Avatar: O Recomeço

O Garoto do Vilarejo


― Que fome. ― Seu irmãozinho anunciou. ― Não tem nada pra comer?

― Vamos sair pra caçar hoje, Feng. Você sabe disso já.

― Mas não tem nada mesmo pra comer?

― Se tivesse, a gente não caçaria. ― Lee disse, ríspido.

― Pede pra alguém, só um pouco de pão.

― Pão aqui vale muito pra simplesmente pedir.

Seu irmão mais novo ainda não compreendia a realidade do mundo em que vivia. É claro, já passou fome, sede e frio, mas seus dez anos de vivência não compreendiam que nada era recebido de graça. A bondade e inocência em seu coração precisavam se transformar em malícia e esperteza logo, ou ele não conseguiria sobreviver sozinho.

― Então tá bom Lee. Desculpe pedir.

― Não precisa se desculpar tá? Você não tem culpa nenhuma.

Ele assentiu, de cabeça baixa.

― Só queria viver em um lugar que comer não é tão difícil.

― Você e eu, irmãozinho. Você e eu.

Feng já estava chegando em seu segundo dia sem qualquer alimento, enquanto Lee estava indo para seu terceiro. É a lei do pregador da vila que os mais jovens e os mais idosos recebam mais alimento, e isso sempre deixava Lee um ou dois dias em desvantagem, mas ao menos seu irmão se alimentava melhor do que ele. Ao menos, quando chegasse a primavera, as colheitas renderiam, ao menos, duas refeições ao dia.

Os sinos soaram, prelúdio para a caçada e para as orações aos caçadores.

― Vamos. Todos do vilarejo precisam ir.

Ambos deixaram o casebre de palha e madeira que seus pais ergueram em um passado distante, grande o bastante para duas pessoas dormirem. Caminharam até a praça central, onde a maior construção do humilde vilarejo de erguia.

Era inteiro feito de pedra brancas, diferente do resto das casas. O interior tinha capacidade para mais de trinta pessoas. Os telhados eram agudos e pontudos, como a ponta de uma flecha. Acima de tudo, um sino, e a estátua de uma mulher de roupas de frio e cabelo curto.

O pregador costumava realizar uma cerimônia no templo do Avatar antes de toda e qualquer missão que os dobradores deviam realizar. Sua palavra era lei nessa terra de cegos, e as convicções de Lee pouco podiam influenciar nas convicções de dezenas de pessoas.

Enquanto todos vestiam-se com trapos sujos e malfeitos, o pregador utilizava um roupão branco, limpo como as nuvens do céu. Detalhes azuis embelezavam sua vestimenta e um capuz enorme cobria seu rosto.

― Meus queridos fiéis. Com a graça do Avatar, mais um dia nos espera. Até o momento em que ele retornar, nós continuaremos a clamar por sua volta e orar por nossos dobradores. Hoje, passaremos o dia meditando em prece aos nossos caçadores, para que eles possam nos trazer saúde, paz e comida. ― Os habitantes levantaram as mãos, como se o Avatar fosse atender seus pedidos. ― Todos os dobradores, venham receber sua benção antes da caçada.

Não restavam muitos de nós. Apenas quatro se dirigiram até o pregador, incluindo Lee. Jori foi o primeiro, um homem mais velho, o líder de toda expedição que realizavam no ermo selvagem. Cabelo e barba grisalha lhe dava uma impressão sábia, e seu corpo musculoso criava um ar intimidador ao seu redor. No fundo, Jori era apenas um garoto em corpo de adulto.

Singa foi a segunda, uma garota um pouco mais velha que ele, tão bela que muitas vezes o fazia perder os sentidos durante uma caça. Seus fios de cabelo escuro eram lisos e sua franja cobria ao menos metade de seu rosto. Sua voz dita por seus lábios finos pareciam canção aos ouvidos.

O terceiro foi Lee. Um pouco parecido com seu falecido pai, sua pele era escura, o cabelo curto, um projeto de barba crescendo e os olhos verdes. Ajoelhou perante o ancião e sua testa foi tocada por seus dedos úmidos de água espiritual.

Por último, Morgor. Nome forte, mas ele nem tanto. Apenas um pouco mais velho do que Feng, o pregador descobriu seus poderes alguns dias atrás, e sem qualquer tipo de cuidado, resolveu jogá-lo nas caçadas perigosas. Ele sobreviveu por pouco a última graças à Lee.

Benção recebida, o pregador levantou a voz para todos ouvirem.

― Agora vão, nossos fiéis caçadores! Nos salvem desse mundo selvagem!

Odiava com fervor todo o ritual do ancião. Muitos homens, mulheres e crianças já morreram mesmo com seus preces inúteis, e durante centenas de anos, esse tal Avatar jamais retornou. Adorá-lo era uma perda de tempo. O tempo livre dos não-dobradores devia ao menos ser gasto de forma útil, ensinando-os a manejar armas e a lidar com o mundo exterior, em vez de meditar para uma força que sequer os ajudou em toda sua vida.

Mas quem ditava as regras aos perdidos era o pregador, e a idade e o temperamento de Lee nunca tiveram as melhores das reputações no vilarejo. Por mais dobrador que fosse, sua palavra não carregava tanto peso quanto a de Jori. E, infelizmente, ele concordava com a forma que o vilarejo funcionava.

― Os pregadores mandam na vila desde que eu era moleque, rapaz. ― Ele lhe disse uma vez. ― Sempre deu certo assim, pra que mudar agora?

― Se sempre deu certo assim, por que restam menos de cinco dobradores?

Obviamente, Jori não lhe deu resposta.

Partiram durante uma manhã de sol tão quente como se fosse qualquer dia de verão. Amava os dias de sol, pois sentia que seu poder ficava ainda mais forte quando sua luz tocava em sua pele. Era como o combustível do fogo que soltava com suas mãos.

― Como vamos conseguir comida pra tanta gente? ― Singa perguntou com sua voz maravilhosa.

― Como sempre fazemos, Singa. ― Jori replicou, imune ao feitiço da garota. ― Qualquer fruta que achar, coloque nas bolsas, qualquer animal que achar, mate.

― E como vamos nos dividir hoje? ― Ela continuou.

― Você fica com o Morgor. Vão pro lago procurar peixe-gato, ou se conseguirem, peixe-boi. Muito mais carne. Eu e o Lee vamos invadir o território das aranhas-leões. Elas sempre deixam muitos animais bem conservados nas teias.

― Não tem lugar mais perigoso não? ― Lee disse, brincando.

― Até tem, garoto. Mas você não gostaria de conhecer.

Jori explicou brevemente para Morgor como ele devia agir caso estivesse em perigo, deixando sempre bem claro que Singa estava no comando. Era um menino ansioso e rápido para aprender, sempre querendo se mostrar capaz, não muito diferente de Lee quando criança.

Quando enfim terminou, tomaram caminhos separados nas trilhas da floresta escura. Logo, qualquer sinal da voz de Singa e Morgor desapareceu, e tudo que restou foram os passos firmes e pesados de Jori e os sons da selva. Pássaros piando, insetos rastejando, folhas mexendo e espíritos sussurrando.

Não era a primeira caçada de Lee, então sabia que quanto mais quieto ficasse, melhor era. Espíritos e animais selvagens reagiam ao som, por isso Jori se comunicava com o movimento de suas mãos.

Em sua frente, ele levantou as mãos, fechadas em um punho, e ambos se agacharam e permaneceram parados. Um tipo de cobra voadora transparente passou alguns metros de distância, procurando alguma vítima, seguido pelo que parecia inúmeros filhotes. Jori apontou para frente e retomaram sua caminhada.

Tomou um pouco mais de uma hora e meia até chegarem no território inóspito das aranhas-leões, e sua aparência era tão macabra quanto se recordava. As árvores, sem qualquer tipo de folhagem nos galhos, possuíam inúmeras teias. Os animais mortos, apodrecendo, repousavam no solo, servindo de adubo para a terra. O sol, bloqueado pela mata, mal brilhava no local, dando uma impressão de escuridão permanente. E tocas enormes dentro de troncos, guardando os monstros enormes que vieram roubar.

Como ainda era dia, as aranhas-leoas, menores e mais ágeis, estavam fora de seus lares caçando, enquanto as aranhas-leões, maiores e mais fortes, protegiam o território de invasores.

Jori apontou para uma enorme teia no topo de um galho, com cerca de sete animais preservados. Sabiam que, ao derrubar as carcaças com fogo, os monstros viriam logo em seguida sedentos em proteger a carne. A possibilidade de silêncio não existia.

Aproximaram-se um pouco mais, diretamente abaixo. Retiraram as bolsas das costas e abriram-nas. Como sempre, o mais experiente lutaria contra as aranhas-leões, e o novato armazenaria o que pudesse de carne.

Seu líder deu o sinal e disparou enormes listras de chamas, queimando as teias e derrubando as presas. O som oco de osso quebrando na terra foi seguido por gritos agudos e animalescos. Jori dobrou seu fogo em ainda mais teias enquanto o desesperado Lee jogava todos os animais mortos possíveis dentro da bolsa.

Logo, eles surgiram da escuridão. Aranhas-leões, a cabeça com oito olhos negros, uma juba escura, um corpo enorme de oito pernas articuladas, peludos e asquerosas.

Abriram a mandíbula, mordendo o ar, como de aviso. Retrucando, Jori fez um movimento com os braços, disparando jatos de fogo em direção aos monstros.

― Lee! Não temos o dia inteiro, vamo logo!

― Calma, ainda falta um pouco.

Quanto mais eles se aproximavam, mais lento Lee aparentava. Os corpos mortos preservados em teia escorregavam de suas mãos, alguns já tinham sido esvaziados, e outros até pareciam podre devido ao cheiro.

― Vamos logo Lee! Eles tão chegando!

Fechou as bolsas, colocando uma nas costas e dando outra para Jori.

― Vai, vai, vai!

Ambos fizeram do fogo seu impulso, logo antes das aranhas-leões o alcançarem. Com os braços para trás, soltavam seu poder com a maior potência possível, e por um instante conseguiam voar. Era uma sensação maravilhosa. O vento soprando no rosto, a energia circulando em seu corpo, a liberdade de ir para onde quiser e quando quiser.

Mas voar também tinha seus perigos. Espíritos selvagens notavam sua presença com facilidade, e não havia um desses seres estranhos que via com bons olhos a dieta de seres vivos.

O líder mandou parar e ambos pousaram em uma clareira, perto do lago.

― Ótimo trabalho Lee. Estamos ficando cada vez melhores.

― Valeu Jori.

― Agora, vamos encontrar Singa e Morgor. Não vai demorar muito até o sol se pôr. Temos que estar no vilarejo bem antes disso.

― Vamos então.

Não demorou muito até encontrarem seus parceiros dobradores. Morgor ficou com a tarefa de pegar peixes menores, enquanto Singa tentava capturar um peixe-boi. Para o seu infortúnio, ela não conseguiu um sequer.

― Não acredito nisso. ― Disse, irritada. ― Se até você conseguiu esses dias, por que eu não consigo?

― Você vai conseguir, Singa. ― Lee tentou confortá-la.

― Não quero motivação, só quero que você me ensine como faz, merda.

― Eu... Desculpa.

― Tá se desculpando por quê? Você parece ter alguma demência ou sei lá. Jori, como faço pra pegar esses peixes-bois malditos?

― É bem fácil, Singa. Peixes-bois ficam no fundo do lago comendo algas.

― E como vou usar meu fogo no fundo do lago?

― E você achou que a lança nas suas costas é de enfeite? Veja e aprenda.

Jori mergulhou como se a água fosse seu lar. Logo, ele provavelmente retornaria com um peixe-boi enorme e poderiam voltar para o vilarejo. Silêncio perdurou, e apenas o som da ventania podia ser escutado pelo grupo de caçadores.

― Cadê ele? ― Singa disse, impaciente. Morgor também parecia preocupado.

― Vai procurar ele, Lee.

― Eu?

― É, você. ― Singa cantou.

― Então tá bom.

Retirou a bolsa das costas, despiu a camisa e a calça e colocou um pé na água. Estava geladíssima.

― Vai logo.

― Tô indo, calma aí.

E Lee foi. Entrou no enorme lago, morrendo de frio e aflito por seu líder. A visão embaçada não ajudava a enxergar, e tudo que avistava eram peixes pequenos, algas e um enorme vazio.

Nadou mais ao fundo, desesperado. Não via o velho Jori em lugar algum. Por um momento, as preces feitas pelo Avatar não pareciam ser tão poderosas quanto o maldito pregador afirmava.

Sem muitas esperanças, considerou retornar a superfície, até que viu. Não uma, mas três sombras, ainda mais fundo do que Lee jamais ousou ir. Retornou para respirar e voltou a submergir, nadando com fervor até os vultos. Ao se aproximar, notou que um deles era seu capitão, mas os outros eram irreconhecíveis.

Ambas mulheres, uma dançando como se estivesse em alguma festa que tinham durante os solstícios no vilarejo, e a outra segurando Jori. Ficou em choque ao notar que pareciam estar dentro de uma bolha de ar.

Tentou soltar o fogo de suas mãos, mas foi em vão. A água logo o consumiu e ignorou o calor da ponta de seus dedos. Mas não desistiria. Sem Jori, o vilarejo poderia dar adeus a existência, e seu irmãozinho poderia morrer de fome.

Furioso, nadou e nadou, até que uma das mulheres a avistou. Tudo foi muito rápido. Lee caiu no fundo do lago, como se não estivesse dentro da água. E então percebeu que realmente não estava, pois respirava. Respirando fundo, levantou a cabeça para notar a mulher de pele escura acima dele.

Temendo por sua vida e temendo por Jori, levantou-se com a intenção de soltar uma rajada no ser do lago, mas a água simplesmente voltou ao seu redor, e o fogo morreu sem nem ao menos sair da palma de sua mão. Ele nadava novamente, mas logo caiu de cara no fundo do lago mais uma vez.

― Seu amigo tentou a mesma coisa, dobrador de fogo. Mas seu fogo não significa nada no nosso lago. ― Lee tossiu.

― No nosso lago? Do que você tá falando?

― Não responderei suas perguntas, antes de vocês responderem as minhas.

Ela o envolveu na água do lago, deixando apenas sua cabeça dentro da bolha de ar para que pudesse respirar, assim como Jori. Eles se movimentavam sozinhos, como se a mulher dançando estivesse movimentando-os.

― Onde vocês estão nos levando? ― Lee disse, mais com medo por seu irmão do que com ele mesmo.

― Para nosso vilarejo, dobrador de fogo. O vilarejo dos dobradores de água.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.