Saí do hospital achando que já teria escurecido, mas me deparei com um sol forte e que parecia gozar da faixa no meu braço esquerdo, como se dissesse “curta este belo dia trancada em casa se curando”. Se bem que depois de ter perdido as pessoas que pensei serem minhas amigas meu fim de semana havia se tornado em algo tedioso. Mas até que eu gostava de ficar só. O problema estava em aguentar meu braço daquele jeito.

Antes de ter alta, um médico que não parecia ser mais velho do que eu me explicou que eu não sentira nada na hora por causa de um surto de adrenalina. Eu já havia lido a respeito e conhecia muito sobre o assunto, no entanto eu nunca sentira nada daquele jeito. Ele continuou dizendo que eu tivera sorte – continuo não acreditando nisso – de o vidro não ter se fragmentado no meu braço porque isto daria trabalho. Não levei muitos pontos porque meu braço não tem tanta carne assim, porém o vidro havia aberto um talho que me fizera perder sangue consideravelmente.

Ana estava pior. O pedaço de vidro que a cortou era tão grande quanto o que eu pensara e tinha chegado a arranhar o osso da perna dela. Racionalmente eu sabia que o que eu fizera ao nos lançar ao chão tinha diminuído a área de impacto de nossos corpos, evitando que órgãos vitais fossem almejados pelo vidro. No entanto a parte sentimentalista em mim – que era irracional – se culpava por eu não ter evitado aquilo.

Em seguida a visita do médico, entrou no quarto hospitalar dois policiais uniformizados. Eles queriam o meu depoimento sobre o que acontecera, mas eu não conseguia lembrar-me dos detalhes. Nem a cor do carro eu conseguia lembrar. Mamãe afirmou, como médica, que o trauma, o surto de adrenalina e os remédios que tomei para evitar a dor dificultariam minhas lembranças do momento do acidente.

A frustração na cara dos policiais era visível. Mas não era tão forte quanto a minha própria frustração por não conseguir lembrar-me dos detalhes. Eu me senti inútil e eu odiava me sentir assim.

À noite já chegava, deixando o céu escuro e poucas estrelas brilhavam naquele manto. Eu estava sentada na janela de forma precária, tentando esquecer-me do meu braço que latejava cada vez mais. E ele ainda estava dolorido evitando que eu o mexesse direito. Olhei para dentro do quarto para analisar mais uma vez aqueles cartões de melhoras espalhados ali. Havia até mesmo jarros com flores. Era um sinal de que as pessoas se importavam comigo. Porém depois de ter tido que espantar algumas abelhas que entraram atrás do pólen das flores eu estava achando tudo aquilo um pouco exagerado.

Na verdade, era completamente exagerado. Aos 12 anos eu havia me cortado mais profundamente com uma faca e ninguém nem veio me ver. Penso que é porque não é nada heroico se cortar com uma faca quando se corre estabanada com ela na mão. Mamãe abriu a porta do quarto.

– Quer ligar para o seu pai, querida? – ela indagou, arregalando os olhos em seguida.

Minha mãe não gostava nem um pouco quando eu ficava sentada na janela. Acho que ela me imaginava caindo e quebrando o pescoço. O que eu acho difícil porque minhas pernas são maiores do que a altura entre o beiral da janela e o chão do quintal.

– Eu tenho escolha? – retruquei.

– Sempre temos escolhas.

– Não obrigada – respondi olhando para fora enquanto mais estrelas brilhavam.

– Ele vai acabar sabendo por outras pessoas – ela tentou.

– Não estou emocionalmente disposta a lidar com ele agora – respondi sinceramente porque era assim que eu me sentia.

Eu tentava ao máximo não me importar com ele só que eu já sabia que ele já conhecia o que havia acontecido a mim. Eu estava indo para a cozinha a procura de algo para comer quando ouvi minha mãe discutindo com ele por ele não ter ido me ver. A dor de ser ignorada pelo próprio pai era maior do que a que eu sentia latente em meu braço.

Minha mãe saiu do quarto sem dizer nada. Ouvi apenas a porta fechando e passos se distanciando. Encarei mais uma vez o céu e saí da janela, a fechando apenas com um braço.

A única coisa que tiraram do meu corpo quando fui atendida além dos meus óculos havia sido o casaco preto que o Lucius me emprestara. Vi o casaco em uma cadeira perto da minha cama quando acordei pela segunda vez e me assustei com o que estava em cima dele. Havia uma flor do campo laranja com o caule verde e comprido descansando placidamente ali. Era a minha flor preferida e eu tinha uma leve sensação de que quem a deixara ali fora o dono do casaco.

A flor repousava em cima do meu criado mudo. Eu ainda não a havia posto em um jarro nem em nada para durar. Senti um cheiro forte e convidativo assim que apertei o casaco em meu rosto mesmo depois de ter esfregado a manga que continha meu sangue até ele sair. Era um perfume que eu reconhecia ser do Lucius. Havia um rasgão no lugar onde fui atingida e de certa forma eu achava que o antigo dono nem iria reclamar. Acho que eu pretendia guardar a flor e o casaco para mim pelo tempo que durasse o infinito.