Draco afastou uma mecha loira do cabelo do filho e pôde admirar melhor seu rostinho cansado enquanto dormia.

Scorpius estava constantemente fatigado, um tanto amarelado e com olheiras roxas embaixo dos olhos, uma tez muito injusta para uma criança de apenas seis anos. Vê-lo dormir, entretanto, dava a impressão ao pai do garoto de que ele era tão saudável quanto qualquer menino de sua idade e tirava somente um cochilo depois de um dia denso de brincadeiras e correria.

Draco não gostava de acreditar em carma, em lei do retorno ou em qualquer coisa mística de cunho fatalístico. Ele não tinha religião, não rezava aos domingos ou sequer pedia a Deus pela melhora do seu único filho diagnosticado com câncer no sangue seis meses antes. Ele se afastava de toda a forma de fé e todo conceito que o levasse a crer que os problemas da criança tivessem haver com alguma sina e somente um ser onipotente e onipresente, mas muito seletivo em sua benção, o ajudaria.

Ele odiava tudo isso.

Corroborar com algum desses argumentos ou recorrer a espiritualidade era uma forma de ressuscitar os preceitos tórpidos de Lúcio Malfoy. Fazia o Draco adulto se lembrar dos fiéis no templo implorando pela cura de suas desgraças pessoais a alguém que supostamente estava em contato com Deus, mas que era a própria definição do homem corrompido, em casa.

Hoje, quinze anos após se livrar das garras do pai, Draco ainda era incapaz de superar suas raivas e tristezas em relação aquela parte da vida e não estava disposto a deixar que levassem Scorpius para alguma esquisitice de cura espiritual como Astoria volta e meia insistia… e até fazia as escondidas.

Astoria… sua doce e bela esposa que envelhecera dez anos em apenas seis meses com o sofrimento do filho, neste momento dormindo um sono agitado na poltrona ao lado da cama dele.

Ela nunca mais fora capaz de se arrumar bem, vestir um pijama decente e confortável ou pensar no trabalho que tanto amava depois do diagnóstico do garoto. Ela vivia em um limbo enevoado, aguardando por algo impossível ou esperando para desistir de vez de si mesma caso Scorpius não se curasse.

Draco deixou a esposa e o filho dormindo no quarto principal da casa, haviam tomado a decisão de não deixar o menino no hospital já que não existia razão para enclausurá-lo em ambiente tão deprimente sem a cura definitiva à vista, e encaminhou-se para a cozinha.

Eles moravam num das regiões mais belas do Canadá e da América, numa casa toda planejada e encarrapitada nos picos da cordilheira Rocky Mountains, ao redor de uma província relativamente moderna. A residência fora arquitetada por Astoria e a engenharia produzida por Draco. Eles construíram aquele lugar com seus talentos profissionais e bom gosto, unidos e apaixonados, e amavam estar ali. Amavam estar na cozinha tomando uma boa xícara de café e observando o bosque vale abaixo pelas paredes envidraçadas e resistentes.

Ele tratou de repetir o ritual. Com o café recém-passado da cafeteira, Malfoy sentou-se no banquinho em frente a bancada que faziam seus cafés da manhã – alegres e distantes cafés da manhã – e se pôs a olhar para paisagem privilegiada lá fora.

Embora as colinas ao longe estivessem verdejantes em pleno outono e o céu azul-celeste encantador, as coisas mais perturbadoras passavam por sua mente quando sozinho. Tentou imaginar, numa contagem regressiva mórbida, por quanto ainda Scorpius teria a chance de morar em um mundo que proporcionava uma paisagem tão bela.

E como ele e Astoria ficariam depois que ele partisse. Se veriam beleza naquilo também…

O casamento acabaria, disso ele tinha certeza. Era assim que acontecia com a maioria dos casais, não importava o amor de antes. Era sempre doloroso olhar para seu cônjuge e relembrar a vida que tiveram juntos… O filho que tiveram juntos, que possuíra traços físicos e manias dos dois, e que agora não os pertencia mais.

O médico fora o mais pessimista possível. Sem transplante de medula as chances do menino beiravam a zero.

Ele tentou doar sua medula. Astoria tentou. Os dois foram aos confins da Europa para encontrar pais e irmão dela e convencê-los a doar. Draco engoliu todo seu orgulho e mágoa e pediu para seus pais com quem não conversa há, pelo menos, quinze anos, para doarem. Um longo caminho de humilhações e que no fim não valeu de nada. Todos incompatíveis com o moribundo infante.

Novamente aquilo voltava a abatê-lo. O aquilo que ele insistia em não acreditar, mas teimava em filtrar-se cérebro adentro dizendo que era isso sim! Draco Malfoy foi uma criança e um adolescente desprezível. Maltratou iguais, debochou dos mais fracos. Ele fez colegas de classe comerem bosta de cachorro no mato e ajudou a cortar a barriga Neville Longbottom como a de um porco… O patético e vulnerável Longbottom, mas ainda assim uma pessoa… Um menino com pais…

Mas por que mesmo estava se lembrando disso?

Ah sim, porque uma pessoa muito inusitada em sua vida, seu passado na forma mais crua de ser, havia ligado mais cedo e cobrado uma promessa.

Aquilo era loucura! Seu filho morrendo aos seis anos e um imbecil que conheceu quando tinha quatorze exigindo que ele voltasse para Twinbrook, cidadezinha amaldiçoada no meio do nada, para cumprir um suposto pacto feito depois que eles saíram dos esgotos tendo alucinações.

“Black Annis voltou”

Por que eles haviam chamado aquilo de Black Annis? Que porcaria de nome fora aquele? E a Coisa era mesmo real ou um homem de carne e osso matava crianças naquela época? Como seus amigos, os destemidos e brigões Crabbe e Goyle, foram se meter com aquilo? Como ele acabou se unindo aos mais esquisitos garotos daquele ano para matar algo vestido de palhaço que atacava os vulneráveis dali? CO-MO?

E por que toda essa lembrança o irritava?

Não porque o fazia se recordar do Clube dos Perdedores… Não isso. Eles eram crianças deslocadas e Draco um babaca o tempo todo que conseguia. Não porque ele se forçava a desacreditar que o sobrenatural um dia passou por ele. Não porque uma mão estúpida, uma parte da anatomia humana que até nos seus dias de adulto penetrava seus pesadelos mais insanos, o atacara com intuito de matar… Não isso.

Irritava que Twinbrook remetia-lhe ao pai e a raiva que ele sentia por aquele homem. O sentimento era tão intenso que a mão que segurava a xícara de café agora chegou a fechar-se firme sobre o objeto de porcelana relembrando a expressão que Lúcio fizera: o sorrisinho escroto que ele quase viu se formando nos lábios daquele tal quando Draco lhe disse que precisaria dele para tentar salvar o próprio neto.

A atitude necessária se tornou a deixa para que Lúcio passasse o mês seguinte tentando estabelecer algum contato com o filho. Finalmente querendo ganhá-lo com assuntos frívolos e desejos de perdão impossíveis na sua grande cara cínica e filha de uma mãe!

Fazia só algum tempo que ele conseguira fechar de vez o canal supurado com o patriarca castrador de outrora para agora Harry Potter, o Zarolho Potter, fazer uma ligação pedindo seu retorno à cidade que tanto o lembrava da época em que morava com Lúcio.

Pai ─ Scorpius surgiu no meio da cozinha coçando os olhos sonolentos.

Filho, você não está com frio? ─ Draco deixou a xícara de café de lado e pegou o menino, as pernas cumpridas apesar da doença, no colo.

Não, estou bem ─ ele respondeu com ar de maturidade.

Mesmo a medicina levando as esperanças de ver seu filho crescer embora, ele imaginava Scorpius como alguém maduro e centrado quando mais adulto. Ele o chamava de “pai” e a Astoria de “mãe” de um jeito prático e definitivo e quase nunca chorava ou se assustava com o que metia medo em outras crianças.

─ O que houve então? Quer comer algo? Está com fome? ─ alimentá-lo era outro suplício. Nas poucas vezes que tinha fome, a alimentação tinha de ser regrada e cuidadosa porque tudo podia provocar vômitos e diarreias nele. Nem as batatinhas frita que tanto adorava entravam neste regime forçado.

Scorpius apenas balançou a cabeça. Draco carregou o menino até a janela porque queria que ele tomasse um pouco de luz do sol.

─ Você quer melhorar logo pra gente poder brincar no bosque ali embaixo, não quer?

─ Sim… ─ o filho anuiu ─ Do que seria?

─ Ah, do que você quiser. A gente não tinha combinado que no próximo verão encheria as árvores com casas de passarinho?

─ É verdade ─ os olhinhos do menino brilharam e Draco sentiu uma navalha invisível perfurando seu coração por isso.

“Ele provavelmente não viverá o próximo verão” o oncologista sentenciara.

─ Mas pai…

─ Humm ─ Draco murmurou e engoliu em seco para não chorar.

─ Eu tive um sonho agora.

─ Um sonho? Ele era feliz? ─ encarou o filho com o nó ainda na garganta.

─ Era ─ Scorpius concordou olhando daquele jeito cheio de responsabilidade desnecessária para seu progenitor ─ Quer que eu conte?

─ Estou muito curioso.

─ Eu continuava doente, mas você tinha ido viajar… Daí um dia você apareceu de novo e eu tinha muito sono. Eu tava na cama. Bastante sono que nem querer brincar eu queria… ─ “A doença o deixará a cada dia mais cansado” a vozinha pessimista do doutor retumbava nele ─ Você sentou do meu lado, pai, e colocou a mão da minha cabeça, assim ─ pegou a mão livre de Draco e repousou na sua testa ─ E BAM! Eu tava bem de novo!

─ Bem? Como? Sem sono? ─ um estranho arrepio percorreu a base de sua espinha.

─ Humrum… e você disse que era um presente seu e um presente de um amigo seu.

─ Scorpius…

─ Aí estão vocês ─ Astoria interrompeu a conversa entre pai e filho entrando sonolenta, como o menino a minutos atrás, na cozinha. Era impressionante como por mais cansada que sua esposa estivesse, ela farejava a distância do menino e acordava à sua procura ─ O que estão conversando?

─ Nada demais. Scorpius está me contando um sonho legal que teve ─ ele comentou ainda processando aquilo.

─ Ah é? Sonhou com o quê, querido?

─ Que o pai me salvava ─ disse com a simplicidade tipicamente infantil.

Astoria parou a meio caminho de ir até a bancada pegar uma xícara de café e encarou Draco profundamente. Eles costumavam ter sérias discussões sobre como levar as esperanças de Scorpius naqueles dias. No geral, os dois não queriam acreditar que perderiam o filho mas ela tendia a fazer com que a vida fosse normal na medida do possível, ignorando a sentença de morte médica o quanto conseguisse ao passo que Draco tentava encarar mais objetivamente e a base de esperanças. Para Astoria, ela só queria que o filho não percebesse o que acontecia consigo.

─ Eu não sei porque ele disse isso ─ Draco se defendeu sob o olhar fuzilante da esposa.

─ Filho, vai para a sala assistir desenho que eu já, já levo seu suco.

─ Não estou com sede ─ disse enquanto o pai o colocava no chão.

─ Vai tomar mesmo assim ─ ela respondeu definitiva acompanhando o menino esquálido e pálido seguir para a sala. Quando Scorpius não podia mais escutá-los virou-se como uma ave de rapina para Draco e disse ─ Que merda você está fazendo com a cabeça dele?

─ Espere um minuto…

─ Já não está ruim o suficiente para você….

─ Tory, me deix…

─ Eu não aguento mais essa porcaria toda e ainda tenho de ficar controlando a sua maldita boca qu-

Draco agarrou a esposa pelos ombros e a sacudiu de leve para que parasse.

─ Tory, deixa eu falar, por favor!

─ O que, droga? Qual sua desculpa dessa vez?

─ Nenhuma. Ele só disse, eu não o estimulei a nada. Acordou me falando sobre esse sonho. Nele eu ia viajar e voltava curando-o com a minha mão. Ele produziu essa ideia sozinho.

─ Por que? Por que ele diria isso? Que tipo de coisa anda sugestionando para que fantasie algo assim? Minha nossa, Draco, a vida está tão insuportável que eu mal consigo respirar sem parecer que vou morrer na próxima puxada de ar! ─ a esposa chorou.

Draco engoliu em seco e abraçou-a. Enquanto afagava seus cabelos e deixava as lágrimas dela molharem seus ombros, a verdade foi surgindo em sua cabeça como um fluxo de pensamentos furiosos. Depois de consolá-la com os afagos, ele já tinha resposta para tudo que acontecera ali: a ligação, o sonho do filho, a sua próxima ação.

─ Eu vou viajar ─ anunciou por fim.

Astoria o olhou boquiaberta.

─ O que quer dizer com isso?

─ Preciso voltar para a cidade que cresci. Tenho uns conhecidos por lá que me convidaram para uma… uma reunião.

─ Você vai num encontro de ex-amigos enquanto nosso filho tem leucemia? ─ ela perguntou, as sobrancelhas arqueadas e inquisitivas, se soltando dos braços deles bruscamente.

─ Eu diria que é um encontro de ex-inimigos com o propósito de salvar nosso filho.

─ Eu não preciso disso… ─ ela bufou e enxugou as lágrimas raivosamente partindo para os armários em busca dos utensílios para preparar o suco do filho. Draco percebeu pelo movimento de seus braços e mãos que Astoria estava prestes a explodir de ira com ele.

Não tinha importância. Não mais. Ela entenderia depois. O que ele estava prestes a fazer agora somente sua intuição, muito mais que sua razão, compreendia. Ele estava disposto a nadar pelo passado e toda dor lá existente somente para salvar seu filho. E conseguiria.