As Sete Ameaças

Parte III: Os Animais Guias – Uma borboleta.


— Obrigado – falou Imad ao comerciante enquanto lhe entregava algumas moedas de ouro pela comida.

— Certamente irá fazer um banquete – comentou o comerciante curioso.

Imad sorriu, charmoso, e disse:

— Isso não lhe interessa.

Ele então colocou cuidadosamente mais uma sacola cheia de mantimentos em cima de Yuki, na forma de um cavalo malhado e forte.

— Engraçado – falou o comerciante – Seu cavalo é cego, mas forte como um cavalo de guerra.

— E eu não lembro de ter pedido sua opinião – ralhou Imad, não muito aberto a comentários invasivos.

O cavalo bufou, como se pedisse perdão ao homem e começou a ver seu caminho pelas ruelas. Imad correu atrás dele e segurou as rédeas.

Ao sair do buraco da árvore, os dois encontraram três dos cavalos que foram com eles, os outros tinham ido embora. Pegaram a sela, rédeas e alforje de Fazias, o garanhão atlético e fiel de Zaki, e saíram para procurar os mantimentos.

As pessoas acompanhavam eles com os olhos. Talvez por estarem carregando vários fardos de comida, ou por Imad estar carregando um saquinho cheio de moedas douradas, ou pelo homem ser bonito demais, ou o cavalo grande, atlético e cego. Seja qual for o motivo, os dois atraíam muita atenção e Imad estava preocupado com isso.

Finalmente saíram das ruas de areia da vila e entraram na floresta. Yuki escutou os sons da floresta se aproximando e um par de botas amassando a relva ao seu lado. Desejava imensamente chegar logo na cripta, eram muitos sacos de comida que estava carregando nas costas e começava a se cansar.

De repente, começou a escutar mais botas atrás deles, à uma certa distância. Parou imediatamente e relinchou, batendo os cascos no chão. Imad parou e olhou Yuki sem entender. Então uma borboleta passou voando e pousou no nariz do cavalo, uma tão azul e brilhante que encantou o homem que a olhava, mas só por alguns segundos antes que ela voasse novamente.

Ela fez piruetas no ar suavemente até que Imad começasse a segui-la. Finalmente, Chô mostrou os intrusos e a luta começou. Yuki desejava ajudar, mas a mensagem de Clyde antes de saírem fora clara: “não chamem atenção”. Um cavalo se transformando em um homem e lutando como um gladiador louco? Isso parecia uma coisa que chamaria atenção.

Sentiu novamente Chô pousando em seu nariz. A borboleta não falara absolutamente nada desde que Yuki a dera vida. Todos pareciam falar internamente com seus animais guias, até mesmo Anya que parecia ligeiramente irritada com Medved e deixara o amigo sozinho pela maior parte da manhã.

“Obrigada” falou para Chô.

Sentiu um leve tremeluzir no focinho, como se ele dissesse um “não há de quê”, mas sem na verdade dizer.

O barulho da batalha foi silenciado e Imad retornou.

— Talvez tenhamos chamado mais atenção do que gostaríamos. Devem ser as moedas. Vamos voltar rápido.

Yuki não poderia concordar mais. Pôs-se a caminho antes mesmo de Imad e apressou-se por entre as árvores. Queria soltar aqueles fardos das costas o mais logo possível.

Cavalgou com entusiasmo, com o amigo puxando as rédeas quando estava indo rápido demais.

— Chegamos – anunciou Imad após algumas horas de marcha.

Ele tirou a carga do lombo do cavalo e Yuki voltou à forma de humano.

— Tem alguém por perto? – perguntou Imad antes de descobrir o esconderijo.

Yuki concentrou-se nos sons da floresta. As folhas se mexendo, os pássaros cantando alegremente, o vento suavemente passando entre as árvores. Nenhum som anormal.

— Estamos sozinhos.

— Ótimo – falou Imad e rapidamente começou a retirar as folhas – Desça pelo buraco, vou lhe passando os sacos.

— Certo.

Yuki desceu pelo buraco com cuidado e estendeu as mãos.

— Lá vai um!

O peso caiu sobre seus braços e ele quase soltou o peso, mas sustentou e soltou levemente no chão. Quando todos os dez sacos estavam apoiados na parede, Imad desceu.

— Tudo pronto?

— Vamos ter que fazer muitas viagens?

— Transforme-se em cavalo novamente enquanto eu organizo as folhas.

Yuki suspirou internamente. Estava se sentindo levemente explorado, mas fez o que ele pediu e logo estava com os dez fardos novamente no lombo.

Foi uma viagem mais curta do que aparentou e ao chegarem na cripta, suas costas estavam latejando.

— Obrigado – ouviu Clyde chegando – Vamos fazer uma refeição e começar a explorar os túneis. Yuki, você lidera a expedição.

— Como queira.

— Sophie! – gritou Clyde chamando pela amiga – Você, Giovanna e Pietra estão responsáveis pelas refeições.

— Está bem, vamos começar imediatamente.

— Yuki, você vai mapear os túneis com Ananya, Nina, Zaki e Paul.

— Certo.

— Descanse até a hora da refeição, vocês partirão após isso.

Yuki assentiu mais uma vez e se distanciou dos barulhos o máximo que pôde. Gostava do silêncio. Mas mais que isso, gostava quando Anya o seguia para conversarem sobre trivialidades. Isso não aconteceu dessa vez. Ele suspirou e se sentiu extremamente sozinho, como se estivesse novamente no coliseu, contudo dessa vez também estava sem Ibraim.

Sentou-se apoiado no que achava ser a estátua de um rinoceronte ou um touro e sentiu Chô pousar em sua mão. O sentimento de solidão abrandou um pouco e ele sorriu.

“Obrigado. “

Ouviu um gemido, não por fora, mas em sua mente, como se Chô tentasse falar com ele, mas tudo o que saía fosse esse gemido.

Ele sentiu a borboleta alçar voo e logo, como em um passe de mágica, uma imagem se formou à sua frente: Anya rindo com o urso, Riley e Paul trocando carícias enquanto Clyde observava raivoso ao longe, Giovanna, Pietra e Sophie cozinhando enquanto Zaki alimentava o fogo e Enzo ajudava a mover os fardos de mantimentos com Ibraim e Imad, viu também Li e Quon conversando com Saulo, Logan sussurrando algo no ouvido de Pamela e Nina ainda dormindo com seu flamingo em um canto. E ele nem ao menos sabia como reconhecera todos se nunca os tinha visto.

Ouviu novamente o gemido suave e percebeu que era Chô quem lhe enviava as imagens. Estava tudo ligeiramente desfocado e as cores não pareciam tão vibrantes como Anya o prometera, mas ele estava vendo, como qualquer outro.

Agora a imagem que via era das estátuas, Chô estava refazendo o caminho até onde estava. Viu a si mesmo, boquiaberto e apoiado em um animal grande e chifrudo. Quando Chô pousou novamente em Yuki, a imagem se foi, mas ele não deixou de sorrir.

De fato, estava com lágrimas nos olhos de emoção. Ele tinha visto. Um relance muito ligeiro, mas ele tinha visto. Queria abraçar Chô, mas teve medo de esmaga-lo.

Ouviu o gemido novamente e percebeu: seu animal guia também era deficiente: ele não falava. Provavelmente não ouvia também.

— Obrigado, Chô – testou Yuki e a borboleta não mostrou reação.

“Obrigado, Chô” repetiu mentalmente e o animal gemeu alegremente.

Sim, Chô era surdo-mudo e Yuki era cego. Mesmo assim, o homem sorriu radiante.

“Eu serei seus ouvidos e você será meus olhos” prometeu.

Sentiu a borboleta bater as asas em concordância e sentiu seu peito se encher de alegria dobrada. Ele estava sentindo os sentimentos de Chô.

Yuki entendeu o significado de “janela da alma”. Chô era como um espelho dele e tudo o que ele sentia, seu espelho repetia. Parecia meio óbvio, mas será que os outros sabiam? Por algum motivo, Yuki sabia que não, mas desejava ficar com aquilo só para si, pelo menos só por enquanto.