BitterSweetheart

Capítulo 25 – Marcas do passado


Maitê

Eu saí completamente irritada daquele barzinho ridículo. Mal podia acreditar no show que a imitação barata de Barbie dera. Não consegui voltar para a festa do congresso, nem para casa. Entrei no carro e dirigi direto para o único lugar no mundo que me trazia alguma paz. Entrei no cemitério e segui pelo terreno irregular sem hesitar. Conhecia aquele caminho como a palma de minha mão. Já havia passado por aquela trilha tantas vezes que não poderia contar. Sentei-me em frente à lápide de mármore claro que me enchia de memórias. Uma lágrima escorreu quando passei a mão pelo nome gravado na pedra.

– Boa noite, papai.

Fiquei ali, sentada e olhando aquela pedra por um longo tempo. Não me importava com o vento frio que bagunçava meus cabelos, me causando arrepios, nem com a noite que já avançava para a madrugada. Conversar com meu pai era a única coisa que eu precisava.

– Papai eu precisava tanto da sua ajuda, dos seus conselhos agora. Eu consegui tudo, papai. Tudo que tiraram de você e que eu jurei que teria de volta. Agora me tiraram uma coisa importante, exatamente como fizeram com você. Eu tenho armas, pai. Tenho meios de não me permitir ficar por baixo, mas não são meios honrosos. Diga-me papai, eu devo usar qualquer meio possível para atingir os fins que desejo? Eu sei que você sempre esperou que eu fosse uma pessoa boa, correta e valorizasse a honra, mas você era assim e olhe onde você está agora. Usaram você, te pisaram e te passaram para trás. Tudo porque você era uma pessoa boa. Acho que você concordaria que eu não posso levar todas as coisas sobre ser correta ao pé da letra, não é?

Eu poderia ter passado toda a noite ali tentando ter uma conversa imaginária com meu pai, uma conversa da qual me privaram, mas ouvi barulho de passos atrás de mim e me virei assustada.

– Quando não voltou à festa e nunca chegou em casa eu sabia que te encontraria aqui.

– Fernando!

– O próprio. – Ele sentou-se ao meu lado e passou um braço forte por meu ombro. – Eu estava preocupado com você.

– Eu estou bem, só precisava espairecer um pouco.

– O fato de eu te encontrar aqui quer dizer exatamente o contrário, Mai. Você vem aqui quando algo não está bem. Aconteceu algo entre você e a Carla?

– Me poupe desse nome, por favor.

– Então isso também quer dizer que eu estou certo mais uma vez.

– Você me conhece bem demais para o seu próprio bem. Um dia vou precisar te matar por isso.

Ele riu. Ele sempre sabia quando eu falava sério ou não. Provavelmente ele era a única pessoa no mundo que realmente sabia identificar isso.

– Você sabe que nunca precisará me matar por isso. Eu acho que depois de todo esse tempo aguentando nosso casamento, eu já conquistei o direito de te conhecer tão bem.

– Por quê?

– Por que conquistei o direito?

– Não. Por que aguenta esse casamento?

– Você sabe que falei brincando. Não é como se eu tivesse realmente que aguentar alguma coisa. Tirando seu mau humor.

– Eu sei disso, mas quero dizer por que você ainda está aqui? Você poderia estar com alguém legal que estivesse ao seu lado de verdade. Alguém que pudesse te dar tudo que eu não posso.

– Todas as horas de silêncio torturante e toda a sua ausência de humor? Não acredito que alguém possa substituir isso, Mai.

– Estou falando sério Nando. Por quê?

– Você sabe por que. Eu disse que sempre cuidaria de você. Eu jurei isso a ele antes de ele morrer e já havia te prometido isso muito antes. Eu sempre vou estar ao seu lado cuidando de você. – Eu abri a boca para argumentar, mas ele colocou os dedos nos lábios e me mandou ficar quieta. – E não adianta tentar me convencer de que você pode cuidar de si mesma porque eu sei que pode, mas me agrada poder estar do seu lado para ajudar, mesmo que seja um dos raros momentos como esse em que você está vulnerável e se abre um pouco para mim.

Eu poderia discutir e enfiar o vulnerável de volta nele garganta a baixo. Mas ele tinha razão e ele sabia disso. Ninguém me conhecia melhor que Fernando. Talvez apenas meu pai, mas ele não está mais aqui. Deitei a cabeça em seu ombro e fechei os olhos, me deixando apenas sentir por algum tempo. Ele fez carinho em meu cabelo e encostou meu corpo ao dele para que eu ficasse mais confortável.

– Agora me conte o que aconteceu, Mai.

– Você sabe. Anne aconteceu. A Carla sempre foi apaixonada por ela e eu sempre soube disso.

– Então por que entrou nessa?

– Por que eu a queria.

– E essa é a minha Maitê. – Ele deu aquele sorrisinho de lado que sempre me irritou. Ele sempre fora cheio de si, até mais do que eu. Talvez tenha sido exatamente isso que nos aproximou. – Você não consegue simplesmente deixar para lá, não é?

– Claro que não.

– E você tentou conquistar essa Carla ou simplesmente agiu como se ela já fosse sua propriedade como você sempre faz? Você sabe que nunca vai ter alguém de verdade a não ser que você se abra, não sabe?

– Não enche, Fernando.

– Eu estou falando sério. Talvez valesse a pena você tentar ser uma pessoa normal por essa garota. Eu nunca vi você assim por alguém desde que a...

– Não toque nesse assunto. – Eu o interrompi imediatamente. Não poderia suportar ouvir o nome dela depois de tudo que já havia acontecido essa noite. – Não diga o nome dela e não a compare a ninguém.

– Perdoe-me. Eu sei que você não gosta dessas lembranças, mas eu só quis dizer que talvez você realmente devesse tentar, sabe? Abrir seu coração.

– Você sabe que isso nunca irá acontecer novamente.

– Você se abriu comigo.

– É o que você acha.

– Eu tenho certeza. – Eu vi em seu rosto aquele sorriso idiota novamente. Eu odeio a forma como ele me entende e demonstra isso. Odeio a forma como ele passa a mão pelos cabelos castanhos e me olha com aqueles olhos escuros brilhantes. – Você não tem como negar isso. Não a mim, morena. Por uma gigantesca ironia a vida resolveu me fazer seu melhor amigo e nem você consegue negar isso.

Olhei naqueles olhos escuros e sinceros, tão familiares, que me acompanham desde a infância. Eu nunca poderia negar isso. Empurrei-o de leve e sorri a contragosto.

– Não negaria. Você é meu melhor amigo e sim, eu não consigo ser eu mesma com você. Você é meu ponto fraco.

– Aí é que você se engana. Você só é você mesma comigo. As outras pessoas é que não conhecem a verdadeira Maitê. Eu te conheci antes de tudo acontecer, antes de você se encher com esse rancor e esse medo de confiar nas pessoas e eu me lembro de como você era. De como o sorriso se abria facilmente em seu rosto.

– E você acha que eu não tenho motivos para ser assim? Você mais do que ninguém sabe o que aconteceu com meu pai e com ela... – Não conseguiria dizer seu nome, havia aos que eu não o pronunciava. A mera lembrança daquela menina me atormentava, dizer seu nome era mais do que eu poderia suportar.

– Eu sei que você tem motivos, só não acho que as regras se apliquem a todas as pessoas do mundo.

– Elas só não se aplicam a você. – Ele sorriu e dessa vez foi um sorriso de verdade. Não o sorrisinho torto de superioridade. Apenas o sorriso infantil do meu melhor amigo. O sorriso que sempre amoleceu meu coração, talvez por ser tão destoante de sua aparência, deslocado naquele rosto moreno de bad boy. – Mas eu ainda acho que você poderia ser feliz com alguém ao invés de ficar preso ao meu lado nesse casamento de mentirinha.

– Não é como se eu não fosse feliz com outras pessoas dessa forma, não é? Você sabe que eu sei me divertir. E quanto a casamento, eu nunca quis me casar mesmo. Acho que tudo está perfeito como está. – Ele se levantou e bateu a mão nas calças para limpar as folhas que ficaram grudadas. Estendeu-me a mão e me ajudou a levantar. – Vamos para casa. Já está muito tarde.

Nós caminhamos em silêncio de mãos dadas todo o caminho até meu carro. Ele esperou que eu entrasse e se debruçou sobre a janela, apoiando-se nos cotovelos com aquela pose que sempre o fazia parecer descuidadamente desinteressado.

– E quanto à garota que roubou seu coração?

– Ela não roubou meu coração. Ela não pode roubar o que não tenho.

– Você se acha tão ruim assim?

– Claro que não, não seja idiota. Apenas quis dizer que eu não tenho um coração para ser roubado porque ele já foi roubado por alguém. E por favor, desista dessa história. A Carla me decepcionou e você sabe que ninguém tem segundas chances comigo. Não acredito que pessoas possam mudar. Minha relação com ela a partir de hoje será apenas profissional.

– Você tem certeza que será pelo menos profissional? – Eu sorri de lado e Gabriel me encarou sério, ele sabia o que aquele sorriso significava, porque era o mesmo sorriso que ele usava. – O que você está tramando?

– Bem, você sabe que ninguém me decepciona e fica por isso mesmo.

– Você vai se vingar, não é?

– Claro que sim.

– Você já não teve vingança demais na vida, Mai? Talvez já seja hora de você seguir em frente e deixar o passado para trás.

– Meu passado é tudo que eu sou, Nando. Não tenho como deixá-lo para trás. Vamos para casa, preciso da sua ajuda para planejar a queda de alguém.

Anne

Acordei muito agitada na segunda. Seria hoje o grande dia. Se tudo desse certo eu estaria sendo promovida em algumas horas. Pensei em acordar Carla para conversar um pouco, mas ao vê-la dormindo tão profundamente abraçada a um travesseiro não tive coragem. Deixei-a dormindo e fui tomar um banho para acalmar os nervos. Preparei um café-da-manhã e só então acordei Carla para que não nos atrasássemos. Ela sentou-se à mesa ainda sonolenta e resmungando. Era a segunda vez que acordávamos juntas e a segunda vez que ela estava com mau humor matinal. Percebi que precisaria me acostumar com isso e sorri ao ver sua cara emburrada enchendo um copo de café. Jamais seria um problema. Sentei-me ao seu lado e suspirei, fazendo-a me olhar.

– Aconteceu alguma coisa, Anne?

– Eu só estou preocupada. A votação do conselho é hoje e isso está me deixando muito ansiosa.

– Não fique, meu amor – ela me pegou pela mão e me sentou em seu colo. – Você é incrivelmente talentosa no que faz, não existe a possibilidade de que não te escolham. Você é a melhor opção.

– Talvez, mas ainda assim estou apreensiva. Algo está me incomodando e eu não sei o que é.

– Deve estar sentindo falta de um beijo, não é isso? – Sorri ao ouvi-la. Sempre tão adoravelmente autoconfiante. Beijei-a com carinho e me levantei para fazê-la se arrumar. Não poderia me atrasar hoje, nem mesmo pelos beijos de Carla.

Maitê

Saí de casa na segunda de manhã com pressa. Nem ao menos esperei Nando chegar para tomarmos café juntos. Já estava entrando no carro quando o ouvi me chamar. Ele descia de seu carro e se aproximava. Imaginei que a noite dele devia ter sido bem mais interessante que a minha a julgar por seus cabelos desalinhados e as grandes olheiras roxas sob seus olhos injetados como se ele não tivesse dormido há dias.

– Não ia me esperar hoje, baby?

– Você se atrasou muito mais que o normal hoje e você sabe que eu tenho coisas importantes para resolver.

– Vai mesmo seguir em frente com aquele plano?

– Você sabe que sim – respirei fundo impacientemente. Sabia que ele tentaria me convencer a não fazer o que queria novamente. – Nada que você disser vai me convencer.

– Imaginei que não. Por isso trouxe algo que talvez o faça por mim – ele me estendeu um embrulho fino. Eu não estava com paciência para presentinhos matinais, mas acabei pegando para que ele me deixasse em paz. Assim que abri prendi a respiração e soltei uma exclamação de surpresa. Não via aquilo há muitos anos. Na verdade esperava nunca mais ter que olhar para aquele porta-retratos na vida.

– O que acha que está fazendo, Fernando? – Minha voz denunciava muito mais nervosismo do que eu gostaria que ele percebesse em mim. – Tentando me amedrontar com fantasmas do passado?

– Não Maitê. Tentando te fazer lembrar-se de quem você é e de quem o homem na foto queria que você fosse.

– A garota da foto morreu, Fernando. Morreu e foi enterrada junto com o meu pai naquele túmulo frio. Você devia saber disso, foi o seu pai quem a matou. – Eu sabia que estava sendo muito injusta com ele, mas ele não tinha o direito de me atormentar com esses fantasmas.

– Meu pai não matou a menina da foto. Meu pai causou a morte do seu pai, mas foi você mesma quem matou aquela menina e construiu essa pessoa fria que você colocou no lugar dela. Você não vai conseguir me atingir com os erros do meu pai, eu não me aflijo tanto com o passado quanto você. De qualquer forma eu nunca concordei com o que ele fez e assim que descobri tudo eu fiquei do seu lado, ajudei a corrigir os erros dele e estou aqui até hoje. Porque eu te amo. – Abaixei os olhos e fiquei em silêncio, não havia como fugir dos sermões de Fernando. – Você teve três pessoas que te amaram em toda a sua vida, Mai. Seu pai está morto e a menina com vocês nessa foto se foi. Somente te restou a mim e para sua sorte eu sou mais forte do que ela, então você não conseguirá me afastar também. Mas me sinto no dever de te lembrar que eu não estava nessa foto porque fui eu quem a bati, mas eu estava lá. Naquele dia seu pai te falou que todo o dinheiro que roubaram dele não tinha importância, porque a única coisa que realmente tinha valor para ele era você. Ele disse que a única coisa que ainda o fazia feliz no mundo era ver o seu sorriso enquanto se deitava no meu colo e olhava para ela. Você diz que recuperou tudo que tiraram do seu pai, mas para isso você perdeu a única coisa que realmente tinha valor para ele, você mesma.

– Não se iluda com essas fantasias da Disney, meu caro – minha voz era como gelo afiado cortando e queimando ao mesmo tempo. A raiva já estava estampada em meus olhos. Ele sabia que essa era minha reação sempre que ele tocava nesses assuntos e que eu odiava que ele o fizesse. – Se eu fosse a única coisa que importava para meu pai, ele não estaria morto. Ele morreu porque nunca conseguiu lidar com todas as perdas que teve na vida.

– Você é quem se ilude com isso, Maitê. Não eu. De qualquer forma, faça o que achar que deve. Eu estarei ao seu lado de qualquer forma, mas preferia estar ao seu lado te vendo feliz e não consertando suas besteiras.

– Obrigada pelo conselho. Estou indo para o escritório agora. Tenho uma votação para participar.