Salvador, Brasil

Abril de 1808



O suave som das ondas do mar se chocando contra os rochedos era apenas quebrado pela agitada vida cotidiana da cidade de Salvador. A antiga capital do Brasil, mesmo que tendo perdido parte de sua importância, ainda assim era uma cidade movimentada. Com cerca de 50 mil habitantes, a economia da cidade girava em torno da produção de açúcar nos engenhos.

Próximo ao litoral, o barulho infernal de pescadores, mercadores e dos civis apressados recheava os ouvidos de qualquer um que passasse por ali. Nas docas, paravam navios mercantes ingleses e portugueses, trazendo as mais diversas mercadorias que os brasileiros conseguiam imaginar. Os ingleses, o povo pioneiro na industrialização, trazia os mais ricos e belos tecidos de seu país, por um preço baixíssimo Desde Janeiro daquele mesmo ano, os portos estavam oficialmente abertos para navios britânicos. Um tratado assinado pelo próprio príncipe-regente de Portugal, Dom João, que, por mais estranho que seja, não estava em Portugal naquele momento. Devido a invasão do país ibérico pelas tropas francesas lideradas pelo general Jean-Andoche Junot, sob as ordens do próprio Napoléon Bonaparte, toda a família real e cerca de 15 mil nobres tiveram de fugir para a colônia mais rica de Portugal: o oprimido Brasil.

Haviam desembarcado em Salvador, há apenas alguns meses. Mas já não se encontravam na cidade baiana Agora estavam todos acomodados na nova capital brasileira, uma cidadezinha do sudeste brasileiro chamada Rio de Janeiro. Isso, de fato, havia criado uma fúria entre os soteropolitanos, mas nada que os impedisse de continuar vivendo suas vidas do modo que eram antes.

Em uma das docas da cidade, os pescadores se apressavam em recolher a pesca diária e voltar logo para casa, aproveitando o fim de tarde para ficar com a família. Mercadores de todas as partes da Inglaterra e Portugal gritavam loucamente, desesperados para terminar de vender a mercadoria antes do dia acabar. Algumas tavernas locais começavam a abrir, deixando de sair de seu interior o pesado cheiro de cerveja. Um navio britânico descansava suavemente por sobre as águas, terminando de ser recarregado pelos seus tripulantes pela mercadoria que não havia sido vendida naquele dia. E era exatamente aquele navio que o jovem estava mirando.

Vestindo roupas casuais, nada mais que uma camiseta de linho negra e calças marrons, ele andava sorrateiramente pelo cais, aproveitando as sombras do por-do-sol para se esconder. Estava agachado atrás de alguns barris de pescado e esperava apenas que os britânicos cansados saíssem do navio. Provavelmente, para aliviar a tensão do dia, iriam para alguma taverna ou bordel local, e o jovem poderia fazer o que queria.

Aguardou cerca de 30 minutos antes que toda a mercadoria estivesse recolocada no navio. Então, observou cuidadosamente os tripulantes saírem pela prancha de madeira e se encaminharem para pontos distintos da cidade. Aguardou mais 10 minutos para ter certeza de que todos haviam saído. E então, pulou para fora de seu esconderijo.

Caminhou pelo cais, tremendo a cada vez que uma tábua de madeira rangia sob seus pés. Observou de leve quando passou ao lado da proa do navio e conseguiu distinguir o nome da embarcação: Lady Elizabeth. Era um nome razoável para um navio britânico, ele pensou.

Foi então que ele notou algo que faria uma grande diferença. Os navegantes haviam fechado a prancha de madeira por onde se entrava e saía. Portanto, não havia como entrar por lá. O jovem parou um pouco para pensar. Teria de encontrar uma rota alternativa. Foi quando notou no casco do navio uma série de janelas, orifícios e saliências na madeira que serviriam perfeitamente como ponto de apoio em uma escalada. Seria um tanto mais complicado que as árvores e casas baixas que ele estava acostumado a subir para fugir de guardas furiosos.

– Mas ainda assim, não é impossível. - murmurou para si mesmo antes de saltar para a primeira janela. Apoiou seus pés e agarrou uma tábua solta na madeira. Usou-a para se içar para cima e foi escalando o navio, encontrando pontos de apoio aonde conseguia até chegar ao convés. Deitou-se no chão duro e sujo e descansou um pouco da atividade cansativa. Mas tomou o cuidado de se manter bem próximo a amurada, para evitar ser visto por qualquer pessoa que pudesse ainda estar no navio.

Aguardou alguns minutos e saiu para verificar o navio. Revistou o convés todo, para ter certeza de que não havia mais ninguém por lá. Ao se certificar que não, voltou a sua atenção a pilha de caixas que havia no centro da embarcação. Soltou um suspiro aliviado ao notar que estavam todos abertos.

– Finalmente, acho que vou conseguir alguma coisa de boa qualidade por aqui. As mercadorias portuguesas são um saco. Os britânicos que sabem fazer tecido.

Soltou uma sacola de pano das costas e e foi enfiando o conteúdo dos caixotes até enchê-la. Olhou ao redor, para se certificar de que ninguém vira. Então, foi na direção da prancha de madeira da saída.

Ao chegar lá, ficou satisfeito ao notar que para abri-la, bastava soltar uma alavanca e depois empurrar a prancha, fazendo-a cair com um enorme barulho no cais. Droga, ele pensou. Agora qualquer um que estivesse naquelas tavernas próximas ao cais teria ouvido o barulho. Rezou para que estivessem bêbados demais para se importar.

No entanto, o perigo não estava nas tavernas. Quando estava se preparando para deixar o navio correndo e voltar para a sua casa na área rural, uma mão firme se postou em seu ombro.

Who are you? And what the fuck are you doing here?

O jovem congelou.

– Eu não falo... Não falo inglês. - e se virou para olhar quem o havia pego. Obviamente, era britânico. Alto e musculoso. Parecia um tronco de árvore enfiado em vestes de lã vermelha e calças brancas. Tinha um chapéu de três pontas na cabeça, que estava ligeiramente caído. Sua voz era grave e rouca. Autoritária. O garoto tremeu ao ver o distintivo em sua roupa que o marcava como o capitão do navio.

– Quem é você? - repetiu ele, em um sotaque forte - E o que diabos você está fazendo aqui?

O jovem notou a pistola que ele trazia no cinto e o machado pesado que carregava preso as costas. Ele teve o pressentimento que ele sabia como usá-lo. Improvisou uma desculpa.

– Eu... Eu sou amigo de um dos tripulantes do navio. Ele está numa taverna e gostaria que eu chamasse o seu capitão para beber com ele. Mas ele devia estar bêbado demais para me lembrar que a prancha estava fechada. Pobre coitado...

O capitão continuou sério.

– Eu não bebo. E vi que você estava roubando da minha mercadoria. Portanto, vou perguntar mais uma vez: O que estava fazendo aqui?

O jovem tentou mais uma vez:

– Tudo bem, o senhor me pegou. Eu estava mesmo roubando da mercadoria. Mas eu posso explicar. Minha família é extremamente pobre e oprimida. Sete irmãos mais novos. Meu pai morreu envenenado, traído por um irmão rico. E minha mãe, coitada... Não gosto nem de lembrar quando meu tio pos as mãos nela... - e começou um falso choro, certo de que convenceria o capitão desta vez.

– Você tem roupas finas. Não é pobre, embora ainda não seja da nobreza. - retrucou o capitão - Não tente mentir para mim mais uma vez, children, ou morrerá em breve.

O jovem estacou. Droga. Aquele capitão era esperto demais. Não conseguiria mentir mais uma vez. E, se dissesse a verdade, morreria de qualquer jeito. Ou pior, poderia ser preso.

Ele avaliou as suas possibilidades. Era um contra um. Se conseguisse fugir dali, com certeza conseguiria correr mais rápido que aquele brutamontes de pedra. Ele apenas teria de correr por alguns metros antes de chegar ao cavalo que deixara amarrado nos estábulos. De lá, conseguiria chegar em casa em paz.

No entanto, o problema seria se livrar do capitão. Ele era maior e segurava com força o seu ombro. Se tivesse que resolver numa luta, sabia que não tinha muitas chances, armado ou desarmado. Tinha apenas uma adaga pequena escondida no bolso da camisa. Não era grande coisa contra um machado pesado ou uma arma de fogo.

Foi então que ele avaliou um plano de fuga. Era arriscado, mas era sua única esperança.

– Tudo bem, tudo bem. All right. Não vou mais mentir. Não sou pobre e nem sou amigo da tripulação. Eu sou apenas... - ele parou a frase e falou baixinho, de modo que o capitão não conseguisse ouvir. Este teve que aproximar seu rosto e, para sua surpresa, levou um soco do braço livre do jovem. Ficou tão surpreso e confuso que chegou a soltá-lo, o que deu tempo do garoto sair correndo. Mas ele não correu para a prancha de madeira. Correu para a amurada do navio, o medo entalando sua garganta.

– O que? O que você está fazendo? - gritou o inglês, furioso.

– Eu também não sei! - retrucou o jovem. E, com um grito de adrenalina e terror, saltou. Para fora do convés e em direção da água morna da praia de Salvador. Mergulhou como um golfinho e nadou submerso até quase perder o fôlego. Saiu para a areia e correu na direção dos estábulos. Usou a adaga para cortar a corda que prendia seu cavalo a um poste e montou. Com um chute no flanco do animal, já estava galopando em direção a sua casa.

Com o vento noturno batendo em seu rosto e a luz da lua para iluminar o seu caminho, Afonso Magalhães sorria. E o motivo de sua alegria era que havia driblado o perigo mais uma vez.