Antes da cidade onde vivo ser considerada cidade, ela passou um período onde era dominada por uma única família, os Dashkov, que detinha alto poder econômico. Eles eram cruéis com os demais e sugava da população pequena o pouco que eles tinham. Então, vindos de outro continente, três irmãos livraram este território das garras daquela família.

Esta história é cheia de furos porque foi passada de geração para geração oralmente e as pessoas sempre gostavam de acrescentar detalhes à trama. Alguns contavam e acreditavam que a família era composta por vampiros sanguinários e que os três irmãos eram caçadores dessas criaturas. Os únicos documentos que temos são os registros do cemitério da época, com um número grande de enterros e uma estátua que fica no centro da cidade dos três forasteiros sem nome.

Ganhamos uma lenda e um feriado de três dias, sempre no mês de Maio, para a alegria das senhoras de nossa sociedade, que amavam oportunidades para criar eventos em que todos conviviam juntos. Por isso havia o Acampamento de Feriado. Seriam quatro dias, começando no domingo - que servia apenas para a instalação das pessoas - recheado de atividades em conjunto, como gincanas, noites ao redor da fogueira e torneio de futebol para pais e filhos.

– Odeio isso – gritei e chutei minha mala que rodou até a rua.

– Você é tão meiga, minha neta – disse vovó sentada em uma cadeira em frente a nossa casa enquanto eu puxava minha mala de roupas para a calçada.

Meu pai havia dito que era para eu estar pronta as sete e foi isto que fiz. Minhas duas malas estavam prontas com tudo o que eu precisaria para sobreviver àqueles dias. Eu já havia tomado café da manhã bem reforçado para não sentir fome durante a viagem de carro que duraria cerca de duas horas. E já eram nove horas e ele ainda não havia chegado.

– Eu odeio acordar cedo e odeio mais ainda esperar por alguém que marcou um horário – destilei de novo de péssimo mau humor.

– Ele já está chegando – minha avó disse sem tirar os olhos do livro que estava lendo.

E estava chegando mesmo. O carro tinha vidro fumê, mas eu o reconheci fácil. Assim que ele parou, esperei que meu pai abrisse a porta malas, mas isto não aconteceu. Ele deve ter entendido o que eu queria, pois abaixou o vidro do banco do carona e dei de cara com Cat, que vestia um vestido estampado com flores e usava brincos enormes. Como se isso não bastasse, o rosto dela parecia plastificado de tanta base e pó que ela havia usado, não estava feio porque estava de acordo com sua pele clara, mas dava para sentir aquela espessura que parecia massa corrida.

– Pensei que iriamos para o mato.

– Bom dia, Ruby – meu pai me cortou.

– Bom dia, querida – disse Cat e sorriu mostrando todos os dentes.

– Filha, você vai ter que levar suas malas aí atrás porque o porta malas está ocupado com as coisas da Cat.

– Isso não me surpreende.

Abri a porta de trás e joguei minhas malas lá atrás bruscamente. Despedi-me da minha avó que entortou o nariz quando Cat acenou para ela e fui para o carro. Bati a porta com tanta força que Cat se assustou e borrou o batom vermelho que estava passando.

– Desculpe a Ruby, Cat, ela acha que ainda tem idade para fazer birra – disse meu pai começando a dirigir.

– Em falar em idade, qual é a diferença entre vocês? Tipo, sei lá, minha idade inteira? – perguntei provocando mais ainda.

– Ruby – meu pai parou o carro e se voltou para mim.

Abaixei a cabeça por estar chocada com o quanto ele parecia velho e abatido. Não que algo tivesse mudado drasticamente no rosto dele, o cabelo preto já estava salpicado de cabelos cinza antes e o rosto já possuía fortes marcas de expressão. Era algo mais interno e foi então que me lembrei dos quadros que vi dele. Nada surpreendente e nada terminado. Quadros sem vida e isso me fez sentir compaixão, pelo menos um pouco. O suficiente para me fazer ficar calada até o fim do dia para não irritá-lo.

– Querido, não se preocupe, ela deve estar zangada porque acordou cedo e teve que nos esperar – disse Cat gentil e pegou no braço dele – Eu ficaria do mesmo jeito, Ruby.

Meu pai deixou por isto mesmo e voltou a dirigir. Coloquei meus fones em meus ouvidos e dei play em uma música qualquer. A música mal havia começado e recebi uma mensagem de um número que não reconheci.

“Não gostaria que ficasse em meu caminho. Não é saudável – Cat Fiore”

Olhei para o banco do carona e Cat levantou seu celular. Meu pai nem chegou a perceber e eu nem me dei ao trabalho de me importar. Eu já sabia que ela me ameaçaria por causa do que eu havia dito. Aquela história de que loira é burra é muito mentirosa porque Cat era loira e havia compreendido muito bem minhas alfinetadas.

Eu estaria bem acompanhada nos dias que se seguiriam: um ex-namorado traidor; um pai com o qual tenho uma relação difícil; e mais recente, uma madrasta mimada que me ameaçou.

Minha vida estava ficando cada vez mais parecida com aquelas novelas que não gosto.