Uma das vantagens de ter uma prima rica é poder ter um quarto só pra você na casa dela. Abri os olhos devagar. O espelho grudado na parede do quarto, bem de frente pra cama, me assustava. Levantei lentamente e encarei meu cabelo desgrenhado e meu rosto amaçado refletidos no espelho. Pisquei, bocejei e revirei os olhos ao olhar para o meu reflexo uma última vez antes de sair do quarto.

Andei pelo corredor em busca de um banheiro. Voltei ao quarto — branco com móveis de madeira — depois de escovar os dentes, peguei uma toalha na parte alta do guarda-roupa, uma muda de roupas na mochila em cima da escrivaninha, e voltei ao banheiro. Fechei os olhos e deixei que a água encharcasse meus cabelos e meu corpo.

Aos poucos, fui lembrando do que havia acontecido no dia anterior: a festa na piscina que a Ana havia organizado pro pessoal da minha turma, a chegada do primo dela, a reação dos meus tios — pais da Ana — ao verem o garoto, o modo como meus amigos estavam agindo, como se pisassem em ovos... No fim, fiquei quieta na minha, sem querer fazer fiasco na festa. Acabei indo direto dormir, quando todos já tinham ido embora, percebi que meus tios queriam certa privacidade com o garoto novo.

Saí do banho e fui direto atender ao celular, que vibrava freneticamente em cima da escrivaninha.

— Oi — atendi.

— Bom dia — uma voz de garoto respondeu.

— Quem é? — perguntei.

— Aqui é o Chapeleiro Maluco, queria falar com a Alice...

Sorri ao reconhecer a brincadeira.

— Ela foi se encontrar com a Lebre de Março, mas ainda não voltou.

Ele riu.

— Tudo bem? — perguntou.

— Com você está? — respondi.

— Está. Queria te contar uma coisa, é melhor você saber por mim do que esbarrar com ele por aí...

— Como assim? Ele quem? — perguntei.

— Meu irmão, Alice. O Rodrigo voltou.

Puts.

— Calma aí, Ricardo, quando foi isso?

— Ontem, mas olha, você não precisa se preocupar, além do mais, aquela situação já foi resolvida né? — ele parecia aflito.

— Não sei... Tenho que ir, estou morrendo de fome — anunciei antes de desligar.

— E quando não está? — brincou ele — Depois nos falamos, fica bem.

Desliguei sem falar mais nada, e desci as escadas, rumo à mesa onde estava o café da manhã. Tentei parecer indiferente enquanto tomava café com meus primos e o cara novo, mas o que o Ricardo havia dito não parava de ecoar na minha cabeça.

— Então, Vitor, vai morar aqui mesmo? — o Henrique perguntou.

Henrique é meu primo mais velho, tem uns vinte anos e, apesar de ser irmão da Ana, é como meu irmão, conselheiro e melhor amigo.

— Parece que sim — respondeu o garoto novo — Tia Marina foi compreensiva e o Tio Carlos disse que não tinha problema.

Ele tinha se mudado pra Belo Horizonte na noite anterior e deixou meus tios de queixo no chão.

— Mas e você, loira? — perguntou o garoto.

Ergui os olhos da minha xícara de café e encarei os olhos castanho escuros do paulista.

— Eu? — perguntei.

— Aham, tem nome?

— E quem não tem? — respondi e disse um breve adeus, deixando o café intocado na mesa.

Ouvi a risada dos meus primos ao fundo e segui para o quarto de hóspedes, no segundo andar.

Passei pelo quarto pegando as minhas coisas e jogando tudo dentro da mochila. Peguei meu celular e liguei pra minha mãe.

— Mãe? — perguntei quando ela atendeu.

— Tudo bem, filha?

— Aqui, você está em casa? Esqueci a chave aí...

— Estou, você já vem?

— Tem problema? Eu vou só pegar o táxi. Beijo.

Desliguei e desci as escadas, deparando com a Ana, ao chegar à porta.

— Já vai? — perguntou.

— Tá tão na cara assim? — sorri de canto e abracei minha prima rapidamente. Abri a porta.

— O que foi que aconteceu? — ela disse e me puxou pelo braço.

— O que parece que aconteceu? — me soltei e caminhei até o portão.

— Você sabe que eu vou descobrir, né? — gritou ela, da porta da casa.

— Tem algo pra descobrir? — retruquei e saí.

Andei pelas ruas do condomínio até a saída, liguei para o táxi no caminho e esperei alguns minutos, enquanto conversava com um dos seguranças.

Entrei no apartamento e vi um bilhete na televisão, minha mãe tinha saído e a chave estava em cima da mesa. Liguei a televisão em um desses canais bobinhos de culinária (que eu adoro) para espairecer e deitei no sofá. Estava passando uma competição de cupcakes, então deixei o controle em cima de uma mesinha e fui pegar uma garrafa d'Água e gomas de mascar sabor menta na cozinha. Estava mais ou menos na metade do caminho de volta para o sofá quando a campainha tocou.

Abri a porta e dei de cara com um garoto, mais ou menos da minha idade. Os cabelos dele eram castanhos, mas quando ele moveu a cabeça os fios tomaram um tom mais claro. Os olhos mudavam de cor, como os cabelos, de início eram castanho claros depois eram de um tom escuro e sombrio. Ele era forte e tinha os dentes brancos e alinhados — como reparei quando ele falou.

— Bom dia — ele disse, com a voz firme.

— É, pra você também.

Ele estendeu a mão e se apresentou:

— Meu nome é Christian, eu me mudei para o andar de cima e conheci a Dona Marta no elevador... ela disse que morava aqui.

— Ah, ela é minha mãe — falei, ao apertar a mão dele, com relutância.

— Eu queria agradecer pela ajuda com o Romeu, meu gato, ela está aqui?

— Você tem um gato?

— Tenho sim, ele pulou em uma caixa com talheres ontem enquanto eu arrumava as coisas da mudança e machucou a pata em uma faca, então eu vim aqui pedir o celular emprestado e ela disse que podia ajudar por ser veterinária e tal...

— Ah... você não tem celular? — perguntei.

— Tenho — ele sorriu —, mas não consigo achar com todas aquelas caixas...

Assenti e fiquei em silêncio.

— Você não sabe nenhum lugar onde eu posso tomar café aqui no bairro, não? — prosseguiu ele. — Ainda não tive tempo de ir no mercado e não aguento mais comer barras de cereal.

— Você viu o Temporal, a espécie de lanchonete, karaokê e suqueria que tem aqui em frente? — expliquei e ele assentiu — É um ótimo lugar.

Ele agradeceu e fez menção de ir embora, mas eu perguntei se ele não queria tomar o café da manhã comigo, já que eu não comi nada na Ana. O convidei mais por educação do que por vontade de ter uma companhia, mas ele aceitou e nós tomamos café na sala, nos divertindo ao ver desenhos animados.

— Ainda não sei seu nome — ele disse, já de saída.

— Alice.

Ele sorriu e me deu um beijo no rosto.

— Nos esbarramos depois, Alice... Se precisar de qualquer coisa, você sabe onde eu moro.

Assenti e fechei a porta. Fiquei um tempo pensativa, mas a verdade era que eu tinha gostado de conhecer alguém como ele... que não sabia nada sobre mim.