Bleed For Me

III - Agulhas e hóspedes.


Lentamente, o frio abria meus olhos novamente. A respiração ardeu minhas narinas, um ar seco, negro e longínquo. Que penetrava dentro de mim junto com um cheiro conhecido. Mofo? Com uma pontinha de um perfume saborosíssimo, o mesmo que invadia meus sonhos insanos.

Até que enfim eu estava vivo de novo.

Soterrado debaixo de dois grossos cobertores, perdido em lembranças indefinidas, cuja ordem cronológica eu não me recordava. Sinceramente, poucos eram os momentos que faziam algum sentido em minha mente.

Só me lembrava de seus olhos cristalinos na noite escura.

Claros e assustados.

Refletindo o sangue dos meus desejos.

Eu completamente bêbado de vontade nessa madrugada, sem perceber o que acontecia no mundo que rodava à minha volta. Tudo parecia ainda mais confuso, e eu, mais incapaz. Incapaz de compreender, de te salvar?

Porque sugar sangue, eu podia sentir em minhas veias que isto eu poderia fazer de olhos fechados. Bastava eu permitir que minhas presas se vendassem com seu pescoço.

Mas eu lembrava de uma voz suave. Um canto, uma doce canção de ninar. Mesmo desesperada, sua voz jamais passará de doce licor para mim, de sabor diferente a outra bebida que circula em suas artérias. A vermelhidão que me atormenta e a brisa suave cor de vento que a arrasta embora. Um equilíbrio notório, hein?

Espreguicei-me, ainda fraco. Tentei respirar melhor, embora duas pernas dormentes prendessem meu peito ao colchão.

- Isso é jeito de me receber, seu cretino? – Os pés tamanho trinta e seis dispostos em harmonia sobre meu peito. Aconchegados nas meias azul-bebê, de acordo com o cachecol azul-marinho protegendo seu pescoço. Ele parecia uma delicada obra-prima, esquivando-se do frio com peças de roupa tão singelas como sua pele clara. As mãos cobertas pelas luvas de esqueleto. A pequena boca, agora quieta, entreaberta.

Não resisti, mesmo, àquelas calças de boca larga. Arranhei sua pele aquecida por debaixo dos tecidos vagarosamente, gostando de saber que ele continuava tão doce como minhas memórias informavam-me.

- Acorda, Frank. To com fome, mereço comer na cama.

- Huum... Quê? Comer na cama? – Ele mesmo riu, estendendo os braços ao teto e contraindo a boca em um bico gordo. Seus olhos estavam tão sorridentes que o frio não parecia incomodar tanto, agora. – Há quanto tempo eu não falava “Bom dia, Gee”.

- Tanto tempo assim? – Olhei a agulha que injetava algum tipo de soro em minha veia, e senti meus dedos do pé completamente dormentes. Desviei o olhar antes que a pressão fizesse o sol da janela me retardar. – Que dia é hoje? E... – O acidente.

O maldito acidente, as malditas memórias, aquele sofrimento desgraçado que eu sentia desde o começo de meus pesadelos começou a me apavorar novamente.

- Foi há quatro dias. Você me levou para a casa de um fazendeiro... Ele cuidou de nós, creio que dormimos por dois dias. Depois, eu acordei, e te trouxe para esse hotel. A enfermeira vem aqui de duas em duas horas. E você... Você ficou em um estado muito parecido com coma... Durante esse tempo... – Foi quando sua voz começou a transformar-se em um sussurro. A alegria de me ver acordado tornou-se agonia por rever suas memórias. Meu Deus, eu tinha esquecido o quão importante você era para mim.

Só relembrei qual era a sensação de te reencontrar quando te abracei, depois de dias dormindo, depois de noites sonhadas. Antes que seus olhos despejassem lágrimas tristonhas por sua face tão bonita, envolvi-o fortemente em meus braços, buscando saciar sua tristeza.

- Eu não quero acordar e te ver chorando, Fran.

Ele calou sua respiração pesada. Eu não queria consolá-lo com palavras, só queria ficar daquele jeito mais um pouco.

Isso quer dizer que eu o amo?

Mal me lembro o que ele significava para mim antes de envolvê-lo em meus braços no meio do acidente. E logo você tinha um vermelho vívido respingado em seu rosto, atraindo a atenção de meu ímpeto, provocando minhas presas recém-nascidas. Dentes afiados como os cacos de vidro em minhas costas, lutando contra meu coração, almejando arrebentar suas veias e sorver de todo seu banquete ensangüentado.

Que vontade absurda. Que ser patético.

Por acaso ainda sou humano?

- Gerard? – Despertei do choque, um pouco assustado ao lembrar que eu me encontrava no quarto, e não em meio às pedras com o sangue descendo por minha pele. Olhei para Frank, ao que ele me apontou um homem de jaleco e olhos extremamente penosos. E um cabelo castanho tão oleoso quanto alguém poderia permitir.

- Olha só quem acordou! – Bem... Ok, é um daqueles médicos. Imbecil, grudento e...

Na maioria dos casos, gay.

- Até que enfim posso ver meu paciente de olhos abertos! E... Que olhos, hein? – Ele deu uma risadinha. Deu uma risadinha. Eu já estava começando a ficar nervoso.

- Pois é, né... Era o mínimo que eu podia fazer, depois de lhe prender por três dias aqui, quando você podia, sei lá... Estar cuidando de pessoas mais... Bem-aproveitadas. – O meu olhar foi tão cínico que o médico percebeu na hora a que eu me referia. Só o Frank ficou meio alienado.

Aqueles olhos, antes melosos e infantis, viraram para mim com uma força incrível. Desumana. O que antes me inspirava nojo, agora insinuava uma familiaridade. As íris de seus olhos pareciam refletir afiados pedregulhos. E a expressão sádica em seu rosto tinha a vontade de tacá-los em cima de mim.

- Na verdade, você dormiu menos do que eu esperava. – Por acaso isso significa que o médico me queria dormindo para sempre? – Foi um acidente gravíssimo. O carro está em destroços. É um milagre você estar acordado e ele não ter quase nenhum ferimento.

Milagre? Eu vi como seus olhos perderam o brilho quando você pronunciou essa palavra. Você, que compreende meu sofrimento, que traduz com facilidade os desejos de meu instinto. Você, vampiro, sabe que não tem milagre algum à sua frente. Sobreviver foi apenas mais um erro nosso.

Estarmos vivos só vai ampliar nosso sofrimento, isso me era tão claro que o próprio médico não precisava ter apertado meu ombro.

- Por quanto tempo vou ficar deitado? – Resolvi mudar de assunto, já que Frank não entendia nada e, por isso mesmo, parecia mais preocupado e absorto em pensamentos.

- Deixe-me checar os ferimentos. Talvez não precise ficar de cama por mais de uma noite ou duas. Além do mais, nem no hospital você precisou ficar, que sorte a sua.

Só então percebi o tratamento preferencial; era verdade, por que diabos não me puseram num hospital? Não somente eu permaneci em um quarto (aparentemente de hotel), como havia um médico exclusivo para mim. Tantos monopólios instigaram-me, e olhei para Frank rapidamente, à procura de umas respostas. Ele apenas balançou a cabeça em negativo, parecendo também confuso.

- Não se preocupe. – O médico agora me enfiava outra agulha e senti minha pressão caindo. Um calafrio percorreu meu corpo e, por “não se preocupe”, eu entendi que o doutor referia-se ao procedimento médico. Porém, aparentemente, ele se referia a mais alguma coisa. – As respostas ainda virão. Você deveria falar com o dono da pousada, sr. Ville Valo. Ele é a pessoa mais indicada para saciar sua curiosidade. E isso... – O doutor apontou para o frasquinho cheio de sangue em seus dedos. – Será de imensa utilidade. Agora posso deixá-los a sós, e você, Gerard, descanse.

Por incrível que pareça, passei a gostar um pouco mais do médico com essas palavras. Agradeci a atenção e não olhei para Frank até que a porta se fechasse. Só então pude perceber que ele estava mais concentrado nos próprios pés do que em mim.

- Ele parece um bom médico.

- Sim.

- Você realmente está bem, sem ferimentos?

- Aham. Apenas alguns pontos no ombro e no joelho. Nada demais.

- Eu sei que seria muito melhor evitarmos isso, mas preciso saber algumas coisas. Você entende?

Frank finalmente olhou para mim, com a luz fria do inverno se desviando das cortinas amarelas e atingindo sua pele arranhada. Nesse momento, senti como se os cobertores pesassem o triplo do que antes, mas mantive o contato. Era compreensível a vulnerabilidade do garoto. Até meus braços e pernas tremiam. Enquanto uma pessoa normal morreria em poucos segundos num acidente de tamanha gravidade, nós dois respirávamos o ar gelado do quarto de madeira, e ainda por cima pouco sentíamos dor.

Não, nesses casos o problema não são as consequências físicas. São as sequelas no coração.

Frank ficou mudo diante de minha pergunta. Falta de respostas e falta de coragem possuem muito mais semelhanças do que imaginamos.

- Gee, eu tô tão confuso quanto você. Não tenho ideia do que aconteceu, minha mente parece um borrão e estou com dor de cabeça... Mas eu queria dizer... Obrigado.

É como? O médico não comentou nada sobre perturbações mentais.

- Obrigado? Obrigado pelo quê, sendo que fui eu o culpado de tudo isso? Eu nunca estive tão arrependido em toda minha vida, Fran.

- Você não foi o culpado, Gee, sabe disso. Não é um consolo, é a verdade. Aquela minha distração poderia ter nos matado e, se você não tivesse me protegido... Óbvio que eu estaria em pedaços, agora. Então...

- Pode parar, Frank. Não preciso ouvir isso.

- Não, é sério. Eu queria te agradecer mesmo. Então... – Frank olhou-me nos olhos mais uma vez, agora parecendo mais leve e com ideias na cabeça. – Poderíamos ficar aqui, já que nosso destino foi alterado, né? Tudo por minha conta.

O fato de Frank estar me agradecendo com toda sua honestidade me comoveu, obviamente. Mas apenas seu balançar na cadeira já me deixara infinitamente mais feliz. Talvez não fosse de todo ruim, sabe. Talvez nós dois tivéssemos força e vontade de mudar o destino.

Mais uma vez, quem sabe?