As Sete Ameaças

Parte II: O Reencontro – O Demônio Cego.


A multidão gritava, chamando por ele, mas sabiam que, no momento que ele entrasse na arena, o silêncio deveria ser absoluto caso contrário, sua “mágica” não faria muito efeito.

Era como se ele previsse o que oponente faria, talvez fosse uma Ameaça, mas ele já tinha uma ameaça e ninguém poderia ter duas.

Então ele apareceu: um homem branco como papel, cabelos negros e lisos cortados na altura dos ouvidos, músculos não muito proeminentes, mas o que mais chamava atenção eram seus olhos: as duas pálpebras costuradas com linhas escuras e proeminentes, que quase já faziam parte do corpo de Haru.

A multidão silenciou, mas isso não alterou em nada as ações do Demônio Cego, como era conhecido. Na verdade, ele odiava aquilo. Para quê matar alguém que não conhecia? E até preferia assim: sem conhecê-lo, talvez matar doesse menos.

Mas seu adversário não estava nem um pouco intimidado, soltou um grito de fúria, revelando completamente sua posição para Nakashima.

O homem decidiu pular em cima do cego, que desviou tranquilamente com um passo para o lado. A multidão gritou entusiasmada apenas para se calar novamente segundos depois. Silêncio sepulcral na arena, que só foi quebrado quando o homem gemeu ao se levantar. Outro erro.

Haru deu um chute no estômago do homem tão forte que o fez vomitar o que quer que tivesse comido antes.

O olhar de ódio voltado para o outro foi tão grande que se transmitiu em seus atos, claramente ainda impensados. Ele, com um grito correu para derrubar o cego, que apenas bocejou e desviou mais uma vez, deixando o homem cair no chão com um baque surdo.

— Chega disso – sussurrou.

Então transformou-se em um ser comprido sem pernas e com presas cheias de veneno. Não precisou fazer muito, apenas mordeu uma vez o homem e voltou à forma humana indo em direção ao portal que o levaria de volta para sua cela.

Antes mesmo de alcançar a passagem, ouviu a multidão gritando enquanto o homem parava de se debater.

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— Faça de novo – disse o homem.

Haru o chamava de “O Homem da Cela ao Lado” ou Hocela, para encortar. O homem tinha uma voz carregada de sentimentos misturados e era incrivelmente bem-humorado. Parecia sempre ter uma necessidade de conversa que nunca era saciada. Mas não era só isso, ele amava ver aru usar sua ameaça.

Nakashima então começou a mudar de forma até atingir a forma de um pato.

— Quá, quá!

Hocela gargalhou.

— Que incrível! Agora faça aquele animal esquisito!

O pato de repente mudou para um ornitorrinco.

— Onde achou animal tão estranho?

Haru se materializou em frente ao homem e sorriu.

— Não sei. Uma hora estava ali.

— Incrível!

— Obrigado.

— Agora aquele outro truque! Aquele que você fica como eu!

Haru fechou os olhos, concentrando-se o máximo que conseguia. Então começou a borbulhar, como se entrasse em ebulição e ficou maior, sentiu seu cabelo crescendo e seus músculos alargando. Isso era o mais próximo que conseguia de saber como Hocela era.

— Ho ho ho! Que incrível!

Era uma coisa que os dois homens estavam treinando há muito tempo: transformar-se em outras pessoas. Estava melhorando cada vez mais, conseguia fazer uma cópia perfeita, e agora, com muito esforço, Haru conseguia também imitar as vozes.

— Que bom que gostou – falou o segundo Hocela, exatamente igual ao primeiro, se não fosse pelos olhos que continuavam costurados.

— É incrível garoto! Estou impressionado!

— Obrigado.

— Por quanto tempo acha que consegue sustentar isso?

— Não sei, mas não quero testar muito. Eles podem ver.

Dito isso, Haru voltou a ser ele mesmo e suspirou, um pouco cansado.

— Garoto, você teria uma carreira incrível no circo.

— Obrigado, eu acho.

De repente, vindo de lugar algum, uma forte dor atinge a cabeça de Haru. Apesar do homem não gostar de demonstrar dor, ele gemeu e caiu devagar até o chão, onde ficou deitado, agonizando.

— Ei, garoto! Está tudo bem? – gritou o outro embora claramente não estivesse tudo bem.

O outro ficou gemendo e se encolhendo ainda mais conforme a dor aumentava. E tão rápido quando veio, ela se foi deixando um rastro de lembranças sensoriais. Lembrou de seu verdadeiro nome, de sua família, de seu mestre, de seus amigos e de Anya, a garota que era sua melhor amiga e que detinha todo seu coração.

Yukiko Chô levantou devagar, voltou-se para onde acreditava que Hocela estivesse e disse:

— Preciso sair daqui.

— O quê?

— Preciso sair daqui.

— Por que isso tão de repente?

— Por que preciso sair daqui.

— Por que agora?

Yuki não respondeu. Levantou-se e se transformou em um guarda. Então gritou com a voz do guarda.

— Socorro!

Os outros vieram com pressa e olharam a cena: um de seus colegas vestindo um uniforme de prisioneiro, com os olhos costurados.

— O que aconteceu? – perguntou um se adiantando para abrir a cela.

— O prisioneiro que estava aqui, de algum modo conseguiu fugir e trocou de roupa comigo, costurando meus olhos para que pensassem que eu era ele. Temos que encontra-lo antes que ele fuja!

Então, com um rangido, a cela foi aberta e Yuki saiu, distribuindo golpes na horda de guardas que o cercava, tão atônitos e confusos que não ofereceram resistência. Em alguns segundos, estavam todos gemendo no chão.

Hocela bateu palmas alegre.

— Impressionante!

Yukiko, então, pegou as chaves e destrancou a cela do amigo também.

— Obrigado, Haru.

— Me chame de Yuki – disse ele indo em direção de um dos soldados e pegando duas espadas – Vamos embora?

Hocela pegou a arma sorridente.

— Se era tão fácil assim, por que não fez antes?

— Por que agora eu sei para onde ir. Agora chega de papo furado e vamos! Tenho muita pressa.

Dizendo isso, começou a correr. Hocela se adiantou e segurou a mão de Yuki.

— Deixe que eu guio você.

Correram então por intermináveis corredores, fazendo intermináveis curvas, parando apenas quando um ou outro soldado aparecia no caminho gritando. Será que fugir era realmente tão fácil assim?

Então, Hocela parou de supetão e soltou Yuki.

— Prepare-se para lutar.

Os dois prepararam suas espadas, mas não se moveram.

— Haru, atrás de você!

O homem então se virou com pressa e ouviu o barulho das espadas se chocando. Se não fosse por Hocela, estaria morto. Aqueles guardas não eram idiotas, sabiam que só teriam chance de lutar de igual para igual contra o Demônio Cego se não fizessem barulho.

Yuki trincou os dentes e tentou se concentrar em tudo ao seu redor, mas realmente não conseguia ouvir nenhum barulho além da luta que o amigo travava ao seu lado.

— Preciso que me guie – falou então.

— Deixe-me cortar essas linhas!

— Mas eu sou cego de nascença.

Hocela estalou a língua, com raiva, mas olhou para o lado e gritou:

— À sua direita está vindo alguém! Agora em gente também! Cuidado, estão brandindo as espadas!

Só assim, Yuki conseguiu se defender e lutar contra os guardas silenciosos. Mas não conseguia fazer mais do que se defender dos ataques.

Então lembrou daquele dia da floresta com Zaki, Anya e Paul. Sabia o que fazer.

— Suba em mim quando eu estiver transformado – falou para Hocela.

Largou a espada e foi crescendo e aumentando até quebrar o teto com sua cabeça. De sua pele começou a crescer escamas vermelhas e asas saíram de suas costas, assim como um rabo espinhento.

Rugiu em fúria, sentindo alguém pequenino subir em sua pata. Só aí sentiu-se seguro para soltar uma rajada de fogo, conseguindo finalmente escutar os guardas.

Quando acabou, transformou-se novamente em humano.

— Vamos!

Hocela não se deixou paralisar com o susto de ter visto um dragão, correu com afinco guiando Yuki pelos corredores.

Finalmente, Yuki sentiu a grama sob seus pés descalços. Liberdade. Estava tão feliz que sentiu lágrimas de alegria saindo de seus olhos, com um sorriso brilhante.

Então foi empurrado para frente por algo que atingiu seu ombro direito e caiu. Uma dor excruciante o atingiu e suas lágrimas de felicidade tornaram-se de dor.

— Haru! – gritou Hocela voltando – Está bem?

— O que aconteceu?

— Uma flecha, estão atirando em nós pelo telhado. Precisamos nos apressar!

Yuki levantou-se e esqueceu a dor por um instante, correndo como se sua vida dependesse disso, e talvez dependesse mesmo.

Os dois correram e correram. Yuki sentiu que entrou em uma floresta, ainda guiado por Hocela.

— Está tudo bem – disse o amigo – Podemos descansar. Já estamos longe o bastante.

Yuki relaxou e toda a dor esquecida voltou ao seu ombro, uma dor delirante.

Caiu ao chão, inconsciente.