“O corpo humano
É desumano
O corpo amado
É desalmado
Tudo é pecado”

“Pecado”, Ira!

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Era uma pura questão de lógica, sem gráficos ou logaritmos. Pura percepção. Havia eu e um Frank adormecido. Havia vampiros, sangue e desejo. Havia o horror.

- Entendeu, não é, caro Way?

Completamente desprezível, como sempre.

- Por que eu acreditaria em você, se a única coisa que sai de sua boca é mentira? – Meus olhos apertavam-se e minha tentativa de parecer forte beirava o hilário. Minhas pernas tremiam, minhas mãos também, e meu sangue escorria pelo corpo de Frank.

Minhas palavras eram carregadas de ódio; as de Valo, viciavam-se de libido.

- Porque Ville Valo não costuma brincar em serviço. Um dos dois tem de morrer...

“E tem de ser agora”.

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Eu ainda estava num estado ligeiramente fora de mim, mas aos poucos o olhar obtinha clareza e o cérebro concentrava-se com mais facilidade. Já podia perceber a situação em que nos encontrávamos. Espaçávamo-nos no carro luxuoso daquele estranho desconhecido: o ar condicionado, os bancos de couro, o conforto exacerbado, tudo me dava uma ideia relativa do quão esnobe aquele homem era. Sem contar com seu olhar. Vou mais além: sem contar o cheiro impregnado, o nojento aroma de sangue azedo, nada discreto, que parecia colar-se a minhas hemácias e retirar-me a energia do corpo. Poluía cada canto do carro, poluindo também os passageiros, reflexo de uma luxúria incabível. Mulheres, homens, crianças, velhos, vampiros e cheiros desconhecidos – tudo passara por aqueles bancos de couro, e agora nos transmitiam (a mim e a Frank) cada uma de suas experiências. Nojo. Felicidade. Desgraça. Prazer.

Medo?

Pois justamente a meu lado havia a prova de sua presença. Frank demonstrava esse último sentimento à flor da pele, aumentando em exata proporção com o velocímetro do carro. Corríamos numa velocidade muito maior do que o permitido naquela estradinha mixuruca. E aquela criança tola, cega por pavor, não enxergava a óbvia provocação, o sorriso escancarado daquele motorista inconsequente. Senti meu ódio despertar, misturado à amarga sensação de impotência.

- Vamos ficar por aqui. – Ousei. Para a segunda frase que emitia para aquele homem, não era exatamente o esperado. Mas minha educação sumira no instante em que os atos manipuladores e vis resolveram afetar-nos. Ou seja, desde a inoportuna oferta de carona. Hesitei, mas mantive a expressão séria e a voz firme ao máximo.

- Aqui? E como irão voltar? – Zombou o indivíduo sem nome ou escrúpulos.

- A pé. Não precisa se preocupar. – Não que eu quisesse brincar, mas havia outro jeito? Em meus instintos também há essa mesma hostilidade cínica, vampiro. Vi-o olhar para mim, vi-o imaginando como seria bom avançar imediatamente sobre meu pescoço. Ele gostava muito dessa ideia. Porém, vi-o pensar duas vezes, medir seu conforto naquele carro luxuoso, e desistir da ideia. Quem diria que a exacerbada preguiça daquele homem me salvaria. Como quase acontecera antes, quando ele quase passara direto por duas vítimas à beira da estrada.

Não fosse por Frank e sua inocência, incapaz de reparar na malícia daquele sorriso, e nós dois estaríamos bem. Pelo menos, não estaríamos presos nessa armadilha.

- Mas eu me preocupo. É de minha natureza. – O medidor continuava a subir, e eu ouvi um apito breve indicando a falta de gasolina no tanque do carro (que mais parecia uma limusine). Frank iria surtar, não era possível. – Vou te contar uma coisa, posso? – Nesse momento, sua voz tornou-se um sussurro. – O que acha que vai acontecer se você voltar ao mesmo lugar, acompanhado pela mesma pessoa, tendo as mesmas sensações de quando ele apareceu? Pois não acho que seja capaz de controlar seus instintos nessas condições... Para falar a verdade, sua incapacidade é até óbvia demais.

Absorvi cada palavra contra minha vontade e lembrei-me daquele medo que senti. Medo em maiúsculas. MEDO. Puro e apavorante só por sua sonoridade. Ser controlado à força bruta, instinto apagando vestígios quaisquer de razão, forçando-me à submissão. Eu lembrava bem o momento. Minha visão confundiu-se no vasto espectro de cores, foi-se tornando preto no branco, até que tudo escureceu com uma brecha de fria brisa. Até o momento em que não havia luz, percepção ou som.

Somente medo, instintivo e primitivo.

Medo do escuro e dos monstros que nele havia.

O tempo e o espaço desapareceram das noções de meu organismo. A força que eu fazia, entretanto, contrastava-se com meu desespero e tendia a aumentar em progressão geométrica; o esforço doía-me a mente e a esperança, e a necessidade de existir... tomava-me de corpo e alma. Quanto mais a água te puxa para baixo e arrebenta seus pulmões, mais alto grita a necessidade de sobrevivência. Você sequer tem noção do suicídio, porque não é a razão que lhe comanda nesse momento:

É o instinto.

E no meu caso, uma guerra desses soldadinhos inatos deflagrava-se em meu interior. Sobrevivência e monstruosidade. Humano e vampiro lutavam fervorosamente, doendo-me até as tripas.

Infelizmente, era o pobre mortal que punha a vida em risco.

- Se já dói assim, imagine quando entrar na fase de transição. Então, faça-me o favor e fique calado, no seu canto, pode ser? – O vampiro emendou, ainda com seu sibilar macabro.

E eu pergunto-te:

O que eu poderia fazer?

O nariz apontava para cima, o que comprovava sua autoconfiança excessiva. Convencido. Olhar superior. Palavras dirigidas a um subalterno qualquer. Orgulhoso de cada gesto, seguro de si, mesmo ciente de seus atos vis... Calei-me. Era incapaz de lidar com tamanho egocentrismo, ou com tamanha verdade, não era uma questão de grande importância.

Por outro lado, um Frank vulnerável agora gemia logo a minha esquerda, orando em sussurros. Pensei em desculpar-me, mas meu sopro de ar não passava dos bronquíolos... Graças a minha excepcional fraqueza, ele sofria, mais uma vez. Ciclos malditos, os quais eu era covarde demais para quebrar. Queria pô-lo para dormir e fazê-lo sonhar, enquanto eu só podia afagar seus cabelos e averiguar seus calafrios entregues ao medo.

Só quando ouvimos o “chegamos” e vimos a placa em frente é que os músculos finalmente se relaxaram – refiro-me aos de Frank. Os meus contraíam-se ainda, causando-me um incômodo constante. Tinha pensado que dobrar à esquerda seria o suficiente para acabar com meu mau pressentimento, no entanto ele insistia em maltratar-me.

O que diabos viria a seguir?

Havia um bonito portal, em pedra bruta e detalhes em cores, semelhantes a jóias, à nossa frente. A região, contaram-me, era dominada por ricos pirados, latifundiários oligárquicos atrás das famosas jazidas de pedras preciosas, e por isso era tão pouco habitada. Os poucos pontos de lazer eram voltados ao turismo, e a praça que no dia visitávamos era um desses. Perguntei-me o que nós fazíamos ali, perdidos no meio daquela elite asquerosa, porque se não eram vampiros eram humanos tão nojentos quanto.

O vampiro saiu antes de nós, sem sequer se importar conosco, e logo Frank abandonava também os bancos de couro. Fui o último, e demorei-me ainda mais por ver meu amado no caminho, sorridente e agora tranquilo. Fazia um dia incrivelmente fresco, a brisa balançava-lhe os cabelos, transformava-o numa delicada pluma. Ele irradiava uma singela luz, a seu modo, chamada felicidade; apoiava-se no ar como se apóia em uma pessoa querida, e adorava essa harmonia.

A cena era capaz de encher-me de paz, nem que fosse por um breve momento. Sorri, pelo que talvez fosse a primeira vez no dia. O cheiro de eucalipto veio-me ao nariz e, embora eu o sentisse a cada instante naquele deserto social, dessa vez tinha um quê de diferente que me apaziguou.

- Um centro cultural? Aqui? – O pequeno encarava a placa, entalhada com algumas ametistas e outras pedrinhas esverdeadas (esperava profundamente que fossem réplicas, mas não duvidava de mais nada), que dizia “Mist’s Tormentor”.

- O nível dessa região é outro...

- É mesmo. Vamos entrar e comer? – Frank apertava a barriga como uma criança, fazendo graça.

- Já tá com fome? Você não se lembra do que comeu no café da manhã, não? – Não era possível que ele já tivesse digerido aquilo tudo. Afinal, se o seu metabolismo fosse assim tão rápido, com certeza Frank não teria seus 1,64m de altura.

- Claro que estou com fome, oras. Você não aguenta nem um sorvete? – Ele me olhou com aquela carinha triste de decepção, irresistível. Mal sabia que eu também tinha fome, como não poderia tê-la frente a um ser tão delicioso?

Fome de ti, Frank. Porém, insaciável, se não às custas de sangue e desgraça. A minha é muito maior que uma mera necessidade humana: é carne, é dor, é gula. Meu segundo nome deveria ser pecado. Se agora olho para um homem, um amigo especial, desejando cada pedaço de seu espírito e corpo, então meu segundo nome deveria mesmo ser pecado.

E o fato de eu ter consciência disso e ser incapaz de lutar só reforça essa ideia.

Entramos: fileiras de casinhas em madeira estendiam-se às margens de uma praça central, intimidante com suas esculturas em ébano e pedra bruta. Havia bancos discretos espalhados em frente aos restaurantes, às lojas de lembrancinhas e ao redor do lindo chafariz no meio da praça. E havia vida. Em poucos números, é verdade, mas eu via aquelas pessoas sorrindo e conversando e entrelaçando as mãos, forçando minha cabeça a aceitar que, realmente, ali estava a prova de que a humanidade existia em algum lugar. Tanto dentro, quanto fora de mim. Procurei pelo vampiro e não o encontrei.

- Vamos tomar um sorvete, então.

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Optamos por dois Yogen Früz, um de morango para Frank e outro de floresta negra para mim. O pequeno me esperava sentado perto do chafariz, xeretando as lojinhas ali perto. Eu pagava pelos iogurtes congelados enquanto o observava. Enquanto alguém também me observava.

- Valo sabe que estão aqui?

Assustei-me com a voz que veio de trás, virando rápido. O motorista vampiro tinha pura malícia no olhar, e sua aura parecia um tanto quanto mais traquinas. Não esperava encontrá-lo ali, tão logo. Ele parecia impaciente.

- Não creio.

Minha voz soava seca por puro ódio, embora a dele escorregasse e se contorcesse com facilidade. Resolvi manter distância e evitar qualquer distensão da conversa. Já bastava.

- Que bom que o maldito não sabe ainda... – Falou baixo e logo pôs a mão na boca. Sua língua parecia emitir a palavra “Valo” com extremo desgosto, contra sua vontade. Não era ódio. Podia até ser um pouco de raiva, mas, para mim, parecia outra coisa...

- Por que você tenta esconder sua admiração por Ville Valo em palavras tão afiadas?

Saiu tudo de uma vez, porque não fora eu quem falara. Fora meu lado vampírico assumindo o controle de meu corpo mais uma vez, breve, com um ímpeto absurdamente forte.

Fora meu lado vampírico tentando acabar comigo mais uma vez.

Porque o olhar daquele homem foi tão absurdamente perfurante, e um de seus lábios começou a sangrar, e então eu percebi a merda em que tinha me metido.

- Admiração? – A palavra saíra de forma pausada, para ecoar pelas paredes e atingir-me em cheio. Admiração. Mas que porra que eu tinha falado. Depois, resolvi ficar quieto.

Ele veio andando para mim, e eu fui fugindo para trás. Ambos devagar. Vi-o jogar a chave do carro no chão, deixando a mão direita livre. Também só vi isso. Em menos de dois segundos o vampiro avançara para cima de mim, enforcara-me, toda sua ira convertida em força demoníaca. Toda sua ira como prelúdio de minha morte.

Forte demais... O ar faltava-me, eu ofegava, ele berrava quaisquer coisas no meio da sorveteria. Eu já estava fora do chão, meus pés chutavam-no e não surtiam efeito algum. Não entendia suas palavras. Vi Frank chegando-se, com berros tão altos quanto os do meu futuro algoz. Porém, tudo se confundia, e ficava escuro, doendo exatamente como quando meu vampiro interior debatia-se dentro de mim...

E afrouxou-se. Caí sem forças, desmoronando para cima de meu pé esquerdo e sentindo ainda mais dor. Agora sim estava tudo perdido, ele me soltara para dar o último golpe. Eu sequer poderia me mexer com esse pé esdrúxulo. De cabeça curvada àquele ser medíocre, eu aguardava o momento derradeiro, sem estar preparado. Acho que nunca o estaria, na realidade, para a morte.

Mas nada aconteceu. Conforme o oxigênio veio voltando, os berros começaram a fazer sentido, a visão voltou e eu adquiria minha consciência. Levantei a cabeça.

Ville Valo tinha as unhas afiadas no pescoço do outro vampiro, no que quase seria a mesma posição em que eu estivera há poucos segundos, não fossem a classe e a frieza de Valo. O sangue escorria com pouca vazão do corte raso feito no pescoço da vítima. O medo estava estampado em sua face e ele tampouco conseguia fazer algo para fugir daquele destino.

Frank estava ali atrás, aparentemente desmaiado, longe do campo de batalha. Aquela cena, de meu pequeno desprotegido em meio ao tamanho caos, foi o suficiente para fazer-me levantar, de modo um tanto quanto tosco, admito. Mas ali estava eu, de pé – e completamente ignorado diante daqueles dois monstros. Só pude ouvir suas palavras.

- White, você sabe muito bem que ele não mentiu. O vampirinho aí não é tão burro... – A força das unhas fazia-o gemer, eram tão afiadas quanto as presas do homem. Rasgavam-lhe a pele com violência e puro prazer. – Embora seja muito mais inveja propriamente dita do que admiração. Você deseja mais do que tudo nesse mundo ser igual a mim.

- MENTIRA! UM MONSTRO... AAAHH! – Entre os berros estavam as acusações, em voz falha e hesitante.

- Você também é um monstro, seu hipócrita. Eu só sou muito mais bem sucedido do que você. A maldição não me é nada. – Sangue vazava e, agora, outros ao nosso redor aproximavam-se. Os humanos fugiam; os vampiros lambiam os lábios, mirando o tal White, Frank e a mim mesmo. O circo estava montado. Ville Valo soltava suas atrações.

- Eu nunca... quis ser... – A mão cortou-o de tal maneira que os olhos viraram. Os berros eram insanos, doíam-me os ouvidos, deixavam-me horrorizado. O pior disso tudo era o prazer louco na cara de Valo. O sorriso era de lado a lado, os olhos arregalavam-se com as sobrancelhas franzidas. As presas apareciam, no meio daquela expressão facial bizarra. Um monstro sedento, essencialmente sádico, que jogava o corpo do “companheiro” longe.

- Você nunca quis ser um vampiro. Mas você era. Por que não aproveitar um pouco, White?

Palavras dirigidas a um morto. Ou talvez fossem até para mim. Os vampiros aplaudiram, ovacionaram, estavam tão loucos com aquela demonstração de força e loucura que pareciam dispostos a avançar sobre nós a qualquer momento. Corri como pude até Frank. E então Ville Valo virou-se para mim.

- Daqui a um tempo... Você também vai sentir-se como nós. A mesma maldição vai lhe pegar, também. – Ele sorria com êxtase e satisfação. Não entendia nada do que ele falava, e provavelmente era essa a razão de sua alegria. – Você vai perder a única coisa que lhe é importante, e vai sucumbir aos desejos da carne e do ser. Os instintos. E então... Vai ser muito engraçado!

Eu mesmo estava sujo de sangue e via toda a ganância de seu olhar. Aquele era Ville Valo cru, sua verdadeira face. Morto de desejo. Pecado vivo. Ele insistia que eu me tornaria aquilo, e eu não captava a ideia.

- Entendeu, não é, caro Way?

Completamente desprezível, como sempre.

- Por que eu acreditaria em você, se a única coisa que sai de sua boca é mentira? – Meus olhos apertavam-se e minha tentativa de parecer forte beirava o hilário. Minhas pernas tremiam, minhas mãos também, e meu sangue escorria pelo corpo de Frank.

Minhas palavras eram carregadas de ódio; as de Valo, viciavam-se de libido.

- Porque Ville Valo não costuma brincar em serviço. Um dos dois tem de morrer...

“E tem de ser agora”.

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