BakuVision

O outro lado da quarta parede


Housu. Cinco anos atrás.

Conquistada a última joia, o titã teletransportara-se, desaparecendo com toda a sua comitiva. O gigante e seu exército moribundo deixava pra trás um campo de batalha devastado.

O descendente de uma milenar linhagem de imperadores oferecia a mão para sua general.

— Aqui não é lugar para morrer - numa infeliz contradição, foram suas últimas palavras antes de se desfazer em pó e deixar a comandante cair de volta ao chão.

Izuku Midoriya abraçava Toshinori Yagi num gesto desesperado. Sentia-se estranho, enfraquecendo a cada segundo. Como se esvaziasse por dentro.

— Eu não quero desaparecer, All Might! - choramingava.

Amigos viam amigos se desintegrarem; irmãos recusavam a se despedir, comunicando-se com seus olhares desesperançosos antes de um deles ser reduzido a poeira e partir ao vento.

Longe dali, o Feiticeiro Escarlate ajoelhava-se onde o titã pisara pela última vez antes de declarar vitória. Embalando o corpo desfalecido de Uravision nos braços, soluçava:

— Volta pra mim. Volta pra mim.

Ela não reagia. Suas cores, antes tons saturados de vinho, turquesa escuro e prateado brilhante, agora beiravam a tons acinzentados. Seu corpo pendia letárgico, murcho; os braços, apáticos, não respondiam ao toque de Katsuki em sua mão. Em sua testa, um buraco hediondo, destoando do rosto delicado da sintezoide.

Katsuki manejava os dedos de Ochako com os seus. Em um deles, um anel de noivado. Duas pequenas gemas juntas: uma delas amarela como um pequeno Sol, como a joia que até então, alojava-se em sua testa; a outra, vermelha como sangue a verter na veias, tão rubra quanto a magia de Katsuki.

Dolorosamente parecidas com réplicas pequenas e frágeis das joias que desencadearam toda a sua tragédia.

Num raio de cinco metros, o brado de ira de Katsuki Bakugou era ouvido, expressando toda a devastação compartilhada pelos infelizes sobreviventes.

O Feiticeiro Escarlate fora o último a se desfazer em pó.

Nishigawa. Hoje.

Katsuki despertou num sobressalto. Seu suor resfriava o travesseiro e os lençóis, e seu coração estava tão acelerado que ele conseguia ouvir os batimentos, abafados em seus ouvidos.

— Kat...

O susto e o calor acordaram Ochako. Virando-se de frente para ele e sentando sobre os joelhos, ela se aninhou em seu peito.

— Tá tudo bem, Kat. Foi só um pesadelo.

O feiticeiro imediatamente a abraçou forte, como se não quisesse deixá-la escapar.

- Amor. Tá me esmagando.

Quando ele a soltou, ela não conseguiu decifrar a aflição em seu semblante. Tinha o olhar de uma criança angustiada. Beijou-lhe os lábios brevemente, e deitou-se em seu ombro.

— E se a gente repetir a aventura cyberpunk do outro dia? Você ficou louco andando naquela moto futurista! - sugeriu, tentando animá-lo.

— A gente não pode passar o dia deitado? - sua voz carregava um pesar.

— Quer conversar sobre esse pesadelo? - perguntou com doçura.

Katsuki acariciou o braço dela. Hesitou por um momento antes de responder:

— Só... não saia de perto de mim.

Ochako ergueu-se, virando de volta pra ele. Estudou seus olhos. Ele não falaria sobre o que o afligia.

- Eu não vou sair daqui - tranquilizou-o, dando-lhe um beijo no canto da boca.

Com o ouvido em seu peito, ela escutava seu coração ainda inquieto. Embalada nos braços de Katsuki, sentia-se a mulher mais amada que já existira.

— Nunca vou sair de perto de você - prometeu.

A cada segundo, ele tinha mais certeza de que a amava. E, quanto mais a amava, mais temia que ela desaparecesse. Era feita de sonhos.

O suor do corpo dele umedeceu a camisola dela.

— Você continua nervoso - ela voltou a se sentar. - Seu coração parece um despertador. Aqui, se concentra no meu - Ochako pegou a enorme mão de Katsuki e posicionou a palma no centro de seu peito. Ele sentia o calor que emanava dela. Sentia os batimentos daquele coração pequeno, tão frágil quanto o de um pequeno pássaro.

— Você tem coração.

— Claro que tenho, seu bobo - riu. - Você me deu um.

Quanto mais ele se lembrava que ela era não mais que fruto de sua dobra da realidade, mais tinha medo de, em algum momento, atravessar sua pele, como se fosse um fantasma. Medo de tirar os olhos da figura dela por um momento e, então, nunca mais vê-la. Precisava proteger seu microcosmo, com todo o poder que tinha.

— Eu não vou sair daqui - Ochako envolveu o rosto do marido nas duas mãos, antes de beijá-lo. Katsuki devorou-lhe os lábios com vontade. Abraçando-a, girou os dois corpos, se colocando por cima dela.

Do lado de fora do distrito enfeitiçado, na fronteira entre Shizuoka e Nishigawa.

O veículo da Bengou estava acostado próximo à placa de boas vindas do distrito de Nishigawa. O agente Iida o aguardava, com semblante sério. Abriu um sorriso conforme o carro da Kyuusei se aproximara. O jovem herói, conhecido como Fóton, descera do carro. Sorria como quem encontrava um velho amigo.

— Você não envelheceu um dia sequer.

Izuku Midoriya tinha apenas dezenove anos quando fora desintegrado pelo estalo do titã. Depois do estalo de Yagi, com as mesmas joias espirituais, retornara à existência com os mesmos 19 anos; o mesmo rosto fresco, mesmo ânimo e disposição para salvar o mundo, como quando Iida o conhecera.

— Vai chegar o dia de abraçar seus netos e você vai manter essa cara de garotinho - continuou.

— Já você, está com mais cara de paizão do que nunca - brincou Izuku. - Awata me disse sobre sua filha. Parabéns. Aimi, não é?

— Aimi é a primogênita! Camie já está esperando nosso segundo.

— Segundo? - arregalara os olhos. - Eu fiquei desaparecido por tempo demais. Já têm ideias de nomes?

— Dessa vez, iremos escolher depois do exame de sexagem.

— Eu fico feliz por vocês. De verdade.

Passada a prosa entre amigos que há muito não se encontravam, Iida resumiu brevemente a situação que exigia assistência tanto da Bengou quanto da Kyuusei. A testemunha de um crime ocorrido em Nagoya havia deixado de entrar em contato com o departamento de polícia. Quando as autoridades foram atrás de seu paradeiro, entraram em contato com familiares próximos do desaparecido. Eles nada sabiam, e agora estão preocupados.

— Ele é contemplado pelo serviço de proteção à testemunha? - indagou Midoriya. Iida confirmou, com um gesto de cabeça - Mas não a família. Ele deve estar se escondendo para protegê-los. Não vejo por que invocar logo as nossas instituições pra isso.

— A questão não termina aí - estendeu Iida.

— Estou ouvindo.

A polícia proferiu um mandado de busca no distrito em que a testemunha residia.

— E todos se comportam como se o distrito sequer constasse no mapa do Japão. - Recapitulou Izuku.

— Correto.

— E desde então, mais casos de residentes de Nishigawa cortando contato com o restante do país foram reportados.

— Bingo. Parentela de todo o país está perguntando por seus entes. Houve até mesmo teorias sobre o território inteiro estar sob ameaça, ou submetido a algum tipo de culto.

— E por que ninguém adentrou a cidade até agora?

— Isso é o que nós vamos ver agora.

Andando até os limites do distrito, agora rodeado de enigmas, o agente e o herói aproximaram-se da fronteira. A atmosfera parecia mais densa a partir daquele ponto. Sentiam um cheiro de cristal líquido. Sob determinados ângulos, a imagem da cidade, com todas as suas residências e prédios comerciais, granulava-se em bastonetes verdes, azuis e vermelhos. Glitch de TV.

— Parece um campo de energia - Izuku observara, com a mão no queixo.

Fronteira de Nishigawa. Uma semana depois.

Acampamentos estavam montados. Tendas foram erguidas, rodeadas de contêineres. Laboratórios improvisados não perdiam em equipamentos para as construções da Bengou ou da Kyuusei; principalmente porque muitos dos cientistas presentes foram enviados por essas corporações. As vastas equipes contavam com astrofísicos, engenheiros químicos, físicos nucleares, e doutores de todo feitio de ciência natural.

Tooru Hakagure, a físico-química que, havia quase uma década, acidentalmente adquirira poderes de invisibilidade, liderara o setor em que se alocara, com seu carisma e sua genialidade. Fora ela quem descobriu, num golpe de sorte, que as ondas eletromagnéticas emitidas pelo campo de energia que circundava Nishigawa poderiam ser captadas como ondas de rádio e televisão, quatro dias atrás.

No momento em que a televisão requerida fora providenciada - antiga, "daquelas que parecem caixas", conforme ela exigira - Hakagure e os outros físicos mal podiam acreditar em seus olhos.

— Parece com... - um dos físicos observou, tão incrédulo quanto qualquer um daquela pequena equipe.

— Eu sei - outro deles confirmou.

Na tela granulada, transmitia-se que parecia ser um live-action de Conan, o Bárbaro. O protagonista tinha o porte físico e as feições daquele que conheciam como o Feiticeiro Escarlate. A voz também era idêntica. Não restavam dúvidas, por mais que a incredulidade parecesse ser a reação mais sensata.

Sua coestrela não demorara para confirmar a absurda suspeita, ao chamá-lo de Katsuki. Vestida como uma dançarina, a versão humana de Uravision fazia as vezes da princesa Jehnna.

Os cinco cientistas se entreolhavam como se tivessem testemunhado o absurdo dos absurdos.

— Ela não estava... morta? - Lembrou Hakagure. - Não desintegrada. Morta.

Os episódios passaram a ser acompanhados, como pay per view de reality show. A primeira teoria a correr pelos laboratórios era que alguma entidade poderosa estava brincando com Bakugou e Uravision como marionetes em seu teatro. No entanto, conforme acompanhavam os episódios, cujos cenários e tramas variavam vertiginosamente, foi-se chegada à conclusão de que tratava-se de traslados das franquias que Bakugou Katsuki provavelmente gostava. De acordo com um funcionário da torre Kyuusei, os episódios batiam com a estética e a sinopse de muitas das mídias consumidas pelo ex-kyuuseishu, de acordo com o histórico de streaming do feiticeiro, em seu dormitório na torre.

— Já teve de Sin City, de The Witcher, de filme de pirata... O casamento deles foi de Game of Thrones. Pique Drogo e Daenerys, sabe? - Hakagure explicava a Iida e Midoriya.

— Bem a cara do Bakugou - observou Tenya.

— Aqui no alojamento, a primeira teoria - continuou Tooru - era de alguma força oculta controlando a mente de Bakugou e dos outros cidadãos. Eles estariam presos a esse teatro mórbido.

— Uma força oculta? - indagou Izuku. - A energia nas fronteiras da cidade é idêntica à dos feitiços de Bakugou, em níveis subatômicos. - Midoriya ainda se lembrava da primeira vez em que tivera contato com a magia do caos do Feiticeiro, durante a batalha da Guerra Civil.

— Então! Os níveis de radiação vindo da barreira batem com os da magia do Escarlate. Não restam dúvidas de que seja obra do feiticeiro. Agora, se ele está fazendo tudo isso conscientemente ou se está sendo controlado, é a verdadeira dúvida.

— Será que está pregando uma peça? Ou tentando provar alguma coisa pra quem está de fora? - ponderou Midoriya.

— E quem controlaria a mente de Bakugou? É ele quem tem esse poder - lembrara Tenya, referindo-se à época em que o feiticeiro trabalhara para Ultron.

— Só nos resta continuar assistindo às transmissões e analisando - suspirou Tooru, levemente inconformada.

Conforme novas pistas se desvelavam, novas teorias eram formuladas. Quanto mais respostas sugeriam-se, mais perguntas surgiam.

Nishigawa. 11h da manhã.

— Kat - Ochako babulciou.

— Hm.

— Meus seios doem.

— Desculpa.

Estavam deitados lado a lado na cama bagunçada.

— Não foi você - explicou - Também tô com um aperto na boca do estômago.

Katsuki sentou-se.

— Foi alguma coisa que você comeu?

Assentindo como quem não sabia, ela fez uma cara de leve enjoo.

— Quer ir ao médico?

— Se você me carregar. Não tô com energia pra me levantar daqui.

— Eu posso olhar rapidinho.

As mãos do feiticeiro brilharam numa névoa cor de rubi. Movendo-as como se escaneasse o corpo de Ochako, Katsuki parou na barriga da esposa. Encontrara algo.

— Katsuki? - a expressão congelada de Bakugou inquietou a, até então, idisposta Ochako. Não fossem as dores no corpo, ela teria se sentado também.

Depois de alguns segundos procurando as palavras certas, com todas elas presas na garganta, ele finalmente falou:

— Estamos grávidos.

Esticando o braço, Ochako puxou Katsuki pela gola para um beijo de comemoração.

Há alguns quilômetros dali, Hakagure e Iida arregalavam os olhos diante do televisor.