Balada a Dois

Dia Certo para Chocolate


DIA CERTO PARA CHOCOLATE

Aquela semana começou como qualquer outra. Accelerator estava sentado no sofá da sala, Last Order estava sentada aos seus pés, como um cachorrinho obediente enquanto Yomikawa ocupava a poltrona do outro lado da sala.

Assistiam um programa de televisão qualquer quando uma chamada no intervalo comercial fez Last Order quase grudar no aparelho. Era um anúncio sobre chocolates especiais que estariam a venda para o Dia dos Namorados, dali a poucos dias. Os olhos da menina brilhavam e ela parecia muito animada com a data sonhando com todos os doces que iria comer. Mas a animação durou pouco, até Yomikawa contar que as garotas não ganhavam chocolate, mas presenteavam os meninos de quem gostavam.

Embora tivesse ficada indignada a principio, no dia seguinte, ela parecia ter se conformado com a ideia e no terceiro dia, ela estava demasiado pensativa e séria, coisa que não combinava com seu jeito escandaloso e barulhento.

Accelerator percebeu que a data estava circulada no pequeno calendário na cabeceira da cama da menina e poucos dias depois, ela apareceu com uma revista feminina que tentava esconder dele a todo custo. Suspeitou que ela estivesse aprontando algo, mas tinha novas ordens da GROUP e pouco tempo para se preocupar com as travessuras da menina.

Para Accelerator aquela era só uma data irritante que deixava as meninas agindo como um bando de idiotas e fazia o comércio faturar uma grana alta.

Para Last Order aquela era sua chance de externar seus sentimentos para Accelerator, mesmo que ela não tivesse realmente certeza se o queria como namorado. Mas eles estavam o tempo todo juntos, ela se preocupava com ele e o amava. Então, em sua cabeça simples e infantil, eles deveriam ser algo parecido com namorados.

Quando levantou pela manhã, o dia estava quente e claro, o sol brilhava lá fora e Yomikawa passaria o dia todo ocupada com atividades da Anti-Skill. Accelerator tinha saído de madrugada, sem avisar aonde ia e embora se preocupasse com esses sumiços, aquela era sua chance de preparar os chocolates caseiros que tanto almejava para surpreendê-lo.

A cozinha estava uma bagunça, era como se um furacão tivesse passado por ali. Havia panelas sujas espalhadas pela bancada e dentro da pia, pacotes de chocolate e embalagens de leite abertos de qualquer forma, o chão estava manchado e Last Order tinha chocolate até no cabelo.

Last Order não era boa em cozinhar, toda vez que fazia chá sempre ficava muito aguado, quando tentara fazer um tamagoyaki quase colocara fogo no apartamento e quando fazia arroz na panela elétrica, sempre errava o tempo e o alimento ficara duro e insonso. Tudo isso era motivo mais do que suficiente para ela não se aventurar na cozinha novamente, mas era uma data especial, e ela precisava mostrar devidamente como se sentia.

De acordo com o que Misaka 19090 explicara professoralmente, o chocolate de Dia dos Namorados não era apenas uma demonstração de afeto entre casais era algo incrível e milagroso que fazia os garotos perceberem os sentimentos das meninas e corresponderem na mesma altura. O chocolate, se confeccionado pela garota, estaria cheia dos seus mais puros e doces sentimentos, e garoto algum poderia resistir a isso.

Por isso ela estivera na cozinha o dia todo. Com o dinheiro que economizara, comprara os ingredientes, forminhas e embalagens. Poderia ter comprado chocolates prontos, talvez não saísse tão barato, mas era certeza de que estariam deliciosos, mas isso seria trapaça, ela tinha que fazer com seu próprio esforço e por todo o seu amor na preparação das guloseimas.

Havia uma revista que Misaka 19090 havia emprestado aberta em cima do balcão principal da cozinha, nessas páginas havia receitas diferentes para os mais variados tipos de chocolate. Misakinha havia escolhido uma receita de chocolate meio amargo e creme. Não era uma receita fácil de fazer, ainda mais para uma iniciante, mas não era tão simples escolher algo do agrado do albino. Ele não gostava de nada muito doce ou enjoativo, nem que tivesse nozes ou chocolate branco.

Sua primeira tentativa havia sido um total fracasso. Confundira as embalagens de sal e açúcar e os trocara na receita. A substância marrom ficou salgada e indigesta e sua primeira panelada de chocolate foi toda para o lixo.

Na segunda tentativa, conferiu duas vezes todos os ingredientes para ter certeza que não havia nada errado, mas se distraiu com um dorama que passava na televisão e quando se lembrou, o chocolate havia queimado e grudado no fundo da panela. Demoraria horas para limpar aquela sujeira, colocou a panela de lado e pegou uma nova.

Ingredientes conferidos e atenção à panela no fogão, sua terceira tentativa foi um sucesso. E Misaka não pode deixar de ficar feliz, excessivamente feliz e sua empolgação a fez esbarrar na panela que estava sobre a bancada e mal teve tempo de curtir toda sua alegria, o objeto emborcou, derramando chocolate pelo chão da cozinha.

Limpeza parcialmente feita e metade do dia consumido, e a menina não tinha feito chocolate algum. Quarta tentativa, o chocolate borbulhou aromático na panela, mas desta vez ela não se empolgou, apenas o suficiente para que nenhum acidente acontecesse. Esperou a mistura esfriar e foi para a bancada no centro da cozinha. Pegou a forma em formato de coração e se preparou para fazer o chocolate mais bonito. O problema é que ela escorregou no chão ainda úmido da cozinha e se equilibrou para não derrubar a panela de chocolate, mas infelizmente a forma de coração foi ao chão.

Não quebrou, mas ficou um bocado torta, quando foi tentar desentortar, acabou entortando ainda mais, praticamente inutilizando o objeto. Teve um acesso de fúria e começou a esbravejar com o ar, já que não havia ninguém para culpar, mas parou quando ouviu a porta da frente sendo aberta.

Não demorou muito a reconhecer o típico toc-toc seco da bengala de Accelerator. Ela queria fazer uma surpresa, mas agora, com ele ali, isso não seria possível. Correu para a sala tentando impedi-lo de chegar à cozinha, mas ele já estava a porta.

– O que aconteceu aqui? – Perguntou irritado vendo a bagunça que reinava o ambiente.

– Nada, diz Misaka estendendo os braços e tentando impedir Accelerator de entrar na cozinha – dizia enquanto tentava esconder a visão dele a todo custo, sem sucesso. – Isso é um segredo da Misaka, você não pode saber.

– Como se eu me interessasse por isso – resmungou, empurrando a menina de lado e adentrando no cômodo.

Caminhou até a geladeira e pegou uma garrafa de água. Pelo canto dos olhos pôde ve ra bagunça que reinava na cozinha. Na bancada principal, havia uma panela cheia de chocolate e uma forma toda torta.

– O que é isso? – Se virou, encarando a menina que voltara a sua posição na bancada, analisando a forma torta.

– Nada, diz Misaka inflando as bochechas, chateada – e ela realmente parecia muito chateada. Demorara o dia todo para acertar o ponto do chocolate e quando finalmente o fizera, tinha destruído a forminha. Agora como ela iria confeccionar o melhor chocolate para expor seus sentimentos?

O rapaz migrou da geladeira até uma cadeira do outro lado da bancada onde a menina estava. O cheiro doce e enjoado do chocolate preenchia o ar.

– Isso não me parece nada – resmungou bebendo mais um gole de água.

– Você disse que não estava interessado nos segredos da Misaka, questiona Misaka diante de perguntas que a obrigam a revelar seu segredo.

– Eu realmente não estou interessado nos segredos de uma pirralha – e desviou os olhos para a panela cheia de chocolate escuro sobre o balcão. – Você que fez?

– Isso é o segredo de Misaka, diz Misaka puxando a panela para longe das vistas de Accelerator.

– Tenho pena de quem vai receber esse chocolate, seu talento na cozinha é uma maravilha – debochou.

– Os chocolates de Misaka estão ótimos, Misaka seguiu direitinho a receita da revista diz Misaka apontando para a revista emprestada pela Sister e... – mas o falatório foi morrendo. Enquanto falava e apontava para a dita revista, se esqueceu que segurava a panela de chocolate, o braço bateu contra o balcão e a panela virou sobre si mesma, mandando chocolate para todo lado.

Uma grande parte obedeceu as leis da gravidade, sujando o chão que a menina acabara de limpar, outra parte grudou no avental amarelo que usava e nas mãos que desajeitadamente tentavam salvar a panela, o finalzinho do chocolate ficou imóvel dentro do recipiente, como um lembrete de que teria que começar tudo novamente.

Accelerator se preparou para bronquear com a menina quando percebeu que ela estava muito silenciosa. Nessa altura era para estar tendo um chilique, ter choramingado, jogado a culpa sobre ele, entre dezenas de coisas que ela sempre fazia nessa situação, mas ela apenas permanecia encarando a panela e o chocolate que se acumulava no chão. Os olhos estavam úmidos como se ela controlasse a vontade de chorar.

– Last Order! – Chamou quando achou que ela estava quieta demais. Os olhinhos castanhos se voltaram para ele, meio apreensiva de tomar uma bronca. – Me de sua mão – e estendeu o próprio braço por cima da bancada.

Misakinha o encarou sem realmente entender e só ofereceu o braço sujo quando ele repetiu a ordem, em um tom que ela sabia que só era usado quando ele estava realmente furioso. Accelerator pegou o braço magro acima do pulso, na parte onde não sujo de chocolate. Puxou o braço para si e se inclinou, lambendo a palma da mão.

Last Order viu o rapaz diante de si baixar a cabeça e lentamente passar a língua sobre sua mão, lambendo o chocolate. Instintivamente tentou puxar o braço, mas ele a segurava com demasiada força.

– O que está fazendo, pergunta Misaka sem entender – a voz gaguejava e ela sentia o rosto corar.

Accelerator levantou a cabeça apenas o suficiente para encará-la por baixo da franja branca. Passou a língua pelos lábios, chocolate meio amargo com uma leve nota de café ao fundo. Forte e nada enjoativo, do jeito que ele gostava. Estava delicioso e Last Order estava sendo sincera quando dissera que seguira a receita risca.

– Esse chocolate era para mim, não era?

Aquele era seu segredo, e ela não queria entregar fácil assim, mas Accelerator ficaria sem seu chocolate. Ela não tinha mais ingredientes para começar de novo, nem mesmo tempo. O dia já tinha terminado e em breve, sua tutora estaria de volta ao apartamento, e ela ainda precisava arrumar toda aquela bagunça.

– Misaka queria fazer chocolates de Dia dos Namorados, mas agora está tudo arruinado e Misaka não terá como fazer outros, choraminga Misaka decepcionada consigo mesmo por ser tão desastrada... – e a frase começou a se misturar com o choro que tentava refrear e não conseguiu dizer mais nada claramente.

O rapaz encarou a pequena diante de si, decepcionada e chorosa, então se inclinou novamente e voltou a lamber a mão lambuzada. A língua passeou pela palma e depois pelas costas da mão, até quase chegar ao pulso, então retornou, lambendo e chupando cada dedo, até remover todo o chocolate que havia ali.

Misaka assistia a cena sem realmente entender, um tanto assustada e perplexa. Se ela fosse alguns anos mais velha, certamente diria que aquela fora a cena mais sensual e indecente que alguém fizera para ela.

– O que você... – mas as palavras sumiram antes de terminar a frase.

– Era para mim, certo?

– Era, mas Misaka não conseguiu fazer direito, bufa Misaka frustrada. Além disso, o Dia dos Namorados é amanhã, você não deveria comer isso hoje, repreende Misaka.

– Se era para mim – e ele se inclinou sobre a bancada, colocando o rosto muito próximo ao dela. Pôde ver o rosto redondo e infantil corar – eu como quando eu quiser e do jeito que eu quiser – ele se inclinou ainda mais e Misaka teve certeza que ele iria beijá-la. Então realmente o chocolate do Dia dos Namorados tinha esse poder todo? – Fedelha – e se afastou dando um peteleco no meio da testa.

– O que está fazendo? Reclama Misaka fingindo sentir uma dor enorme e chateada porque Accelerator quebrou o clima – reclamou enquanto levava as mãos à testa.

– Clima? – Arqueou as sobrancelhas sem entender. – De qualquer forma, limpe essa bagunça antes que a Yomikawa chegue e fique furiosa.

Provavelmente a mulher não ficaria, mas sobraria a ele arrumar a bagunça provocada pela pequena.

Last Order viu o rapaz sair da cozinha e lentamente, com seu toc-toc, se dirigir ao quarto. Ainda se sentia absurdamente quente, quase como se tivesse febre e o coração bater descompassado no peito. Então aquelas eram as sensações que uma garota experimentava no Dia dos Namorados? Certamente, no ano seguinte, ela entregaria os chocolates de forma adequada e o faria entender como ela se sentia.

Accelerator fechou a porta do quarto, exausto depois de um longo dia de atividade no GROUP. Poderia ser véspera de Dia dos Namorados, mas para eles, isso não importava.

Desabou na cama e achou que apagaria instantaneamente, mas o sono não veio. Podia ouvir o próprio som do coração, ruidoso e descompassado. Por que diabos tinha feito aquilo afinal? Queria animá-la depois de todo esforço que vira depositar para lhe preparar aqueles inúteis chocolates, mas precisava ter feito de forma tão indecente?

Não negava que havia sido sadicamente prazeroso vê-la corar sem ação, mas ela ainda era uma criança e ele realmente havia exagerado. Seu desejo inconsciente de sempre fazer as vontades de Last Order estava tomando vida própria e ele precisava dar um jeito nisso. Certamente, no ano seguinte, ele recusaria aqueles malditos chocolates e deixaria claro a distância que sempre existiria entre eles.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.