Aspectos da Humanidade

Paródias de parábolas bíblicas


Moira estava jantando com Walter e alguns financiadores e executores do novo projeto da Queen Consolidated quando o telefone tocou.

A noite tinha sido relativamente tranquila, o jantar estava indo bem e os mais novos apoiadores pareciam empolgados com o projeto, ao que ela dava todo o crédito à Felicity Smoak, a chefe do departamento de ciências aplicadas da empresa. Em breve eles estariam vendendo o novo Software da Srta. Smoak aos montes, o que traria muito lucro para todos os envolvidos e aumentaria as ações da empresa. Então sim, a noite estava sendo ótima.

Quando seu telefone tocou bem no meio da piada do Sr. Bowen sobre pinguins e mulheres, a qual todas as integrantes femininas faziam seu melhor para não fazerem careta para, Moira não pode deixar de agradecer a sua sorte – ela não era uma mulher particularmente religiosa, mas sabia reconhecer as pequenas bênçãos da vida – pela desculpa de poder sair dali por alguns minutos. Levando sua taça de vinho com ela foi de encontro com onde Thea entupia a boca com almôndegas e se sentou ao lado da filha.

Acenando desaprovadora para sua falta de maneiras, ela levou o telefone à orelha.

— Alô? – Moira disse educadamente enquanto levava a taça de vinho aos lábios.

— Mãe?

Para sua sorte ela já tinha engolido o pouco de vinho que sorvera, ou estaria naquele momento deselegantemente se engasgando com o mesmo. Não podia acreditar na audácia de quem quer que fosse do outro lado da linha por fazer aquele tipo de brincadeira sem graça. Mas aquela voz era tão familiar...

Não. Seu filho estava morto há cinco anos. Ter esperanças apenas a machucaria ainda mais.

— Quem quer que seja, meu filho está morto e não é engraçado- ela foi interrompida pelo acesso de tosse que Thea teve ao seu lado

— Mãe, sou eu, eu juro. É o Oliver. – o homem implorou – Escute minha voz, sou eu.

— Eu não-

— Quando eu tinha cinco anos você me levou para conhecer sua tia-avó Charlotte que mora na Escócia. Eu não me lembro muito bem do que aconteceu, mas você insiste em dizer que eu desapareci por cinco horas e fui encontrado- dessa vez foi ele quem foi interrompido.

— Dormindo na dispensa após provar o vinho que ela mantinha escondido lá. – a matriarca sussurrou, sentindo suas esperanças crescerem cada vez mais.

— Nessa mesma viagem eu tive uma crise alérgica, porque eu sou alérgico a gatos e ninguém sabia disso na época, então nós tivemos que ir correndo para o hospital e depois disso você nunca mais quis voltar para a Escócia.

— Oliver? – ela soluçou e colocou uma mão em frente à boca.

— Mãe. – seu filho, seu lindo garotinho, disse aliviado – Eu estou vivo, estou voltando para casa.

— Co-como? – mas ela não teve a oportunidade de descobrir, porque sua filha arrancou o telefone de suas mãos e começou a falar com o irmão em um tom agitado.

— Ollie? Ollie é você mesmo? – ele deve ter dito algo que a fez acreditar rapidamente, porque em segundos era ela quem também estava aos prantos, chamando a atenção de seus companheiros de jantar – Onde você está? Quando está voltando para casa?

Foi nessa hora que Moira se levantou e foi de encontro à filha e ao telefone, que foi colocado no modo viva voz para que ambas pudessem ouvir.

— Eu estou em um barco de pesca chinês que me resgatou da ilha onde estive nos últimos anos. – ele diz, soando rouco como quem não fala há algum tempo – Eles vão me deixar no porto de Hong Kong em cerca de duas horas e depois disso eu vou dar um jeito de encontrar a embaixada. – então ele parece respirar fundo – Meu pai, ele não-

— Tudo bem, tudo bem. – dói saber que Robert está realmente morto, dói saber que Oliver esteve sozinho, mas isso não é importante agora - Ah, meu menino... – ela diz ainda chorosa – Eu vou mandar alguém para se encontrar com você e te ajudar a voltar para casa.

— Obrigado, mãe. – ela quase consegue ver o sorriso dele através do telefone – Eu preciso ir, o pescador quer o telefone de volta. Ligo assim que chegar à embaixada.

— Amo você Ollie. – diz Thea – Volta pra casa logo.

— Eu vou. – e então ele desliga, sem deixar que ela se despeça. Mas isso não importa, porque é real.

— Ele está vivo! – sua filha exclama de alegria, com lágrimas escorrendo pelo rosto enquanto joga os braços ao redor da mãe.

Sem se importar com decoro, Moira a abraça com força, ambas girando pelo espaço livre.

— Moira querida? – a voz de seu marido a chama, e só então ela percebe que há uma pequena multidão as cercando – O que houve?

— Ah Walter! – ela exclama, sabendo que no momento não parece nem um pouco com o seu 'eu' habitual – Ele está vivo!

— Quem está vivo? – ele pergunta alarmado.

— Oliver! Meu menino está vivo e está voltando para casa! – os olhos de seu marido se arregalam e então se suavizam, parecendo imensamente felizes.

— Ah querida, isso é maravilhoso. – ele vem de encontro a ambas e então os três estão presos em um abraço em grupo.

Naquele momento ela podia afirmar que nunca, nunca antes esteve tão feliz. Oliver estava vivo e ele estava voltando para casa. O mundo era um lugar bom novamente.

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Os cinco dias entre a ligação para sua família e todo o processo de voltar para os Estados Unidos passaram como um borrão para Oliver, que no momento se encontrava em pé de fronte a uma enorme janela que lhe mostrava toda Starling City em sua glória – e escuridão.

Seu cabelo havia sido 'cortado' em Hong Kong – claro, as autoridades chinesas sabiam o que Liànyù era, bem como que seu real propósito deveria ser mantido em segredo, então não se importaram de varrerem por baixo dos panos o fato de que ele estava estética e fisicamente bem demais para alguém que teoricamente havia sido um náufrago por alguns anos, desde que ele não saísse por ai espalhando que a ilha era na verdade uma antiga prisão de segurança máxima que era tecnicamente ilegal aos olhos da ONU -, mas ele manteve um pouco da barba que cultivara durante seus últimos meses na Rússia. Anatoli tinha cumprido sua parte do acordo quando se tratava de ajuda-lo a passar pela alfândega com sua carga ligeiramente duvidosa, embora ele desconfie que Felicity Smoak, a gentil agente da ARGUS com quem ele fizera amizade durante uma missão em Starling City há uns três anos, tenha os ajudado nisso.

Shado e Sara encontraram-se com ele em NY durante seu ponto de conexão para que a loira pudesse reforçar seu desejo de ser declarada morta para sua família e a dupla pudesse lhe desejar boa sorte. O dia em que descobriu que seus amigos estavam vivos e que tinham sobrevivido a todo o desastre do Amazo foi um dos melhores de sua vida. Ele ainda se lembrava do medo que sentiu quando ele acordou em Hong Kong sob os 'cuidados' de Waller, tendo que trabalhar para aquela psicopata maluca durante três longos anos, quando finalmente se viu livre e se encontrou com Anatoli na Rússia, que foi quem lhe deu as boas notícias.

(E parte dele que nunca iria admitir isso em voz alta, principalmente onde a chinesa pudesse ouvir, mas ele poderia ter lidado com a perda de Shado. Mas não Sara. Deus, ele não podia perder Sara outra vez. Não seu passarinho, não sua Canário, não sua protetora – aqueles três anos, fora o primeiro ano da ilha, em que ele acreditou que ela estava morta foram completamente infernais, e havia momentos em que tudo o que Oliver queria fazer era meter uma bala na própria cabeça para poder se reencontrar com ela)

A sensação do abraço morno da Lance mais jovem foi o que deu clareza durante a viagem de volta. Deus sabe – e Oliver nem era religioso – o quanto ele sentiu sua falta. Ela era sua melhor amiga, sua Sara-Bird, e ter que deixa-la para trás mais uma vez partiu seu coração em dois e o fez sentir mais coisas do que sentira em qualquer momento nos últimos anos.

Fora isso, a viagem se transcorreu sem incidentes adicionais além da terrível azia que aquele café horrível de aeroporto lhe deu. Não era estranho estar sozinho, ele até preferia.

Estar de volta a Starling após tanto tempo longe, sem contar aquela pequena missão que ele e Maseo tiveram que cumprir ali em 2009, era para dizer o mínimo estranho. Por tanto tempo ele esteve funcionando quase que no piloto automático, pulando de missão em missão, evento traumático em evento traumático, sem nunca ter tempo para respirar ou processar o que estava sentindo e se situar no presente, que agora que estava em relativa segurança, ou pelo menos o mais seguro que esteve desde 2007, ele não conseguia abaixar a guarda. A hipervigilância tomava conta de todo seu corpo e o deixava incrivelmente tenso. Tanto que ele estava constantemente ciente de seus arredores como se estivesse em mais uma de suas missões e não em um hospital particular. Era difícil se impedir de catalogar saídas, identificar potenciais ameaças ou armas de oportunidade quando era isso que você vinha fazendo há tanto tempo.

Mas ele estava tentando se forçar a relaxar um pouco, parecer menos tenso. Isso apenas chamaria mais atenção indesejada para si mesmo.

Sentindo um arrepio na coluna que indicava a aproximação de outrem, ele se virou bem no momento em que sua mãe o chamou.

— Oliver?

Ele faz uma pausa silenciosa, lutando para assimilar as mudanças nela. Sua mãe parecia cansada, abatida, como se tivesse envelhecido dez anos de uma hora para a outra. Mas ela também parecia feliz, aliviada por vê-lo com vida.

— Mãe. – ele tentou sorrir, mas acha que parecia tão falso quanto sentia.

O arqueiro tinha sentimentos mistos em relação à mulher que o criou. Ou talvez 'criou' seja uma palavra muito forte, porque ele definitivamente tem poucas lembranças dela durante sua infância, e as que têm durante sua adolescência e início da vida adulta estão manchadas de ressentimentos e expectativas nunca cumpridas. Mas apesar disso ela é sua mãe. E ele a ama – ou ao menos acredita que sim –, embora não ache que goste muito dela – e para ser justo, ele não gosta muito das pessoas no geral; ou para ser mais específico, ele tende a gostar menos de pessoas que não sejam Sara Lance e apenas Sara Lance, não importa o quanto as ame. Talvez apenas de Shado e Akio, porque era impossível não gostar deles.

(Talvez Tommy, quem ele nunca se permitiria querer novamente daquela maneira)

— Meu lindo menino. – ela disse chorosa e então o abraçou. Abraçando-a de volta, ele tentou diminuir a tensão de seu corpo ao mesmo tempo em que mantinha os olhos bem treinados no médico que os observava até que esse, constrangido, foi-se embora e deixou a dupla ali.

O abraço foi estranho e fez as partes de seu corpo que estavam em contato com o dela formigarem e fincarem de uma maneira desconfortável que o deixou se sentindo oprimido, e ele não pode deixar de sentir alívio quando acabou.

(Ele sentia mais falta de sua Canário do que sentia de sua mãe, e talvez isso dissesse algo sobre o tipo de pessoa que ele era, mas Oliver há muito tempo deixou de ser alguém que se importa)

Moira eventualmente teve de ir embora, mas Oliver ainda ficaria em observação no hospital por mais dois dias, quando finalmente seria liberado. Ele tinha vacinas a tomar, exames a realizar, tártaro dos dentes a remover e também que completar sua semana de 'vigilância' em caso de portar alguma doença contraída na China. Ele honestamente pensava que era besteira, porque primeiramente ele tinha entrado com contato com várias pessoas, incluindo sua mãe, e segundamente ele tinha tomado várias vacinas durante seu tempo na ARGUS, mas considerando que todas as suas missões eram de caráter confidencial, bem como seu status agora adormecido como agente de inteligência do governo, não era como se ele pudesse fazer muito além de aceitar o inevitável.

A questão era: hospitais o deixavam imensamente nervoso. Ele odiava o cheiro clínico do lugar, a névoa de doença e morte que assolava o ambiente e aquela sensação incômoda de estar sendo constantemente vigiado pelos médicos e enfermeiros. Sem contar na maneira indiferente como todos eram tratados ali, menos aparentemente ele que tinha dinheiro o suficiente para comprar todo o hospital caso quisesse.

Não que ele pensasse que todos os médicos e enfermeiros eram ruins, longe disso, mas ele teve sua cota de más experiências com profissionais da área para criar certa antipatia por eles.

E ele podia muito bem se remendar e se medicar sozinho, muito obrigado.

Honestamente, era meio humilhante ter que ficar sentado naquela maca desconfortável como uma criança repreendida. Isso e a paranóia que o seguia por todos os cantos, sussurrando em seu ouvido que não era seguro, não era seguro, não era seguro. Talvez parecesse presunçoso, mas no mundo de Oliver todos estavam constantemente tentando o pegar e Deus sabe o que mais. Felizmente para ele nada aconteceu durante o resto do dia, apenas uma ou duas enfermeiras entrando com suas refeições ou para checar se ele precisava de algo.

Se dois anos em uma ilha, dois trabalhando para Amanda Waller e um subindo na hierarquia da máfia russa lhe ensinaram algo, era que ele não precisava de muito para sobreviver além de um par de meias, uma faca e sua própria inteligência – mas ele sabia exatamente o quão maluco dizer aquilo em voz alta o faria soar, então Oliver resolveu permanecer em silêncio e fingir estar prestando atenção na televisão que no momento passava um filme estranhamente interessante sobre dois homens esperando por outro que nunca chegava. Ele se lembra um pouco dos longos e empolgados discursos sobre teatro do absurdo de Sara, aos quais ele só fazia questão de ouvir porque gostava de a ouvir falar, e encontra-se fascinado pela mensagem que talvez fosse finalmente velho o suficiente para entender.

Oliver não era estranho à arte. Quando mais jovem, em segredo de todos, mesmo de Tommy e Laurel, ele costumava se esgueirar para o Gran Teatro de Starling com Sara para assistir as peças que ali passavam, eles faziam longas caminhadas pelos museus e exposições disponíveis na cidade e em outras também, assistiam filmes premiados e chegaram a ler um ou dois clássicos quando em absoluto tédio. Não que ele fosse um gênio, ou um artista, mas ele gostava da maneira como tudo aquilo conversava com seu 'eu' interior de uma forma que apenas ele conseguia entender. E também da maneira como isso o permitia ter um tipo de conexão especial com sua amiga, mas isso não vem ao caso.

Quando ele estava cursando Administração de Empresas em Stanford, ele costumava passar longas horas no telefone com Sara discutindo sobre seus cursos. Apesar de ser grande entusiasta da arte, a loira cursava Medicina no campus de Los Angeles da Universidade Estadual da Califónia, e frequentemente eles gostavam de falar de suas dificuldades e de suas facilidades.

Verdade seja dita, Oliver não era burro, nunca foi. Ele achava o curso no geral fácil, mas falhava por conta de um senso arraigado de auto sabotagem e uma vontade infantil de se vingar de seus pais por não o deixarem cursar Antropologia como ele bem queria. Foi ai, na caríssima escola da Ivy League que o aceitou sem hesitar por todas as boas notas pelas quais ele lutou, sonhando que um dia fosse se tornar um professor ou algo do tipo, que sua vida e fama de playboy descuidado, egoísta e inconsequente começaram.

Às vezes Oliver se pergunta como sua vida seria caso ele tivesse continuado em Stanford e em seu apartamento apertado, mas confortável e caseiro perto do campus. O Ollie de dezenove anos que gostava de Antropologia era tão diferente do Ollie de vinte e dois, que era expulso de lugares a torto e a direito e traia a namorada com a irmã dela. Ele por sua vez era tão diferente do 'garoto' da ilha, ou do Agente Queen, ou do Kapitain Oleg, ou do Kapiushon. Ele às vezes se perguntava se Oliver Queen era todos eles, ou se era algo completamente diferente.

Ele não sabia o que preferia, e na maior parte do tempo não queria saber.

O filme acabou e ele eventualmente trocou de canal até o Starling News, que sem surpresa nenhuma anunciava seu retorno à civilização. Ele viu sua própria foto de anos atrás na tela e fez careta para o tanto que o ângulo e o corte de cabelo lhe faziam parecer com um serial killer, o que era irônico porque aquele Ollie tinha medo de sangue e não conseguia nem matar baratas.

...Oliver Queen foi um nome muito comentado durante os anos de 2004 à 2007, quando se entregou para a típica vida dos herdeiros de bilionários, cheia de drogas, álcool e delitos. Antes disso o jovem era um promissor aluno de Starling Prep, cujos professores julgavam de grande futuro. — disse a repórter, que lhe era vagamente familiar – Temos aqui conosco um deles, que concordou em nos ceder uma entrevista sob a condição de não desrespeitar a privacidade do Sr. Queen. Boa tarde, Sr. Kings.

— Boa tarde, Srta. Danvers. – o rígido professor afro americano que era um dos favoritos de Oliver apareceu na tela e o loiro se remexeu na maca para ficar mais confortável. Dizer que ele estava curioso era um eufemismo.

Se me permite perguntar, o que o senhor espera do novo Oliver Queen?

— Não espero nada. O Sr. Queen não é meu filho para que eu espere nada dele. — o homem diz secamente e o arqueiro ri baixinho. Tão azedo quanto ele se lembrava.

Envergonhada, a entrevistadora continua, parecendo claramente tão desconfortável quanto o professor. Ela obviamente não queria fazer aquelas perguntas, se sua relutância e constipação provavam algo. Ou talvez ele estivesse assumindo demais.

O Sr. Queen recebeu muitos elogios de seus mestres educadores de Starling Prep, e sabemos que o senhor foi um deles. Talvez possa nos dar uma luz ao tipo de estudante que ele era antes de ingressar na faculdade?

— Oliver era um aluno brilhante e promissor, e eu sempre vou defender a ideia de que ele é uma das mentes mais brilhantes que eu já conheci. Ele era um garoto de raciocínio rápido e tinha facilidade com línguas e debates. Muito eloquente, de fato. — o homem idoso diz, o que traz um sorriso para o geralmente estoico rosto do arqueiro – Me devastou quando foi anunciada sua suposta morte cinco anos atrás, e me traz alegria saber que ele esteve vivo por todo esse tempo. Espero que ele tenha uma transição suave e se recupere bem de seus anos como náufrago.

— Muito obrigada por responder nossas perguntas, Sr. Kings. – a repórter, que era loira e adorável e o lembrava um pouco de Felicity sorriu para o professor – Nós do Starling News desejamos um bom retorno ao lar para o Sr. Queen. É com você, Kayena. — ela se voltou para a âncora do jornal, que diligentemente mudou o rumo para uma entrevista com Adam Hunt, mais um dos bilionários locais.

Oliver precisaria fazer uma pequena visita ao seu antigo professor, e talvez mandar algumas flores para a tal Srta. Danvers, que merecia mais do que ter que entrevistar o velho rabugento. Mas até lá ele tem que receber alta daquele maldito hospital.

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Oliver e sua mãe estavam sentados na frente do Dr. Lamb – que ele sabia ter contado dados confidenciais sobre suas condições físicas para ela sem sua autorização, e que no momento se contorcia em desconforto sob seu olhar fixo – enquanto esse explicava sobre a dieta que a nutricionista residente havia elaborado para ele e todas as vitaminas que ele teria que repor durante as próximas semanas. Além do tratamento dentário recomendado pelo dentista de sua família.

Era meio opressor, para ser sincero.

Todas aquelas preocupações, e receitas, e os olhares e toques excessivamente cuidadosos, como se ele fosse quebrar a qualquer momento. Ele foi baleado, esfaqueado, chicoteado, eletrocutado, queimado e afogado repetidas vezes nos últimos anos. Houvera até aquelas duas ocasiões particularmente memoráveis nas quais ele foi mordido por um tubarão e um lobo, então não, ele não precisava ser tratado como se fosse de vidro, mas ninguém mais recebeu o memorando.

Thea veio visitar mais tarde, apesar dos protestos de Moira.

Ela estava ainda mais crescida do que ele queria admitir, quase tão alta quanto sua mãe e indiscutivelmente mudada. Mas no fundo Thea ainda era a Speedy de quem ele se lembrava, que o olhava com tanta 'adoração ao herói' que doía, porque no fundo ele sabia não ser digno de todo aquele amor.

Vê-la através do vidro da porta, e então abraça-la pela primeira vez em tanto tempo, foi como finalmente conseguir firmar seus pés em Starling, mesmo que apenas ligeiramente. Ela o agarrou em um apeto quase que mortal, o que o levou a um ataque de pânico interno que o deixou extremamente calmo daquela maneira que situações extremamente estressantes te deixam tão dopado de adrenalina que você não consegue mais sentir suas emoções. Ele prefere assim, pois foi à única maneira que encontrou de não começar a se hiperventilar, ou pior ainda, a entrar em modo 'fuga ou luta' no meio do hospital.

Embora se reencontrar com sua família tivesse sido incrivelmente bom – quer dizer, ele acha que sim; Oliver tinha dificuldades em reconhecer o que estava sentindo, quanto mais expressar, mas achava que tinha sido bom – ainda sim ele ficou extremamente exausto depois, sentindo a necessidade esmagadora de deitar e dormir por alguns meses até que aquele cansaço se desprendesse de seus ossos e ele pudesse ter mais coragem de enfrentar o mundo.

Ele não queria enfrentar o mundo, ele queria ficar quieto no seu canto.

No entanto ele era Oliver Queen, e aquilo significava tantas coisas, de tantas maneiras e para tantas pessoas que era simplesmente impossível agir de acordo com esses desejos e seguir em frente.

Duas horas depois de sua mãe e irmã irem embora, Oliver viu-se encostado à sua maca e esfregando o polegar sobre o local onde havia sido atingido por uma bala perdida há algumas semanas, o ferimento mais recente que ele tinha fora Kovar e seu soro horrível. Anatoli disse que seu coração havia parado, que ele quase tinha morrido na mesa daquele hospital decrépito em Moscou. Oliver sabia que deveria sentir algo, mas ele simplesmente ... não sentiu. Era como se não importasse.

Oliver franziu a testa e pressionou sua mais nova cicatriz com mais força. Deveria ser importante, certo? Não o deixou com raiva ou chateado que não era. Ele estava apenas entorpecido e ele poderia dizer que aqueles com quem ele vinha entrando em contato estavam percebendo. Que eles estavam vendo suas expressões cada vez mais rígidas e os pequenos sinais de preocupação estavam crescendo em suas mentes.

Ele sabia que todos esperariam que ele falasse, que compartilhasse, que se comunicasse. Eles perguntariam sobre as cicatrizes, e os hábitos estranhos, e as tatuagens, eles questionariam sobre seus sentimentos e se ele estava bem, se estava confortável. Eles desconfiariam de suas mentiras até chegar o ponto em que ele não conseguiria mais fingir estar bem, até ele ser forçado a soltar pedaços de informações.

Oliver não queria falar sobre suas experiências na ilha, ele não quer um terapeuta e não quer um grupo de apoio. Nunca. Porque ele estava cansado de pessoas que não ouviam o que ele dizia e depois se viravam e afirmavam que queriam ajudar quando ambos sabiam que eles estariam lá apenas quando lhes fosse conveniente. Ele não queria ser honesto e ver os outros ficarem na defensiva, não queria mentir e ser pintado como vilão – era uma situação onde ele sempre perdia. Ele não precisava que pensassem sobre isso, sobre ele. Ele queria apenas... que parassem de se preocupar com ele. Que o deixassem em paz.

Talvez no fim das contas ele não quisesse tanto assim voltar para casa.

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Laurel ainda estava no CNRI quando recebeu a notícia. Foi difícil não, quando a simples menção da Família Queen, que eram algumas das celebridades locais do Oregon, já era o suficiente para fazer pescoços girarem em direção à tela mais próxima. Quando o primogênito de Moira e do agora comprovado morto Robert Queen foi encontrado vivo em uma ilha no noroeste da China, todos os canais locais e até mesmo alguns de alcance nacionais não sabiam falar cobre outra coisa.

Nenhum dos paparazzi tinha conseguido a chance de tirar uma foto do ex-náufrago, e não por falta de tentativa, mas a segurança da família Queen estava posta a níveis estrondosos e havia rumores de que eles haviam fechado um andar inteiro apenas para manter a privacidade de Oliver.

Ela não sabia necessariamente como se sentir. Parte dela, aquela que seu pai gostava de chamar de 'excessivamente sensível e complacente', estava feliz de que Moira e Thea o tivessem de volta, porque Deus sabe pelo o que elas passaram durante aqueles anos, principalmente no início. Mas a outra, aquela que estava ressentida e com raiva pela traição e pela morte de sua irmã, tinha que se controlar para não tacar seus sapatos na televisão toda vez que algum jornalista tocava no assunto de Oliver Queen.

Assim como seu pai, ela se sentia responsável. Talvez se ela não tivesse sido tão dura com Sara, talvez se ela nunca tivesse roubado a chance dela de namorar Ollie ao sabotar a festa de Tommy, talvez se elas fossem mais próximas ou se ela fosse uma namorada melhor, talvez nenhum dos dois teria entrado naquele maldito iate. Mas ela era mais esperta do que isso e se recusava a deixar suas emoções a dominarem daquela maneira. Racionalmente ela sabia que não havia o que ela pudesse ter feito além de, se tivesse conhecimento, fisicamente arrastado Sara para fora daquele barco e a algemado no apartamento de seus pais até que o Gambito estivesse longe demais para ser alcançado até pelo rádio do porto.

Não adiantava pensar tanto sobre as possibilidades do passado quando o presente estava se desenrolando, então ela juntou suas coisas, passou na mercearia perto de seu apartamento e comprou cinco litros de sorvete antes de se dirigir ao seu apartamento e se esconder lá pelo resto do fim de semana, ou ao menos esse foi seu plano até Tommy bater em sua porta parecendo completamente perdido.

— Posso entrar? – ele pergunta, parecendo oprimido.

Suspirando e sabendo que jamais conseguiria abandonar um amigo assim, ela se afastou e abriu espaço para ele, que rapidamente foi para sua cozinha, pegando uma colher no armário, e se jogou no sofá ao lado dela, já enfiando uma grande quantidade de sorvete de flocos na boca. O médico tropeçara nos próprios pés durante todo o caminho até finalmente se permitir desmontar.

Ela podia ver o peso em seus ombros, seu cenho se franzindo daquela maneira que denunciava seu estresse, e Laurel soube que foi um daqueles dias particularmente difíceis na clínica. Como advogada, ela meio que entende a sensação de derrota, mas não pode dizer que entende a culpa que o acompanha a cada diagnóstico terminal que ele dá. Ela pode ver tudo isso, mas também sabe que tem algo mais o incomodando, além daquela sombra que parecia perseguir o moreno desde que ele perdera seu primeiro paciente para o câncer, antes de se especializar em cirurgia e passar a trabalhar exclusivamente com aquilo. De alguma forma, estava tudo de volta.

E Laurel tinha a sensação de saber o porquê.

Quando adolescentes, Oliver, Sara e Tommy eram inseparáveis. O trio maravilha, o terror de Starling Prep (isso é, até o loiro quase ser expulso de lá por socar um professor por assediar a Lance mais nova, que também quase foi junto com ele ao chutar nas bolas o mesmo cara), as almas de qualquer festa de Starling. Isso se estendeu até o fim do ensino médio, no entanto, quando o Merlyn foi estudar medicina em Harvard, Oliver foi para Stanford e Sara para CSU dois anos depois. E devido a distância dos campos (que era consideravelmente menor que a distância até Harvard) os dois loiros passavam cada vez mais tempo juntos, o que levou a um afastamento na amizade dos três. Tommy se culpava por ter se deixado afastar, por não ter percebido o envolvimento dos dois e os impedido enquanto pode, por ter perdido seus dois melhores amigos.

Ela entende. Laurel também se culpa.

— Então... – ela começa.

— Oliver está vivo. – ele resmunga.

— Eu sei disso.

Tommy suspira – E como você tem lidado com isso?

— Surpreendentemente bem. – ela dá de ombros porque é verdade. Além da turbulência interna, ela não gritou ou agrediu nada nem ninguém, então é uma vitória – E você?

— Eu não sei. Quer dizer, eu estou feliz por ter ele de volta, feliz é pouco na verdade, mas eu também não sei o que fazer. Devo exigir entrar no hospital? Prender ele em casa para que ele nunca mais tenha a oportunidade de morrer por cinco anos? Nossa amizade ainda vai ser a mesma? Ele ainda é a mesma pessoa ou ele mudou? O quanto ele mudou?

— Você ainda não teve a oportunidade de ver ele? – ela questiona, tentando passar por cada tópico de uma vez.

— Não. – ele nega com a cabeça, comendo mais um pouco de sorvete – Só tia Moira e Thea que o viram. Ele tá confinado no hospital até amanhã, quando vai ser liberado. Em observação ou coisa do tipo. Tentei jogar a carta de melhor amigo, e quando não funcionou tentei jogar a de médico, mas aparentemente eles não precisam de outro cirurgião geral. – ele ri amargamente.

Laurel se remexe no sofá.

— Você acha que ele mudou muito? – ela pergunta incerta.

— Deve ter. – ele encosta a cabeça no encosto do sofá e olha para o teto – Thea me contou que ouviu Moira dizendo a Walter que ele está coberto de cicatrizes. Quase trinta por cento do corpo dele, na verdade.

Ela leva uma mão à boca em descrença – Trinta por cento? - ele acena em concordância e Laurel sente uma coisa ruim se assentar em seu estômago – Oh meu Deus.

— Nem é a pior parte.

— Piora?

— De acordo com Thea ele mal fala. Moira esteve lá com ele por quase um dia inteiro e ele mal disse duas palavras.

— Às vezes ele só se acostumou em não dizer nada. – ela tenta racionalizar – Quer dizer, ilha deserta, sim? Não devia ter muito mais do que falar com as árvores.

— É né. – Tommy se vira para ela e se ajeita no sofá – Amanhã eu vou ir jantar com eles na mansão. Quer vir comigo? Eu sei que vocês dois tem uma história tensa, mas vocês foram amigos um dia e-

— Não é uma boa ideia. – ela nega – Eu ainda estou tentando aceitar a morte de Sara e acho que sou a última pessoa, além do meu pai, que ele quer ver nesse momento.

— Se você acha. – ele dá de ombros e então faz uma careta sofrida – Eu só... não sei se estou pronto para ver as mudanças nele, por mais horrível e egoísta de soe.

Laurel suspirou e encostou a cabeça no braço do amigo – Nem eu, Tommy. Nem eu.

Ia ser extremamente difícil se ressentir de Ollie caso ele estivesse tão danificado quanto tinha o direito de estar, com cinco anos como náufrago e trinta por cento do corpo coberto por tecido cicatricial. Dois dias depois, ela vai duvidar dessa afirmação.

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Oliver tinha planos para sua volta além de colocar o medo de Deus e ocasionalmente flechas nos nomes da lista de seu pai, todos eles voltados para apenas um propósito: corrigir os erros de sua família.

Ele sabia que apenas matar criminosos de colarinho branco não resolveria o problema, que ele precisava ir atrás das causas, mas tratar os sintomas. As pessoas do Glades e de seus arredores estavam sofrendo e elas precisavam de toda a ajuda e a assistência o possível, principalmente desde que os principais serviços comunitários com exceção do CNRI e da clínica da mãe de Tommy vinham se retirando lentamente do distrito nos últimos anos, seja pelo aumento da criminalidade, seja pela falta de verbas.

E no centro de toda aquela podridão ele sabia exatamente quais nomes estavam esculpidos.

Ele só não queria ser mais um deles. Tudo o que Ollie sempre quis foi corrigir os erros de sua família e ser uma pessoa melhor.

Na ilha, Shado iria ensina-lo arco e flecha, artes marciais e yoga enquanto fazia longos discursos sobre Karl Marx, Saint-Simon e a banalidade do mal de Hannah Arendt. Crescendo sem nunca ter que se preocupar com dinheiro, foi preciso cinco anos de constante sofrimento e escassez – ele ainda se lembra vividamente da miséria em que as pessoas em Hong Kong viviam, a precariedade daqueles cujo o direito de ao menos o mínimo de humanidade lhes foram negados por pessoas como sua família, que tinham patrimônio o suficiente para acabar com a fome no mundo – para que ele se livrasse de toda aquela merda dogmática de meritocracia e trabalho duro. Ainda que ele tivesse começado a entender durante aquele primeiro ano, foi preciso um choque de realidade um tanto quanto literal para realmente entender.

Não lhe parece justo, não pode ser. Ele viveu durante cinco anos sem um décimo dos luxos com os quais estivera acostumado, mas no caminho ele encontrou algo diferente. Ele encontrou clareza, ele encontrou visões de mundo que nunca imaginou existirem, ele se transmutou em algo diferente – e às vezes ele gosta de pensar que também se tornou algo ligeiramente melhor, mesmo com suas inúmeras falhas de caráter.

Ele ainda não sabe se acredita em rendição ou em perdão, na maioria das vezes ele não sabe se ainda acredita em si mesmo. Mas ele tinha uma segunda chance de fazer algo a mais, de ser melhor, e ele não desperdiçaria isso. Não quando ele somente estava ali pelos esforços combinados de seu pai, Sara, Shado, Slade, Tatsu, Maseo, Akio, Felicity e tantos outros que cruzaram seu caminho durante aquele tempo. Não quando ele tinha expectativas a seguir e promessas a cumprir.

Os Glades precisavam de ajuda, a cidade precisava. Ele não tinha delírios de ser a única solução possível, não se julgava um salvador, muito pelo contrário. Não se tratava de ser um herói, não se tratava de glória ou de satisfação por fazer o certo, era algo a mais.

O carro para, o tranco o tirando de seus pensamentos agridoces. Tentando ignorar o nervosismo que ardia em seu estômago, ele saiu do veículo e pegou a única coisa que trouxera consigo da ilha antes que o motorista pudesse, não querendo deixar a cargo de ninguém aquilo que lhe fora confiado aos seus primeiros mentores. A mansão se erguia imponente na frente de seus olhos, tão ridiculamente pretensiosa e pomposa que quase o fez retorcer as feições em uma expressão de desgosto. Talvez ele tenha o feito.

De pé na casa de seus pais, o castelo onde um dia habitou, ele reflete sobre os vitrais brilhantes e os móveis elegantes e percebe que aquela não é sua casa, que ele não vê seus anos de formação ali. Sejamos francos, ele cresceu em Liànyù (lutando contra mercenários, paramilitares e feiticeiros insanos), em Hong Kong (entre as aulas de domesticidade de Tatsu, os missões intermináveis de Waller e as sessões de tutoria com Akio), em Tóquio (disfarçado em bordéis, ajudando sul-coreanas a escaparem e aprendendo artes marciais com um velho monge), em bares clandestinos da África do Sul (trabalhando para agências secretas com planos ainda mais secretos e adquirindo o indesejado conhecimento sobre como montar e desmontar bombas), nas favelas do Brasil (infiltrado em nome da máfia russa, aprendendo sobre capoeira, jiu-jitsu brasileiro e a maneira correta de ocultar um cadáver), em estradas abandonadas da Inglaterra e becos da Republica Tcheca (espionando governos e refletindo sobre história militar, o peso do luto e o poder de seu corpo, aquele conjunto de ossos e músculos que o levou por todos aqueles lugares e que salvou sua vida diversas vezes), clubes de luxo em Los Angeles (conversando com o próprio diabo e descobrindo as consequências da culpa e o quanto ele ainda não acredita em um ser superior benevolente). Ele cresce atrás de painéis de aviões enquanto sobrevoa a China, em topos de prédios apontando fuzis de precisão para alvos que não sabia se eram inocentes ou não, lutando em clubes clandestinos e entrando para a Bratva, estudando magia de um livro empoeirado deixado para trás por John Constantine, salvando amigos e inimigos com ervas e raízes, aprendendo línguas e conhecendo culturas.

Ele mudou tanto durante aqueles anos fora que agora não acha que haja mais lugar para ele naquele lugar, naquela família.

A coisa é: não existe lar para alguém como ele. Existe Liànyù, Hong Kong e São Petersburgo. Existe Felicity Smoak e os poucos amigos que fez na ARGUS. Existem pilhas e mais pilhas de relatórios de missão para ler e de pecados acumulados.

Mas não existe casa. Não existe lar.

(existe Sara, no entanto – sua garota selvagem, sua alegria, sua guerreira, seu lindo pássaro, sua Canário, sua Sara)

Com o passar dos anos, ele se conformou em ser um errante.

Migrando entre países, idiomas, continentes, pseudo-famílias e organizações criminosas e governamentais – as linhas entre ambas se borraram há muito tempo. Não há muito que se esperar de um cara como ele. Transtorno de estresse pós-traumático, crises de pânico, depressão crônica e ansiedade aguda, talvez. Danificado, problemático, irrecuperável. Ele se destruiu a um ponto em que não se reconhecia mais quando não estava aos pedaços, chegou a um nível de dano em que qualquer ameaça de normalidade e bem estar era imediatamente interpretado como um sinal de que tudo iria irremediavelmente dar errado. Mas hey, ele sobreviveu, não foi?

De alguma forma ele tinha sobrevivido. Uau, Yao Fei ficaria impressionado. Veja até onde ele chegou. E para pensar que naqueles primeiros meses todos, incluindo ele mesmo, achavam que ele iria morrer antes de conseguir escapar daquela ilha.

(Eles estavam apenas parcialmente errados)

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As primeiras memórias que Thea tem são de Oliver.

Ele estava lá a cada segundo de sua infância, até nos momentos em que parecia dedicado a decepcioná-la, sorrindo gentilmente quando seus pais eram duros demais, ensinando-a a andar de bicicleta porque ninguém mais o faria, lembrando-se de todos os seus aniversários, colocando band-daids em seus machucados. De certa forma ele tomou para si um trabalho que não era dele: o de cria-la.

Quer dizer, ele era bem ruim nisso. Com todo o álcool, as drogas e o sexo sem sentido, as brigas em que se metia e o desprezo geral por qualquer um que saísse de seu ciclo fechado de Thea-Sara-Tommy-Laurel-Raisa, sua inconsequência e seus problemas com gerenciamento de raiva, sua irresponsabilidade e seu egoísmo, sua arrogância e sua ingenuidade. Ele era um péssimo exemplo e todos sabiam disso.

Ollie costumava ser uma pessoa horrível de muitas maneiras. Um traidor, um riquinho mimado sem consciência de classe, um viciado em adrenalina – egoísta, narcisista e autodestrutivo. Thea não era cega, ela se via em quase todas as falhas de seu irmão, mas havia algo diferente no Ollie Queen do mundo e o Ollie Queen que era dela. Aquela versão dele que era amorosa, atenciosa e paternal de uma maneira que Robert jamais conseguiu ser.

Era ele quem a levava para andar de bicicleta nas estradas secundárias perto da mansão, carregava-a nos ombros e lhe dava sorvete, ia a todas as suas apresentações de escola e sempre deixava que ela dormisse com ele quando tinha um pesadelo – ele criou uma regra para si mesmo de nunca levar ninguém para casa, porque sua irmãzinha podia precisar dele, porque ela acidentalmente poderia ver seus lados mais feios. Ele era apenas dez anos mais velho do que ela, mas aos dezessete era a única pessoa de sua família que realmente a conhecia.

E ela se pegou agarrando-se a cada resquício que tinha dele quando ele se foi. O calor de seu abraço, a forma como ele sorria daquele jeito especial que era só para ela e mais ninguém, o brilho de seus olhos azuis quando ele falava sobre algo que gostava, aquela vez em que o viu chorar. Egoisticamente, ela vestiu uma capa com todas as falhas dele para que o mundo pudesse ver e manteve todas as partes boas para si.

As pessoas nunca saberiam o quão bom ele era. Nunca conheceriam seu potencial.

Thea às vezes se pegava pensando que preferia assim.

Doeu, é claro que doeu. Doeu como nada nunca tinha doído e ela estava super assustada. Aquela casa fria, a porta de seu quarto agora permanentemente trancada, a solidão que assombrava cada canto daquele lugar amaldiçoado, o silêncio enlouquecedor.

Pobre Thea, eles diziam. Perdeu o pai, perdeu Robert, ele se afogou no mar. Pobre Thea, eles nunca pensavam. Perdeu o irmão, perdeu a única pessoa que realmente se importava com ela naquele mundo, ficou sozinha para sempre.

(Quando eles lembravam que ela perdera o homem mais importante de sua vida, Thea se perguntava em quem eles pensavam quando proferiam aquelas palavras – ela sabia muito bem em quem pensar)

Ela tinha pais de merda, que se preocupavam mais com status e trabalho do que com os filhos e ela tinha um irmão de merda que provavelmente ia ter uma overdose antes dos trinta, mas que se importava com ela como ninguém mais. E então o Gambito se perdeu no mar e o mundo de Thea saiu do lugar, arremessado para fora do sistema solar com a força gravitacional do Sol, deixada no escuro e no frio, como tudo havia se tornado desde o momento em que Oliver partiu.

E Thea... ela se perdeu no meio do caminho. Começou a andar com pessoas duvidosas, a mexer com coisas perigosas, até que aos quinze ela teve uma overdose e quase morreu. Depois disso ela foi internada em uma clínica de reabilitação por intermédio do juíz que ameaçou retirar a guarda dela de sua mãe caso ela não recebesse tratamento adequado. E a quase dois anos ela estava limpa. Mas não importava, porque Oliver ainda estava perdido.

Era mais fácil pensar daquela maneira. Que o Gambito da Rainha tinha apenas se perdido no mar – sem afundamentos, sem afogamentos, sem mortes. Porque coisas perdidas podem ser encontradas, ainda há esperança. E seus desejos se tornaram reais, porque Oliver estava voltando para casa.

Perdido. Encontrado.

O tempo que ela teve com seu irmão no hospital no dia anterior não tinha sido suficiente. Ele não era tão alto quanto ela se lembrava, ou talvez Thea estivesse apenas maior, mas seus braços ainda eram quentes e confortáveis, ainda a faziam se sentir segura. Quando ele e papai se foram, sua mãe ficou tão distante e gélida quanto às paredes daquela casa, mas assim que ela se encontrou no abraço de seu irmão ela soube que as coisas ficariam bem.

Oliver estava ali e ele iria cuidar dela. Thea não voltaria a ficar sozinha.

Nunca mais.

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Tommy sentia as mãos tremerem no volante e ele quase enfiou o carro no muro quando tentou estacionar na parte de fora da mansão.

Oliver estava aqui, ele estava a apenas alguns passos de distância, vivo. Seu melhor amigo, aquele por quem ele teve uma queda por anos antes de transferir seu afeto a Laurel, quem lhe incentivou a ir para a faculdade de medicina e continuar o legado de sua mãe, uma das únicas pessoas com quem ele já se sentiu absolutamente confortável perto. Ele, que morrera e deixara um buraco imenso em sua vida, ele que era mais sua família do que Malcolm jamais foi.

Oliver estava vivo. (Sara não)

Ele acha que pode ter vomitado um pouco em sua própria boca de nervosismo, tendo se atrasado por conta de uma cirurgia de emergência que tinha mexido com seu psicológico mais do que ele previra. Porra, ele odiava ter que operar crianças.

Foi preciso dois minutos de respirações profundas até que ele conseguiu reunir clareza o suficiente para conseguir mover as pernas sem parecer um boneco de posto. Depois disso, foram longos dois minutos de caminhada até a porta da frente e mais cinco de ele criando coragem para entrar. No fundo, Tommy estava com medo de que abrir a porta o levaria de volta a um mundo onde Ollie não estava mais aqui, que tudo passaria a ser apenas uma ilusão.

No fim, foi outra pessoa quem girou a maçaneta.

A respiração do Merlyn ficou presa na garganta e ele sentiu como se fosse desmaiar. Oliver estava ali, bem na frente dele.

Lá estava ele, quase tão alto quanto ele se lembrava e definitivamente tão bonito quanto. Sua estrutura facial ainda era quase a mesma, mas seus cabelos eram cortados bem curtos, de uma maneira que ele não via em seu amigo desde que ambos tinham quatorze anos e decidiram que passar a maquina no um seria uma boa ideia.

Mas Oliver era maior. Com uma barba curta, porém bem preenchida, visivelmente mais musculoso – seu eu pré-ilha costumava ir à academia duas ou três vezes por semana, o suficiente para manter a forma, mas não para parecer uma parede de tijolos como era agora - e talvez ele tivesse crescido um centímetro ou dois, mas sua memória não era exatamente precisa. As mudanças puramente físicas, no entanto, não eram as mais notáveis.

Os olhos dele estavam mortos. Sem emoção ou reconhecimento, feições gravadas em pedra e a mandíbula tensa. Aquilo estava fazendo o médico entrar em desespero.

— Hey cara, - ele de alguma forma consegue dizer, a voz quase irreconhecível de tão fraca – eu te disse que iates eram uma merda.

Reconhecimento brilhou nas orbes azuis e ele viu sua deixa. Rapidamente e sem pensar duas vezes, Tommy lançou os braços ao redor do amigo e tentou se convencer de que aquela rigidez não era alarmante.

Mais tarde, quando o jantar estava posto e Tommy conseguiu reunir força de vontade o suficiente para desgrudar do lado de Oliver, eles estavam todos sentados à mesa, tentando manter uma conversa desconfortável entre os silêncios honestamente constrangedores. Bem, Thea e Moira estavam tentando, Walter estava principalmente se mantendo em silêncio e Tommy estava olhando criticamente para o prato de Oliver.

O loiro mexia a carne bem temperada para lá e para cá, levou um ou dois pedaços de brócolis a boca e fingiu bebericar o vinho que lhe estava servido. Ele parecia tenso e desconfortável, como se estivesse desesperado para sair dali, e não era preciso o uso de seu diploma em medicina para perceber que ele muito provavelmente estivesse.

E alguns minutos mais tarde, quando Oliver não apenas reconheceu, mas expôs e fuzilou o elefante na sala com suas insinuações e olhares acusatórios, Tommy tentou não rir de desespero. Porque ele estava de volta, traumas e cicatrizes que se fodam.

No fundo, Oliver ainda era seu Ollie.

(Ele precisava acreditar nisso)