Esmeralda acordou sentindo um estranho calor ao seu redor; ergueu a cabeça, e um enorme sorriso se espalhou por seu rosto ao encontrar Aaron olhando para si, o braço passado por sua cintura, o semblante sereno e extremamente feliz.

— Eu poderia acordar todos os dias desse jeito, e nunca me cansar da visão – sorriu a moça, beijando os lábios de seu amado – dormiu bem, meu amor?

— Um sono como não tinha desde menino. – ele acariciou o rosto da cigana, fascinado – não imagino que feitiço lançou sobre mim, mas sinto como se fosse um novo homem. Alguém muito mais feliz... Alguém digno de ser amado.

— Hm, então estou lhe fazendo bem – riu-se a jovem. Ele sorriu e deitou-se sobre o corpo pequeno, mas ela o empurrou delicadamente, ainda rindo:

— Nem pensar, Monsieur! Essas coisas não são feitas de dia! – a garota escapou aos braços de seu amante, que deitou-se de costas e esfregou o rosto, imaginando como alguém podia já acordar com tamanha disposição e energia.

— E o que se faz, a esta hora?

— Trabalhar, ou não haverá desjejum. – ela se vestiu sem ligar para o olhar de seu amado sobre seu corpo seminu, e ao ver que ele ainda não acordara de todo, puxou o cobertor de uma vez, marota – ande logo, preguiçoso! Se quer ser amante de uma cigana, é melhor se acostumar ao trabalho!

— Será que fiz um bom negócio? – ele sorriu e se levantou, empurrando Esmeralda contra a parede – seria muito pedir um suborno para começar bem o dia?

Ela arqueou uma sobrancelha, um sorriso torto nos lábios bonitos antes de puxar o homem para um beijo profundo e apaixonado, que se encerrou apenas depois de longos minutos.

— Você é um vício – sussurrou a moça, antes de fugir aos braços de Aaron e pegar as roupas dele no chão, jogando-as sobre seu amante – agora trate de se vestir, e venha me ajudar. Tenho de ordenhar a mãe de Djali, assar pão, ou não comeremos hoje.

— sempre começa os dias tão rápido? – perguntou Aaron, enquanto vestia o colete por sobre a camisa, e o casaco por cima de ambos.

— aproveito bem o meu dia. – assegurou a morena ao abrir a porta. Aaron juntou-se a ela e saíram juntos da kampína. Dois ou três passantes os fitaram por alguns segundos antes de prosseguirem seus caminhos, e o fato incomodou ligeiramente o francês; a latina, porém, não parecia minimamente incomodada.

— Não se importa que boatos se espalhem? – perguntou o moço, preocupado com a reputação da jovem.

— boatos? Sobre sermos amantes? – ela pegou um balde de madeira e começou a arrancar plantas gramíneas que cresciam junto a sua moradia – não são boatos se falam a verdade.

— Não a incomodam? – ele se abaixou para ajuda-la, mas foi parado pelo olhar penetrante da mulher, que falou pausadamente:

— Eu só vou dizer uma vez, Aaron, então guarde bem minhas palavras: eu não tenho vergonha de você. O fato de eu ter um amante talvez fosse uma preocupação, se nosso clã fosse mais conservador, mas a dizimação de nosso grupo nos obrigou a ser mais flexíveis em relação às exigências quanto a certos comportamentos. Eles olharão para você com alguma desconfiança, no começo, mas se provar com suas ações que merece a confiança deles, acabarão por aceita-lo.

— Fala como se algum dia pudessem me aceitar de fato. Como um de vocês.

Esmeralda o fitou longamente, pensativa, mas logo retomou sua atividade de colher cardos verdes e encher o balde com as resistentes ervas daninhas. Aaron, porém, conhecia sua amada, e perguntou:

— em que está pensando?

— nada demais. Devaneios, hipóteses, possibilidades. Nada concreto.

— Conseguirei saber algo, se insistir?

— Não mesmo. – ele suspirou, resignado, e seguiu a adolescente até o curral das cabras. Era tudo novo e instigante, e mesmo a simples ideia de conhecer melhor o mundo e a vida da mulher que roubara seu coração e mudara sua existência o enchia de inédita curiosidade e ansiedade.

— Para que estamos colhendo cardos? – perguntou o gigante, curioso.

— alimento para as cabras – respondeu a jovem, pegando o balde – nunca cuidou de animais, não é?

— Apenas cavalos. – confirmou o moço, seguindo a jovem em direção ao rebanho de cabras – e por pouco tempo.

— Bom, vamos remediar isso – ela o puxou pela mão – melhor se abaixar: elas são domesticadas, mas não conhecem seu cheiro e podem se assustar. E os chifres fazem um belo estrago... Uma vez dei vinte pontos na coxa de um homem desavisado que assustou um filhote. A mãe veio em defesa de seu bebê e... Pode imaginar o que houve.

— Algo me diz que está se divertindo muito em me levar para uma situação em que eu poderia ser morto. Já é a terceira vez que faz isso.

— Bom, os soldados não te mataram, nem os Rrom – ela riu baixinho – talvez eu dê sorte com as cabras.

— Engraçadinha.

— Pare de resmungar e ofereça os talos a elas desse jeito – a menina estendeu alguns talos verdes para os animais perto de si – fará com que associem você ao alimento. – um sorriso enorme se desenhou no rosto da cigana, que se ajoelhou e recebeu nos braços uma bolinha branca e saltitante – ah, Djali! Com fome, querida? – com carinho, ela segurou o filhote num braço enquanto lhe dava de comer – devagar, esfomeada!

— Tem muito carinho por sua mascote – Aaron admirava a gentileza e amor com que Esmeralda tratava até mesmo os animais, e isso apenas aprofundava seu amor por ela. A cigana era a criatura mais humana, bondosa e altruísta que já conhecera, como uma criatura angelical enviada por Deus para amenizar o sofrimento dos que a conheciam.

— Djali quase morreu depois do parto; ficou doente e a mãe dela a rejeitou, então cuidei dessa coisinha por uma semana, até que ficasse forte e sua mãe a aceitasse. Desde então ela pensa que sou algo como uma segunda mãe. – a cigana ria enquanto empurrava Djali para o lado e amarrava as pernas da cabra branca que era mãe do filhote. As mãos experientes logo fizeram verter o leite para o balde, e ao cabo de alguns minutos tudo terminara. Ela soltou a cabra e deixou o filhote mamar, voltando-se sorridente para seu amante:

— E é assim que começamos o dia.

Voltaram para a kampina de Esmeralda, em cujo compartimento inferior – similar a um porão – pegou uma medida de grãos; logo em seguida levou-o para o centro do acampamento:

— Os homens cortam lenha, as mulheres fazem o desjejum. – ela lhe entregou um machado – sabe usar?

— Não deve ser difícil – sorriu o gigante, vendo os homens junto à pilha de lenha recolhida.

— Não seja indelicado, mas também não ligue se lhe lançarem olhares estranhos. Eles se acostumarão, com o tempo.

— Ou enfiarão uma faca no meu pescoço – riu o moço, mas não estava tão nervoso quanto estivera no dia anterior. Na verdade, sentia-se estranhamente à vontade naquele lugar, como se pertencesse àquela vida.

— Não se você não puxar uma faca primeiro. – sorriu a moça, começando a misturar o leite, o mel e a farinha de cereais para fazer um pão – ah, e tente não cortar o próprio pé com o machado, está bem?

— Engraçadinha. – o organista não podia estar mais feliz, enquanto seguia para junto dos outros homens. A princípio, como Esmeralda dissera, olharam-no de modo desconfiado e falaram entre si em Romani e Espanhol; o primeiro idioma era estranho ao francês, mas as línguas ibéricas não consistiam em desafio aos ouvidos do músico. Assim, pôde compreender os comentários maldosos sobre sua aparência e tamanho, assim como censuras ao comportamento escandaloso de Esmeralda e Miro que, sendo casados entre si, não apenas não haviam consumado o casamento como ainda mantinham amantes. E por cada maledicência sobre sua amada o antigo sineiro desejava usar o machado não nas toras, mas nas cabeças dos ciganos. Finalmente, irritado, respondeu em espanhol perfeito:

Por qué hablan de lo que Miro y Esmeralda hacen, si son casados y decidieron juntos como habríam de vivir?

Mais do que surpresos com a pronúncia perfeita do francês, os Rrom silenciaram por alguns instantes, antes que Lorenzo se dirigisse ao homem deformado:

— Não tem direito de voz, aqui, Gajô.

— Talvez não tenha voz em relação aos assuntos do Pátio, mas, até onde me recordo – o organista não se deixou intimidar – fui incumbido de proteger Esmeralda. E é o que farei, mesmo contra simples maledicências.

— Parece corajoso demais para alguém que perdeu a proteção de seu caro padrinho inquisidor. – acusou o mais moço. A discussão teria seguido acirrada se o mais velho não respirasse fundo, decidido a não alimentar as animosidades no local:

— Eu entendo sua raiva por mim, rapaz. Sei que a mereço em todos os seus aspectos, mas isso não muda o fato de que Esmeralda e eu estamos juntos. Eu a amo, e jurei diante de Deus e dos homens protege-la contra todo o mal, até que chegue a época de seu povo partir. Até lá, você me verá por aqui eventualmente, e não pretendo ser desrespeitoso ou violar qualquer regra do povo de Esmeralda. Deseja uma discussão? Procurou no lugar errado. Quer sangue? Sinta-se à vontade para derramar o meu, mas lembre-se bem de que sou a única pessoa que conheceu o Juiz Frollo e, conhecendo seu modo de agir, pode proteger aquela garota de suas más intenções. – ele se virou e golpeou um pedaço de lenha com o machado, partindo ao meio com um só golpe uma tora que os outros haviam desistido de cortar – entenda isso: se eu quisesse lhes causar mal, já teria causado. Não é minha intenção. Não desejo brigas, sangue ou sofrimento. Já tive o bastante disso para toda a vida. – ele olhou para onde as mulheres se juntavam – ela é tudo o que me importa.

Diogo e Lorenzo pareciam perplexos, como se aquelas palavras fossem tudo o que não esperassem ouvir. Ante a mudez dos dez homens ao seu redor, o gigante deu de ombros e finalizou:

— Pensem o que quiserem de mim. Apenas deixem-me em paz, e respeitemos um aos outros, para haver alguma paz.

O silêncio permaneceu, quebrado apenas pelo som dos toretes sendo quebrados pelas lâminas. Quando havia o suficiente, Aaron encheu os braços de lenha e levou a pilha até sua amada, que já acendera o fogo com pequenos galhos e começou a colocar os pedaços maiores sobre as chamas fracas da fogueira, que logo se avivou e começou a crepitar. O pão estava modelado e foi posto no simples forno de barro, pouco mais que um buraco no chão revestido com pedras, enquanto o leite fervia sobre as brasas.

— Problemas com os outros, querido? – perguntou ela, preocupada.

— Alguns. Mas nada que eu não esperasse, ou com os quais não possa lidar.

— Sinto muito por isso... Há algo que...? – ela ia continuar a pergunta, mas ele a silenciou pousando um dedo sobre os lábios rubros:

— Não peça desculpas. Isso acontece comigo desde sempre, e com motivos bem menos razoáveis do que ressentimento pelo número de pessoas que ajudei a perseguir e matar. – ele sorriu – Na verdade, meu amor, eu não me lembro de já ter sido tão feliz em minha vida. – a mão enorme pegou a da moça e a levou a seus lábios, beijando suavemente os dedos cor de bronze – obrigado. Obrigado por tudo. Por ter entrado em minha vida, por ter me ensinado o que era a bondade, a compaixão... O amor.

Os olhos verdes da cigana ficaram marejados de lágrimas quando ela acariciou a máscara que cobria o rosto de seu amado; queria poder retirar as dores que ele carregava, substituir as memórias ruins por amor puro, mas isso era impossível. Só o que podia fazer era dar a ele todo o amor que tinha, e esperar que isso curasse as antigas feridas.

— Eu amo você. – sussurrou a adolescente, o que arrancou um sorriso do artista, que a abraçou e respondeu:

— Não mais do que eu a amo... Feiticeira.

O casal trocou um sorriso e deixou que suas frontes se tocassem, os olhos cerrados em confiança e amor que todos os passantes podiam perceber com a clareza do dia. E por mais errado, improvável e espantoso que pudesse parecer, fato era que poucas vezes haviam visto um casal que emanasse tamanho amor mútuo. Algumas das mulheres mais velhas – as anciãs do grupo – olhavam para ambos e franziam os cenhos: não era o tipo de casal que aceitaria se separar ao fim do inverno. E se o fizesse, o que restaria seriam dois corações despedaçados, impossíveis de se consertar. Mas que alternativa haveria? Certamente Esmeralda não poderia ficar em Paris, a qual se lhe tornava mais e mais perigosa a cada dia... Mas como poderiam aceitar um Gajô, um estranho no seio de sua comunidade? Além disso, por mais que Aaron protegesse a cigana contra o juiz... Não seria ele próprio um perigo para a menina? Ele, com toda a sociedade hostil e hipócrita da qual era representante? Esperança e preocupação dançavam juntas nos olhares antigos, que viam muito mais do que as imagens chamadas de reais. Viam futuros possíveis: alguns belos, outros temíveis. Mas qual deles haveria de se concretizar?