atraía minha atenção para as grutas inundadas que eram suas íris. – Deus existe, e foi extremamente avarento ao conceder-nos uma nova chance. Qualquer deslize pode ser fatal. Qualquer ato pode arrancar-nos a humanidade. E o amor, nossa única busca... É o maior crime que uma criatura como nós comete, sempre.

Estava tão vidrado em seus olhos que não notei a proximidade de nossos rostos. Em transe. Só quando seu hálito doentio arrastou-se pela minha pele que eu despertei, virei urgentemente minha face e levantei uma das mãos, como pedisse distância. Se ele viesse, eu o seguraria de alguma forma (exatamente qual, eu não sabia).

Ville afastou-se, a pele pálida com expressões de total asco. Por um acaso, era ele que tinha nojo de mim? Cínico. Enjoei-me só de olhar novamente para sua boca, e saí sem me preocupar com despedidas. Vi-o virando-se para a enorme janela, e só.

Explicações? Creio que Ville Valo perdeu-se muito antes de levar o assunto a sério. Seu poder de sedução era incrível, e por um momento eu também estive fora do rumo, seguindo para suas mãos, banhado pelo mar de seus olhos. Não iria acontecer de novo, prometi a mim mesmo.

- Gerard! – Frank veio, ao longe, relativamente devagar, com uma pequena xícara de café nas mãos. Agradeci por ele estar bem e por ter deixado-me sozinho ao lidar com aquele demônio.

- Desculpa a demora.

- Sobre o que vocês conversaram?

- Bobeiras. Elogiei a pousada e quis saber se ia ter algum evento por esses dias... – Não me repreenda, você começou a mentir muito antes de mim.

- E o que ele disse?

- Ah, ele iria pensar. Cara estranho, né?

- Muito. Sei que é falta de educação, mas não gosto dele... – Frank abaixou um pouco a cabeça com essa fala, notei a vergonha do pequeno.

- Fazer o quê? É melhor ficar longe mesmo, vai que o cara é algum tipo de maluco. Também vou evitá-lo um pouco mais.

A conversa cessou e eu voltei a pensar em suas frases. Minhas dúvidas permaneceriam por mais tempo do que imaginara, aquilo iria demorar. Só sabia que já fora o Gerard de outra vida, e que o amor seria capaz de me destruir... Frank me mataria?

Impossível. Pelo menos, não morreria sem que ele soubesse de tudo o que sinto.

- Ah, você queria, não é? – O moreno falou, entregando-me a xícara de café. – Com bastante açúcar.

Fiquei curioso. Olhei-o com um sorriso, perguntando-me como ele sabia.

- Ué, naquela hora em que você me olhou. Você não estava pedindo um café?

Frank Iero... E eu pensava que estava sozinho nisso tudo.

- Obrigado, Fran.