Não havia momento que eu mais amasse do que aquele fim de tarde, em que o sol brilhava para se fazer lembrar como se dissesse "Estou indo, mas saiba que quem manda sou eu". As cores eram a melhor parte. Rosa. Laranja. Vermelho. Amarelo. Em uma mistura que tudo ou ficava rosado, ou alaranjado, ou avermelhado ou amarelado. Todas aquelas cores juntas se misturando sem se misturar e compartilhando toda aquela glória de fazer parte do céu. Bem que eu queria me desmanchar como elas faziam e voltar a fazer isso nos dias seguintes como um ciclo eterno, que era interrompido vez ou outra pelo céu cinzento de chuva.

Mas ainda faltava bastante tempo para isso acontecer. O céu era uma joia azul pontilhada de nuvens brancas. Hoje não choveria, não haveria cinza.

– Você está bem? - perguntou minha mãe me abraçando.

Ela havia arrumado uma folga no hospital para poder me ajudar na quermesse da escola. Era um evento anual e tão antigo que até minha avó havia participado dela quando era mais nova. Mas esse ano, o dinheiro arrecado seria doado pelos alunos para o orfanato e para o canil. Como Lucius havia convencido a todos de que era o certo a fazer. Ele era ótimo para convencer a todos do que queria. Ótimo manipulador.

– Ansiosa - bati os dentes com força ao falar - Amanhã é a votação e eu não consigo acreditar que chegou tão rápido ao mesmo tempo em que pareceu demorar tanto.

– O tempo é assim mesmo, filha. Uma criaturinha escorregadia que gosta de pregar peças.

Alguém a chamou e ela teve que ir ajudar na barraca de comidas típicas. O preço para mães que não cozinhavam era esse. Minha avó havia aprendido isso há muito tempo e se certificou de preparar algo que a deixasse livre para zanzar entre as barracas. Vovó era uma coisinha pequenina com uma blusa azul chamativa - uma blusa que os responsáveis pelo funcionamento do evento deveriam usar - que andava por todo canto gritando ordens aos preguiçosos e insolentes.

Eu deveria ir para barraca do Correio Romântico e não havia barraca que eu mais odiasse do que aquela. Todas as declarações ditas em voz alta eram uma ofensa aos casais verdadeiros que não precisavam de público para se amar.

Um garoto do terceiro ano passou por mim e assobiou. Contive o impulso de xingar.

A quermesse ocorria no campo de futebol desde que era um terreno baldio. O professor de Educação Física odiava, mas não havia nada que ele pudesse fazer. E ainda tinha que participar. Ele cuidava de uma das barracas com jogos difíceis de serem ganhos. E como minha avó, ele gritava.

– Acerta logo esse alvo. Minha avó acerta mais do que você! - ele berrou à minha direita - E olha que ela só tem um braço!

Ok. A avó dele havia morrido quando eu era pequena e havia sido com todos os membros no lugar certo.

– Que lindo, treinador - berrei para ele que revirou os olhos.

Katrina estava na barraca que vendia peças de bijuterias feitas por algumas garotas da escola e blusas brancas que diziam coisas como: #amo#animais; #tudoparaosorfãos; estive.aqui.e.gostei. Joshua estava na barraca quase em frente à dela, que vendia cachorros-quentes. Eles se olhavam de um jeito bem fofo.

– A salsicha está queimando - berrei para Joshua.

Vi pelo canto do olho, Katrina corando. E Joshua me fuzilou com os olhos. Hoje eu estava berrando muito.

Na quermesse da escola, as barracas eram organizadas de modo a criar a sensação de um labirinto, para fazer os visitantes passarem por todas elas antes de encontrarem a saída, que ficava ao lado da barraca ridiculamente rosa, com corações vermelhos laminados espalhados por todo canto.

Eu e Giane deveríamos cuidar daquilo juntas. Mas ela continuava mal. E piorava a cada dia. Vê-la em cima da cama com máquinas ligadas a si aumentava a sensação de que ela havia partido. Mas eu me recusava a aceitar. Eu ia para o hospital todas as noites e contava a ela o que havia acontecido durante o dia na esperança de que ela acordasse para fazer um de seus comentários mordazes.

– Oi - falei para o chefe da barraca, que substituía o posto da irmã.

– Oi - Lucius disse.

Ele havia cortado o cabelo e parecia mais magro. Era como se estivesse enfraquecendo junto de Giane e igualmente este eu não conseguia alcançar para ligar a válvula de "Estou vivo e vou sair gritando isso". Ele estava sozinho e o azul da blusa da quermesse o deixava mais doentio ainda. Mas eu gostei. Ele sempre ficaria bem de azul para mim.

– Bela blusa - ele disse depois de me analisar como fiz com ele.

– A diretora também achou. Pense! - ironizei.

Mas claro que ela havia odiado. Cortei tiras das laterais da blusa, deixando minha pele da cintura exposta e havia escolhido um tamanho pequeno e marcado o nome da escola com spikes pretos. Ela quase enfartara.

Lucius e eu começamos a trabalhar. Não foi fácil. A barraca era do tamanho suficiente para duas pessoas ficarem sentadas. Mas Lucius mesmo magro e abatido era grande o suficiente para invadir meu espaço e me obriguei a ficar em pé organizando os recados que ele leria e os que eu leria. O certo era para dividirmos, mas ele ficava com a maioria. As pessoas podiam escolher e as garotas que vinham até a barraca escolhiam apenas ele e percebi que alguns dos bilhetes eram elas que escreviam para si próprias. Quase choro de tão ridículo que era. E comecei a cobrar um real a mais. Elas não se importaram.

Lucius percebeu e disse com um sorriso sincero, p primeiro que o vi dar entre aqueles falsos carregados de educação:

– Está cobrando mais? Tipo bandeira dois?

Dei de ombros.

– Tudo pelas criancinhas. E elas não se importam em pagar pelo meu silêncio. E tuuudo pelas criancinhas.

– E aí? - disse o cara do terceiro que havia assobiado mais cedo - Quanto devo pagar para mandar um?

Ele sorria bastante. E era um sorriso lindo. Valia muito ver aquilo.

– Depende da voz que prefere. Três pela dele e dois pela minha.

– Por que a sua é mais barata? Deveria ser o contrário.

– É que aqui cobramos pelos graves. Agudos não são bem vindos nesse mundo rock’n’roll.

Ele riu. Era uma risada bem normal. Mas seus olhos sumiam quando ele ria e isso era uma graça.

– Pago para a dele. Sem ofensas. Depois vai entender o motivo.

– Hum - murmurei enquanto ele me pagava e dei a ele um papel rosa em formato de coração.

– Até - ele disse e me entregou o papel depois de nele ter escrito.

Sorri em resposta.

– Aqui - passei para o Lucius sem olhar para ele.

Nossos dedos se tocaram e não havia sido a primeira vez e nem seria a última. Mas desta vez havia sido diferente. Havia ternura e um algo a mais. Saudade.

Ele riu sem humor. Daquela risada eu gostava.

– Não vou ler isso. Pode fazer isso por você mesma.

– Ele escolheu você... Ham. Como assim?

– Foi para você - ele revirou os olhos e desligou o microfone.

– Me dá o papel então.

– Para quê?

Respirei fundo.

Bem fundo.

– Me dá, Lucius - pedi calma.

Ele me passou o papel. Eu sinceramente pouco me importava com o que havia sido escrito e menos ainda em responder. Amassei o papel e o joguei no lixeiro aos meus pés.

– Nunca vai entender que escolhi você? Mesmo que tivesse lido o que estava escrito, isso não mudaria.

– Minha última idiotice fez mudar?

– A crise mais recente por causa do bilhete? Ou a daquela noite, com Sebastian?

– Todas essas vezes e mais outras.

– Mudou sim. Mas não minha escolha. Ficou mais intenso, entende?

– Sim. Estranhamente aconteceu o mesmo comigo. Estranho não é?

– Bastante incomum - confirmei.

Lucius me olhou com olhos meigos e gentis. O espaço entre nós parecia tornar-se menor a cada segundo e era claro o que eu queria e o que ele também queria.

– A Eli está te chamando, Ruby e a você também, Lucius - avisou Katrina nos interrompendo - Está na hora de trocar de tarefas.

Olhei para ela com gratidão. Eu gostava dele tão certamente como ele gostava de mim, porém entre nós dois havia uma infinidade de obstáculos que eu não me sentia com força para superar. Eu não voltaria tão cedo para a segurança de seus braços. Não era orgulho. Era o desejo desesperado de evitar confusão e de ter uma vida tranquila e previsível.

– Ótimo. Estava cansada dessa caixa.

Ela sorriu.

– Igualmente - falou Lucius.

– Quem vai ficar aqui com você, Kat?

Ela pareceu confusa. Bateu com um dedo longo no queixo fino.

– O professor Joshua, eu acho. Sem certeza.

– Deve ser - estreitei os olhos.

Lucius arqueou a sobrancelha e tratei de me afastar. Katrina e eu havíamos lido a lista de tarefas algumas vezes e ela havia decorado todas as possibilidades de estar perto de Joshua.

Enquanto procurávamos Elli, um alvo difícil em meio a uma multidão de alunos e seus familiares, o céu foi colorido por aquelas cores. E ganhou aquela tonalidade perfeita. Rosa. Laranja. Vermelho. Amarelo. Rosado. Alaranjado. Avermelhado. Amarelado. E ao que parecia o céu não ficaria cinza. Mas do cinza eu gostava também.

– Gosta das cores?

– Muito, Lucius. É incrível como a natureza parece uma exposição constante de lindas pinturas.

– Deveria voltar a pintar. Vi paixão em seus olhos quando disse isso.

Olhei para ele, surpresa.

– Como sabe disso? Nunca te falei.

– Lembra-se do dia em fui na sua casa enquanto chovia? Depois que parou de chorar, você adormeceu em meus braços e ouvi um barulho vindo de fora. Seu tio havia chegado e achei que seria constrangedor demais encontrar com um professor naquelas circunstâncias. Enquanto procurava papel para deixar um bilhete antes de ir, achei uma pasta cheia de desenhos com sua assinatura. Passei tanto tempo para ver todos que Joshua entrou no quarto e me viu. Ele é bacana mesmo. Tratou-me bem, não me acusou de nada e me levou para casa no carro dele, quando eu falei que estava saindo. No caminho ele me contou sobre seu talento e porque havia parado de pintar.

– Ele é um traidor - falei - E se você mexer nas minhas coisas de novo, eu acabo com você.

Ele riu escandalosamente.

– Finalmente achei vocês! - disse Elli - Lucius, para a barraca de tiro ao alvo. Ruby, cachorro-quente.

Ela voltou a andar sem esperar respostas. Elli era uma fúria em tamanho compacto com licença para mandar.