BitterSweetheart

Capítulo 8 – Armações frustradas


Carla

Trabalhei toda a manhã em um projeto que tinha que terminar. Por volta de 11 da manhã, Mai ligou.

– Carla você terminou os relatórios da semana que eu te pedi ontem? Vou precisar deles agora. Estou pensando em trabalhar neles durante o almoço.

– Sim senhora, está tudo pronto. Vou levar nesse instante.

– Você é muito eficiente, parabéns. Estou esperando os relatórios. E mais uma coisa. Senhora é a senhora sua mãe.

Desligou o telefone e não pude deixar de rir. Eu tratava Mai por senhora apenas por hábito. É como eu trataria qualquer superior meu. Mas não deixava de ser cômica a situação. Mai tinha apenas alguns anos a mais que eu e poderia ser no máximo minha irmã mais velha. Eu ainda ria enquanto abria a gaveta para pegar os relatórios, mas o sorriso saiu de meu rosto com a velocidade de uma bala. Os relatórios não estavam lá. Não havia nada na gaveta. E eu sempre guardava tudo naquela gaveta. Revirei toda a sala sentindo o desespero me dominar aos poucos, o gosto azedo do desespero, aquele que te atormenta e faz sua cabeça parar de funcionar um pouco mais a cada vez que você enche o pulmão. Como eu já previra, eu não encontrei nada. Então lembrei que estava com eles pela manhã na cafeteria com Gui. Liguei para ele na esperança de que ele tivesse ficado com os relatórios sem perceber.

– Gui, pelo amor de Deus. Você sempre me salvou. Salve-me mais uma vez e me diga, por favor, que você ficou com meus relatórios hoje de manhã.

– Sinto muito, mas dessa vez eu não posso dizer o que você quer ouvir. Eu não estou com eles.

– Tem certeza? Olhe direito, por favor, Gui. Talvez tenham ficado misturados com suas coisas e você nem percebeu. Tem que ter ficado. Não encontro em lugar nenhum da minha sala.

– Não gata. Não estão aqui, sinto muito.

Eu já estava quase gritando e a ponto de chorar.

– Não pode ser. Tem ideia de quanto tempo gastei neles? E a Mai quer essas drogas de relatórios agora. Eu estou perdida.

– Carla, se acalme. Eu vou te ajudar a encontrar, mas não adianta gritar comigo. Onde você os viu pela última vez?

– Na cafeteria hoje de manhã. Eu mostrei-os a você e depois o Tiago chegou. Depois fomos tomar um suco e eu vim para a minha sala. Não me lembro de tê-los visto aqui.

– Então você deve ter esquecido-os na cafeteria. Você estava muito nervosa. Vamos lá, se você tiver esquecido lá, eles guardaram para você.

– Você tem razão. Obrigada pelo apoio, Pequeno. Acompanha-me até lá agora?

Ele me encontrou na minha sala e fomos juntos à cafeteria. Sempre fofo e gentil como só meu Gui conseguia ser. Ele me levou até a dona e perguntou se ela havia guardado uma pasta azul que esqueceram lá pela manhã.

– Ah sim, eu sei o que é. Você esqueceu mesmo uma pasta azul aqui.

– Graças a Deus. A senhora pode me entregar? Vou precisar muito dela.

– Mas a mocinha não te entregou?

– O quê? Como assim? Que mocinha?

– Ué, ela me viu recolher a pasta da mesa e disse que era sua amiga e podia te entregar porque ia te ver na mesma hora. Ela ficou com a pasta.

– A Anne? Vou ligar para ela imediatamente.

– A Anne? Não, ela eu conheço bem. Um doce de menina. Quem pegou sua pasta foi uma magrinha e bonitinha. Não me recordo agora o nome da garota.

A senhora parecia fazer um grande esforço para lembrar-se da mulher, porque as caretas que fazia eram hilárias. E eu só sentia cada vez mais vontade de esganá-la por estar demorando tanto; por ter entregado a pasta; por não saber nem ao menos a quem entregara; por ter nascido; porque Tiago havia nascido; por ter esquecido a merda da pasta e até porque Anne era linda demais, mas seria sempre minha amiguinha. É eu sei que pareço maluca, mas sabe aqueles momentos em que a raiva sobe e você só quer culpar alguém por tudo de errado que existe na sua vida? Sim, esse era o meu momento e ela, meu bode expiatório.

– Para quem você entregou a pasta, pelo amor de Deus. – Eu gritei e me arrependi na mesma hora sabendo que a pobre mulher não tinha a menor culpa dos meus problemas, mas ao mesmo tempo querendo muito culpá-la. Como sempre, Gui parecia saber exatamente o que se passava comigo.

– Carla se acalme. Não adianta ficar assim agora.

– Eu não me lembro mesmo o nome dela. Ela usa aquele cabelo um pouco curto e namora um moreno bonitão que vem sempre aqui com uma mulher diferente.

Eu e Gui nos olhamos e falamos ao mesmo tempo. – Paula!

– Viu só. Está tudo bem. – Continuou Guilherme tentando me acalmar. – Ela deve ter guardado porque não teve tempo de te entregar e não sabia que era tão urgente.

Corri até a sala de Paula bem mais aliviada. Bati na porta e entrei.

– Bom dia, Paula.

– Se você acha!

Delicada como uma flor de laranjeira. – Meus pensamentos expressavam o fato de que eu gostava cada vez menos daquela garota.

– Foi você quem ficou com uma pasta que eu esqueci na lanchonete hoje?

– Aham!

Graças a Deus! – Pensei. – Que bom. Eu estava desesperada. Obrigada por pegar para mim. – Foi o que eu disse.

– Disponha.

– Onde está a pasta, Paula?

– Ali. – Ela apontou para uma mesa atrás de mim. Virei-me para pegar, mas sobre a mesa havia apenas uma copiadora e um picotador de papel.

– Não tem pasta alguma na mesa, Paula.

– Eu disse na mesa? Ah me desculpe, queridinha. Engano meu. A sua pasta não está “em cima” da mesa, está “em baixo” da mesa.

– Em baixo? Mas... – Meu coração deu um salto mortal triplo quando o desenho da situação foi se formando em minha mente, pastas, papéis, picotador, em baixo... Eu não queria acreditar que Paula quis dizer o que parecia que quis. Olhei em baixo da mesa com o maior medo do mundo, quase sem abrir os olhos direito. A cena a seguir se passou em câmera lenta, um cesto de lixo brilhava e saltava aos meus olhos, em baixo do picotador, todo lotado de papel. De papel azul. – MAS QUE MERDA É ESSA? COMO ASSIM VOCÊ DESTRUIU MEUS RELATÓRIOS? – Sabe o que a vadia fez? Ela riu. A desgraçada começou a rir alto, em gargalhadas.

– Eu não! Foi o picotador, amor.

Foi demais! Ironia depois de tudo era muito mais do que eu podia agüentar. Avancei sobre ela, esquecendo-me que estava no trabalho, esquecendo-me que ela era minha colega. Só conseguia pensar em matar aquela mulherzinha. Mas a filha da mãe correu para longe de mim.

– Isso foi só um aviso. Tire os olhos do Tiago. Eu não quero saber de vocês nem perto um do outro.

– CARALHO SUA MALUCA! EU NÃO QUERO NEM SABER DO SEU NAMORADO! ELE É OBCECADO POR MIM! SE TOCA, SUA CORNA! ELE NEM MESMO LIGA PARA VOCÊ.

– No, no, no... Não é o que você deveria dizer agora. Eu posso destruir você, garota. Você chegou aqui cheia de marra, metida a gostosona. Puxa saco de merda, você foi logo ficando amiguinha de todos que tinham poder. Você pode querer tudo para você. Mas o Tiago você não vai ter,

Descontrolei-me de vez. Pulei por cima da cadeira e segurei Paula pelo braço. Ela se virou instintivamente e nem mesmo chegou a ver quando minha mão veio cortando o ar e acertou em cheio seu rosto. Mas o barulho ela deve ter ouvido porque foi alto.

– Entenda de uma vez, sua idiota. Eu não dou em cima do Tiago. Nem o quero por perto. Por mim ele sumiria da minha vista. E você acabou com minha vida e meu trabalho só porque seu namorado te chifra com a PGR* inteira? Você é tão ridícula que quase me dá pena.

– Acabei sim e era essa a intenção. Agora a Maitê vai ficar bem nervosa com você e você cai fora. Meu namorado volta a dar atenção só para mim.

Dei uma gargalhada muito alta, ri mesmo, ri com gosto só de pensar nela aqui sentada fazendo bem-me-quer, mal-me-quer para ele enquanto ele procurava a próxima estagiária ou funcionária que entrasse no meu lugar.

– Não me faça rir, Paula. Assim eu acabo com pena de você de verdade. Seu namorado vai dar atenção só para você? Para começo de conversa, ele nem mesmo se considera seu namorado. Ele se diverte com você, te procura quando não tem outra mulher para passar a noite. No dia em que eu entrei aqui ele nem mesmo me conhecia e as pessoas já comentavam que ele fazia você de idiota e você deixava. Todos têm pena de você. Você é idiota assim mesmo, ou só finge para viver? Eu posso até ir embora, amor. Mas você se esqueceu de uma coisa que acabou de dizer, eu fiz amizade com as pessoas que têm poder aqui dentro. Inclusive meu melhor amigo é seu chefe. Aposto como ele vai adorar essa historinha. Eu vou embora e te levo comigo, sua infeliz. Tudo isso por um homem que te trata pior que a uma prostituta.

Paula parecia não ter pensado nas consequências do que ela havia feito e eu pude ver a situação se desenrolar com clareza pela primeira vez nos olhos dela. Eu não sabia se era pela iminência de ser demitida ou se era pelas verdades que eu havia jogado na sua cara, mas os olhos dela começaram a se encher de água, seus lábios tremeram e ela parecia prestes a desabar no choro. Nesse momento Tiago entrou na sala.

– Que gritaria é essa? Todo mundo lá fora está comentando. Não briguem por mim meninas. Tem Tiago aqui para todas.

Nós duas fuzilamos o idiota com o olhar. Já ouviu aquela expressão “se olhar matasse”? Pois é, acho que ele sentiu exatamente isso naquela hora porque recuou um passo, parecia amedrontado. Era como se nem mesmo ele acreditasse de verdade que fosse o motivo daquela briga e se assustou ao perceber que poderia ser.

– Uma vez na vida Tiago! Cale a boca. – Paula o olhou nos olhos. – Cafajeste. – E ela deu uma bofetada na cara dele. Uma tão forte quanto a que eu lhe dera. E, sinceramente, eu tive vontade de morrer quando a reação dele foi olhar para mim sorrindo.

– Você venceu a briga então, gatinha? Melhor para mim porque você...

Nem me dei ao trabalho de responder. Apenas desci outra bofetada na cara daquele infeliz. Tudo bem, eu admito. Foi muito mais um soco que um tapa, mas ele merecia, ok?

– Você tem que entender que o mundo não gira em torno de você. A briga aqui era por outra pessoa. E por sorte eu ganhei sim, mas de você. Vou sair hoje e fazer um sexo selvagem a noite toda com sua namoradinha ali.

Tiago ficou boquiaberto me olhando sair. Ele nem mesmo conseguiu esboçar alguma reação. Enquanto eu saía pisando duro e morrendo de raiva, imaginando uma forma de contar o que rolou para a Maitê. Eu nem percebi que havia alguém na porta e acabei batendo de frente com ela. Já ia começar a me desculpar quando vi que eu havia derrubado ninguém menos do que a Maitê no chão. Ótimo, agora sim não faltava absolutamente nada para acontecer hoje.

– Putz... Desculpe-me Maitê. – Segurei a mão dela e a ajudei a se levantar. Tudo bem? Eu te machuquei? O que mais ainda pode dar errado hoje, meu Deus?

– Seu encontro hoje à noite.

– O que? – Eu olhei sem entender. Devia estar com a maior cara de paisagem. Do que a mulher estava falando?

– Seu encontro hoje à noite, mais isso pode dar errado hoje. Eu sinto muito, mas a Paula não é bi.

– Ah isso! Tudo bem, não existe encontro algum. Falei isso para deixar o babaca do Tiago com aquela cara de idiota. – Mesmo com todo o drama que eu estava passando não consegui deixar de admirar o quanto a chefinha ficou linda quando deu aquela risada gostosa e passou a mão pelos cabelos ajeitando-os.

– Essa foi a melhor cara que ele já teve, mas você sabe que é feio mentir, não é? Mesmo por uma boa causa como essa. Eu posso te ajudar a resolver isso.

– Ajudar como? Não estou entendendo nada.

– Você não vai sair com ela, mas para que eu não te ache uma menina mentirosa, você vai sair comigo. Que horas posso te pegar? – Ela sorriu para mim. Foi o primeiro sorriso sincero e não profissional que ela havia me dado e não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Maitê estava mesmo tentando marcar um encontro comigo? Impossível!

– Antes de qualquer coisa eu preciso te dizer uma coisa. Sabe aqueles relatórios? Bem a... – Eu ia dizer que Paula destruíra meu trabalho, mas nem eu mesma soube explicar porque resolvi não dizer nada. – Eu perdi os relatórios. Acho que me distraí e acabei esquecendo a pasta na lanchonete. Alguém deve ter pegado. Sinto muito.

Mai levantou uma sobrancelha e me encarou seriamente. Prendi a respiração e já estava me preparando para o pior.

– Então acho que a gente não vai mais ter um encontro hoje à noite. Que pena.

Abaixei a cabeça e soltei o ar todo de uma vez, deixando escapar um suspiro fundo de resignação. Eu já esperava isso, não é?

– Sinto muito. Eu fui descuidada e irresponsável.

– Concordo plenamente. Nosso encontro fica para amanhã se você conseguir me trazer tudo até as 5 da tarde de amanhã. Se não, a gente vai ter que adiar mais uma vez. Não me decepcione de novo. Você é melhor que isso.

Fiquei olhando Maitê se afastar sem acreditar no que ela dissera. Eu não entreguei os relatórios e nem mesmo levei uma bronca? Só podia ser um milagre. E eu não pude deixar de sorrir ao pensar no desfecho de toda aquela confusão. – Será que nada nunca seria normal na minha vida?

E que graça teria se fosse normal? – Dei uma risada ainda mais gostosa enquanto me encaminhava para a sala de Guilherme agora. A minha chefa era lésbica e ele nem mesmo me contou? Está me devendo uma, Guilherme.