BitterSweetheart

Capítulo 10 – Verdades melhores não ditas


Carla

Comi a tal sobremesa praticamente à força. Havia perdido toda a vontade, afinal tudo aquilo começara para fazer Anne sorrir e agora ela nem ao menos estava falando comigo. Permanecia com aquela cara emburrada enquanto eu tentava, inutilmente para constar, fazê-la falar o que a tinha chateado tanto. Mas a birrenta não abria a boca, então acabei desistindo. E quando ela finalmente resolveu falar comigo foi para dizer que iria de ônibus para o trabalho. – Então quer dizer que nem andar comigo ela queria mais? – Estava realmente difícil aguentar aquela situação.

– Anne eu não sei o que eu fiz para você, estava tudo perfeito e, do nada, você ficou maluca assim. Porém, eu te trouxe aqui. Eu vou te levar de volta. Nem venha com essa merda de ir de ônibus.

Ela abriu a boca, provavelmente para discutir, mas antes que ela pudesse dizer mais alguma besteira, eu a mandei calar a boca. Isso pareceu deixar Anne ainda mais irritada. Ela entrou no banco de trás do carro e bateu a porta com toda a força, o que me deu vontade de perguntar se ela não tinha geladeira em casa, mas depois do “cala a boca” que soltei hoje não achei que isso seria uma boa idéia. Ela não falou mais nenhuma palavra até o trabalho. Eu mal havia estacionado e ela já fazia menção de descer. Tranquei as portas antes.

– Carla, abra essa porcaria para eu sair.

– Só se você disser o que rolou.

– Nada, eu já disse. Agora abra.

– Eu não acredito em você. Aconteceu alguma coisa, sim e não saber o que eu fiz de errado me irrita.

– Então preste mais atenção, Carla. Pare de olhar seu próprio umbigo e enxergue as pessoas a sua volta. Pense no que aconteceu, ou quase, hoje e você vai saber o que me irritou. Eu não vou te contar. Você vai ter que descobrir sozinha. Agora abra.

Meus olhos faiscaram de raiva. Não respondi nada, apenas abri a porta, mas ela não desceu, ficou paralisada me olhando. Eu sabia que o meu olhar de raiva e desprezo era muito pior do que seja lá o que eu tivesse feito, até porque eu conhecia a loirinha o suficiente para saber que isso a machucaria. Eu não queria machucá-la, mas também não conseguia não manter aquele olhar quando era o que eu estava sentindo. Ela não suportou meu olhar e virou o rosto para o lado, por um instante achei que ela fosse começar a chorar.

Anne

Eu tentei. Juro que tentei não chorar, mas aquele olhar era a pior coisa que ela podia fazer comigo. Como consegui ser tão boba? Eu só queria que ela discutisse até me fazer falar o que tinha acontecido, queria que ela me impedisse de sair, que demonstrasse que realmente queria saber o que se passava comigo porque no fundo eu queria muito falar, mas ao invés disso Carla abriu a porta e ficou me olhando daquele jeito, como quem diz “vai embora então, não me importo”. Perdi completamente o controle do meu amor próprio pelo medo de que aquele desprezo se prolongasse por mais meio segundo que fosse.

– Desculpe-me, Carla. Eu não queria dizer isso. É que eu fiquei chateada.

– Certo. Até amanha, Anne.

Aquilo estava começando a me matar por dentro. Desprezo era muito pior que qualquer outra coisa. Aproximei-me para dar um beijo no rosto dela, mas ela se virou. Fiquei um tempo olhando-a e uma lágrima escorreu em meu rosto. Sai correndo do carro e liguei para o Diego dizendo que estava muito mal e não poderia voltar para o trabalho. Ele me deu o resto do dia de folga, ainda bem, pois não conseguiria me concentrar em nada e não queria ver a cara da Carla por aí mais nenhuma vez nesse dia. Fui direto para casa só pensando em um banho. Enchi a banheira, deitei-me e fiquei olhando o teto pensando no que havia acontecido.

Você é uma tonta Anne. Ela nunca olhou para você desse jeito. Ela não ia te beijar no carro, mas você precisava ficar lá como uma idiota oferecida. Pare de se enganar. O pior foi você ainda se arrepender por ter falado algumas verdades. Ela bem precisava ouvir aquilo. Definitivamente, Anne. Você é uma completa idiota.

Não havia nada que eu pudesse fazer para controlar a vontade que veio de chorar. E quanto mais eu me lembrava de Carla mais eu chorava e mais eu pensava nos lábios que quase tocaram os meus, no sorriso dela, em nossas mãos unidas, compartilhando um momento mútuo de carinho e desejo. E então eu chorei por um longo tempo sem a menor intenção de sair da banheira um dia. Queria ficar ali para sempre e não ter mais que olhar para Carla de novo. Nunca mais. Mas a maldita campainha tocou para me mostrar que eu teria que sair dali e encarar o mundo mais cedo ou mais tarde. Infelizmente seria mais cedo.

Vesti um roupão e fui abrir a porta, à contra gosto e com um mau humor terrível. Em nada melhorou ver Diego parado à porta.

– Diego!

– Nossa... Quanto entusiasmo. Também estou muito feliz em te ver. – Disse ele com um toque de ironia que em nada ajudava a melhorar o meu humor, o que deve ter ficado nítido. – Que cara horrível, Anne. Andou chorando? Eu só vim porque fiquei preocupado. O que aconteceu?

– Longa história, Di. Desculpe-me te receber assim, mas é que eu não estou com cabeça para nada hoje.

– Eu te conheço, Anne. E isso está com cara de coração partido. Quem é?

– Nada a ver. Só estou indisposta.

– Para cima de mim, Anne? Até parece que eu não te conheço desde que tínhamos 18 anos. Eu sei que você está apaixonada. Quem é?

Eu conheci Diego na faculdade, há oito anos, e ainda me impressionava com o quanto ele me conhecia. Às vezes era como se ele tivesse desenvolvido a capacidade de ler meus pensamentos ao longo de tantos anos como meu melhor amigo. Era impossível mentir para ele.

– Di, me abraça?

Ele não teve como insistir na discussão depois de um pedido assim. Afinal meu amigo sempre teve uma necessidade incrível de me proteger, então me abraçou com força e deitou a minha cabeça em seu ombro, me fazendo carinho no cabelo. Como sempre acontecia quando eu estava mal e alguém me dava um colo, eu comecei a chorar descontroladamente, soluçando como um bebê. Diego era o melhor nessas horas e sabia o que eu precisava como ninguém. Ele não disse nada, apenas ficou ao meu lado, me dando seu ombro até que eu me cansasse de chorar. E eu demorei a me cansar. Passamos quase duas horas sem que ele nem mudasse de posição para não interromper meu desabafo, até que fui me acalmando aos poucos. Quando ele percebeu isso, levantou-se e foi até a cozinha. Voltou com um sanduíche e um suco de maracujá. Eu não sentia a menor fome e nenhuma vontade de comer, mas o infeliz me fez comer assim mesmo. Quando acabei ele me olhou sério.

– Então... Agora você pode me contar?

– Eu estou completamente apaixonada, Diego. – Simplesmente saiu. Foi mais forte que eu. Eu estava mesmo precisando desabafar e quem melhor que meu melhor amigo para ouvir minha estupidez? – Eu acho que me apaixonei como nunca antes. Ela é perfeita. É a mulher mais linda que eu já vi, mas não sei se ela gosta de mim. Na verdade eu acho que ela gosta, mas não é o suficiente. Ela gosta de muitas, sabe. Ou ela pode só me achar uma grande amiga. Eu estou confusa e desesperada.

– E é claro que você não disse nada para ela, não é?

– Claro que não. Eu não consigo. E se ela disser não? E se me rejeitar?

– Anne, me escute. – Já disse que odeio quando ele me olha assim? Sério, bravo e irritantemente cheio de si, me fazendo sentir nua como se ele me olhasse por dentro. – Eu sou seu amigo e só quero seu bem, você sabe. O que eu vou falar agora vai ser duro, mas é para o seu bem. Eu estou cansado de ver você se menosprezando assim. Cansado de te ver desistir de você mesma para lutar pelos outros. Você é tudo que alguém pode querer na vida e só você não percebe isso. Se você se desse valor ninguém nunca te rejeitaria. Você tem tanto medo que acaba perdendo todas as chances que tem. O que você tem dessa garota? Nada! Então a maior mudança que poderia haver seria você ganhar um sim porque o não você já tem. Então comece a lutar por você mesma. E se toque porque você pode ter o mundo se quiser. Você tem alguém que te ama mais do que tudo, Anne. Basta uma palavra sua para que ele realmente te dê esse mundo.

Eu não soube o que responder na hora. Fiquei pensando nas palavras de Diego por um longo tempo, e o amei naquele instante por respeitar o tempo que eu precisava para digerir tudo aquilo. Respirei fundo e segurei a mão dele. Percebi que ela tremeu e ficou gelada na mesma hora. Fiz que não com a cabeça, não queria que ele confundisse as coisas nem por um segundo.

– Di, não crie esperanças, por favor. Eu te amo demais, você é meu melhor amigo e te machucar é a coisa que mais me machucaria nessa vida. Então não tenha esperanças. Eu sei que “ele” poderia me dar o mundo, mas “ele” não é quem eu quero que me dê. – Enfatizei os “eles” para que não restassem dúvidas sobre o que eu estava dizendo. – Mas o que você disse é verdade. Eu tenho que aprender a me dar mais valor do que eu dou aos outros. Só que com a Carla, talvez eu tenha mais a arriscar do que o não que já tenho. Eu tenho uma amizade para perder. Então eu prefiro deixar como está. Ter ela sempre ao meu lado mesmo que como amiga, me parece melhor do que arriscar perder tudo com joguinhos de amor.

– A Carla? É pela Carla que você está apaixonada? – Ele não conseguia esconder a pontada de desapontamento e ciúmes na voz e no olhar. Isso me deixou triste, não era o que eu queria para o meu melhor amigo. – Você não podia me trocar por alguém que você acabou de conhecer assim, Anne.

– Eu não estou te trocando, bebê. Você é e sempre vai ser meu melhor amigo.

– Esse é o problema. Eu te amo, Anne. Você sabe.

– Estamos sendo sinceros aqui, não é? Então eu vou dizer umas coisas que você precisa ouvir também. Vai ser duro, mas é necessário. – Usei as mesmas palavras que ele havia usado para deixar claro que eu só queria aconselhá-lo da mesma forma que ele fez, e não julgá-lo. – Eu também estou cansada de ver você se esconder atrás desse sentimento que você diz sentir por mim. Na verdade você confunde o amor de irmãos que temos um pelo outro para esconder o que você sente de verdade. Eu não gosto de homens, mas você... Bem, nós dois sabemos que você gosta. Pare de se proibir de ser feliz por medo.

– Eu não sou gay, Anne. Eu amo você. Eu nunca senti nada por homens.

– Não? Não precisa me responder, só quero que você responda a você mesmo e pense nisso. Quando você deita na cama, naquele segundo antes de dormir onde a gente pensa no que mais quer, é em mim que você pensa, Diego?

Ele ficou em silêncio por um tempo e seus olhos se encheram de lágrimas. Tive vontade de abraçá-lo e cuidá-lo como ele fazia comigo, mas quando me aproximei ele se afastou.

– Você não tem o direito de falar assim, Anne. Eu não sou gay. Não é porque você não me quer que precise arrumar desculpas para isso. Assuma seus atos e me faça um favor, não fale comigo por um tempo. Vai ser melhor para nós dois. – Ele saiu correndo. Parecia estar segurando para não chorar, aliás, eu sabia que era exatamente o que ele estava fazendo. Diego nunca choraria aquelas verdades na minha frente, mas vê-lo daquele jeito e não fazer nada acabava comigo.

– Diego espere. Não fica assim. A gente estava tendo uma conversa adulta e sincera aqui. Você disse o que pensava e eu disse também. Não precisa sair assim. Diego! – Não adiantou, o pirracento foi embora sem nem olhar para trás. Aparentemente eu pegara pesado demais. Ele ainda não estava preparado para escutar isso. – Muito bem, Anne. Você conseguiu magoar a única pessoa que estava ao seu lado hoje. Vai dormir sozinha para aprender.

Liguei o som no volume máximo para que ninguém me ouvisse chorar e me joguei na cama. Só consegui adormecer quando o dia quase amanhecia.