– Lucius - cantarolou Giane quando entrou.

Os olhos de Giane cercados por uma aura de lápis negra se arregalaram absurdamente como se estivessem com a vontade de sair correndo. Eu própria correria se Lucius não estivesse com a mão em minha cintura me prendendo a si.

– Pula daí! - ela disse batendo a porta com força.

Pelo tom de voz percebi que ela estava falando comigo e foi o que fiz, com dificuldade. Ela havia me encontrado aos beijos com o irmão dela. Não havia momento mais constrangedor para mim do que este. Nem mesmo quando tropecei no nono ano na frente dos garotos mais lindos da escola e sai rolando por uma escada.

– Nossos pais estão chegando - falou Giane contendo o riso.

Alisei minha roupa freneticamente e pelo canto do olho vi Lucius fazer o mesmo. Passei as mãos pelo cabelo, sentindo as marcas de unhas no pescoço do Lucius relampejarem como faróis. Giane percebeu e riu debochadamente se dobrando em uma pose exagerada.

– Não dava para ter enrolado eles? - indagou Lucius.

– Como eu ia saber que vocês estavam se engolindo no sofá? - Giane deu de ombros e se afundou no sofá maior.

– Não estávamos - falei baixo.

– Não? - perguntou Lucius erguendo as sobrancelhas.

Joguei uma almofada vermelha e pesada em cima dele e sentei ao lado de Giane. No segundo seguinte a porta foi escancarada e um casal entrou por ela. Flora estava radiante, com os olhos brilhantes e os lábios rubros como o sangue, a pele resplandecente em um vestido florido e longo, e o braço entrelaçado ao braço de um homem alto, com uma expressão taciturna. Tirando a carranca e uma barba bem cortada - e os sinais da idade, como o cabelo negro salpicado de branco - o homem se parecia bastante com Lucius; até mesmo na curva suave dos lábios e no escuro profundo dos olhos.

– Boa noite, querida! - exclamou Flora como se fosse há muito tempo minha melhor amiga e me puxou para um abraço - Está melhor da cabeça.

Giane riu.

– Até você Flora percebeu que ela tem problema mental? - Giane perguntou.

– Já falei para parar de chamar sua mãe pelo primeiro nome - brigou o pai de Lucius em tom severo.

– Quer que eu chame pelo sobrenome? - ela retrucou.

– Vocês poderiam, por favor, respeitar a visita? - indagou Flora em tom mediador calando os dois - Este é meu marido Xavier e está é Ruby, amiga dos nossos filhos.

– Olá, Ruby - ele apertou minha mão em um aperto macio.

A mão dele era tão lisa que parecia borracha.

– Olá, senhor - falei rouca.

– Ruby veio para dormir aqui, mamãe, pai. Pode ser? - falou Lucius.

– No seu quarto ou no de Giane? - Xavier indagou.

Dizer que fiquei vermelha deveria ser considerado um eufemismo. Aproveitei a deixa e afundei no sofá, ao lado de Giane.

– Xavier - censurou sua esposa batendo de leve em seu ombro - Claro que pode, querida, conheço sua amizade com Giane.

– É ela quem me leva para o mau caminho - murmurou Giane baixo só para eu ouvir.

Afundei discretamente meu cotovelo nas costelas dela.

– Lucius, o que foi isso em seu pescoço? - indagou Flora largando do marido e indo até Lucius.

Ela passou a mão longa no pescoço do Lucius, circundando os arranhões recentes de unhas. Sentei sob as mãos, tentando esconder as armas do crime.

– Nada de mais, mamãe - ele disse em um tom extremamente gentil.

Lucius gentil era algo raro de se ver. Flora saiu para trocar de roupa, e Lucius se ofereceu para cozinhar nosso jantar. Se não fosse por Xavier ter se postado na bancada que dividia a sala da cozinha, eu teria ficado ao lado de Lucius. Acabei seguindo Giane para o seu quarto, preferindo o interrogatório que ela faria a ficar em um ambiente com Xavier e Lucius. Algo na forma como Lucius se portara desde que o pai entrara na cabana insinuava que havia uma conturbação na relação dos dois maior do que imaginei.

E, os olhos observadores de Xavier pareciam ser capazes de desmiuçar cada um dos meus segredos, o que eu preferia evitar com todas as forças.

– Ok. Vomite - disse Giane deitando em sua cama.

– Como é que é?

– Conta como foi parar em cima do meu irmão - ela deu de ombros.

Afundei no chão, desistindo da minha primeira reação quando me pressionavam: mentir.

– Nos beijamos, e estamos namorando - falei sentindo cócegas na língua ao falar "namorando".

– Você é rápida. Nem faz um mês que terminou com o cabelinho de anjo e já está agarrando o outro.

Não havia acusação em sua voz. Nem emoção alguma. Fora a primeira vez que ela mencionara Vini sem raiva e isso foi bom.

– Tem problema em eu estar com seu irmão?

– Não, de boa. Contanto que não me culpe quando ele estraçalhar seu coração - ela falou.

– Você não está falando sério, está?

– Ruby, - ela saiu da cama e em seguida sentou ao meu lado - o meu irmão não é um cafajeste como aquele que conhecemos, e com certeza não é nenhum santo. O que quero dizer é que, se algo der errado não quero retaliação para o meu lado.

Giane estava sendo sincera como nunca vi antes. A capacidade que ela tinha para se adaptar ao que era necessário para a ocasião era espantosa...

– Então você saiu chateada da roda da fogueira para se atracar com o bonitão? - perguntou ela sorrindo maliciosamente.

Assim como sua curiosidade tendenciosa para coisas, no mínimo, quentes. Dei de ombros e iniciei minha mais recente aventura.

... Lucius estava na cozinha terminando de lavar os pratos, enquanto eu estava ao seu lado enxugando a louça e guardando ela nos lugares certos que ele havia me mostrado antes em cada armário. Ele havia cozinhado para nós algo sem nome, aquele tipo de comida que se vale apenas pelo gosto incrível. Meu conceito sobre ele havia subido muito com aquele macarrão parecendo sopa, com queijo derretido e pequenos pedaços de presunto.

– Não durmam tarde, queridos - falou Flora da área da sala, além do balcão.

– Pode deixar - responde Lucius por nós dois.

Flora nos deixa, indo para onde seu marido foi logo após o jantar, sem deixar espaço para conversa. A certeza de que ele não ficara conosco por minha causa era pequena diante a leveza que era um ambiente sem ele. Flora, Giane, Lucius e eu tivemos uma sucessão de boas conversas, que foram de assuntos do cotidiano, como a escola e o trabalho de Flora como paisagista às conversas mais pessoais sobre a minha família. Ficar com eles era bom e a todo o momento percebi olhares suspeitos que Flora alternava entre eu e seu filho, que ficara todo tempo a uma distância segura de mim.

– Giane é um doce, diz ela que nos deixou com o trabalho sujo para nos dar um tempo a sós - falei assim que guardei a última louça no armário retangular com tinta laranja descascada.

– Ela é esperta mesmo.

Sentei na beirada da pia de mármore, cruzando os tornozelos com força.

– Flora é incrível - falei.

– É impressionante, não é, ela ter acolhido o filho de outra mulher? - ele indaga irritado.

– Opa. Relaxa, camarada, quem urinou no seu cereal?

– Como? - ele perguntou confuso - Quem fez o quê?

– É um ditado. Nada popular - balancei a cabeça - O que te deixou tenso assim?

Lucius fez que não com a cabeça e eu o puxei para mim pelos ombros. Ele encostou a cabeça em meu ombro com facilidade já que a altura do balcão me deixa da altura dele. Acariciei seu cabelo, brincando com o brilho da luz naqueles fios.

– O que houve, Lucius?

– Meu pai foi um babaca com você à noite toda, soltando piadinhas sujas.

– Eu não ligo. É sério. Não sou a filha dos sonhos nem do meu pai, imagina dos outros pais.

Lucius riu sua risada estranha, que expulsou sua tristeza.

– Me conta sobre sua mãe - soltei o que queria perguntar desde que vira Flora pela primeira vez e senti vontade de me bater em seguida.

Lucius saiu dos meus braços os deixando pender solitários. Ele analisou apenas meu rosto com olhos negros que perscrutavam tudo tão parecidos com os do pai.

– Ainda não é hora para isso.

– Mas, Lu...

– Mas nada, Joia. Em três dias você soube de coisas minhas que poucos sabem. Soube mais do que seria seguro ficar sabendo. Acho melhor irmos devagar de agora em diante.

– Vai dar as cartas agora?

Lucius entrelaça os braços em minha cintura e me arremata para seus braços, colando nossos corpos.

– Sempre. Agora quem decidi o que fazer com elas é você.

Ele calou minha réplica com um beijo suave nos lábios. Apenas um doce e cálido beijo. Como um sonho.