Sobre a criação de todas as coisas e dos homens primordiais

E aconteceu Olcán, o Nada. E em Olcán habitava Ennaë, o Vazio. Tempos imensuráveis passaram, tempos que nada importam para esta história, e Ennaë concebeu o Primeiro e Único, chamado pelos homens de Maelan ou Cenn-Fáelad, muitos outros nomes ele recebeu, muitos outros nascimentos teve. De Maelan, o Único, vieram todos os deuses, todos os senhores e senhoras da existência. A Olcán esse crescimento e aumento de poder não agradou e houve a primeira grande batalha. Eram doze os grandes senhores e senhoras, ao seu lado estava Maelan e juntos triunfaram sobre Olcán, o Nada. Com a vitória, veio a posse sobre Ennaë, o Vazio.

Ora, Maelan vivia em Ennaë em companhia dos doze grandes, mas logo seus pensamentos voltaram-se para algo ainda mais grandioso do que enfrentar o nada. Em sua mente, crescia a vontade de dar existência às coisas, não apenas existir. O havia feito com os doze grandes e a idéia de repeti-lo lhe alegrava o coração e aquecia seu espírito. Então convocou seus doze filhos e filhas para um conselho, comunicou-lhes seu desejo e isto soou aos doze como uma grande tarefa, quase impossível de ser realizada, mas uma vez que Maelan o falara, Maelan o faria. E diante deles começou a entoar uma melodia, uma melodia que repercutiu nas paredes de suas mansões até fender suas paredes. Alguns deles, os sábios que mais compreendiam a vontade do grande deus, entenderam que a melodia, embora ressoasse de forma branda e gentil, continha palavras que ordenavam que Ennaë ruísse para sempre. Ao percebê-lo, um deles ergueu-se rapidamente e avançou em direção ao seu pai, o pavor tomando seu rosto por completo. Foi impedido por dois acontecimentos: o primeiro foi Seirien, aquele já nascido mais velho que seus irmãos, que lhe vedou o caminho, o segundo, talvez mais efetivo, foi que a melodia mudara. O som que antes enchia o salão, agora retumbava entre suas paredes e o teto, chocando-se com eles de forma violenta e finalmente, com um grande estrondo, tudo desmoronou sobre suas cabeças. Grande foi a perturbação causada pela canção de Maelan que agora definhava em seus lábios. Maior foi a surpresa que se derramou sobre os doze grandes quando perceberam que não haviam sofrido nenhum mal, uma sensação singular instalou-se em cada um deles naquele momento e acreditem, foram das sensações as mais diversas e extremas. Seus olhares voltaram-se curiosos para de todas a maior criação de Maelan. E agora, o lugar que antes era bloqueado por paredes e além dele abrigava Ennaë lhes dava uma visão sobre um globo que parecia flutuar no que sobrara do vazio. Maelan o observou durante alguns momentos e então falou:

“Meus filhos e filhas, que o contentamento se espalhe em vocês como farta a mim. Pois diante de vocês está Adanna, o mundo. Que grandes feitos o esperam. A vocês cabe o ato de dar existência às coisas, pois a capacidade para tal reside em mim assim como em seus próprios seres.”

Os doze senhores e senhoras tinham pensamentos diferentes que lhes davam existência, embora remetessem sempre a fragmentos de pensamentos de seu grande pai, com a criação de Adanna suas individualidades revelaram-se na forma de criações. São, na ordem em que chegaram a Adanna: Camira, Nairna, Danladi, Tirza, Gwenaelle, Yelitza, Wedast, Tiadelik, Sydril, Vaus, Agnessa e Seirien.

Quando Camira, o senhor de todas as terras, do fogo e da luz chegou a Adanna, rochas corriam sobre o mundo na forma de imensos rios de fogo e calor. Com um toque de suas mãos a terra rachou engolindo todo o fogo e fechando-se, revelando agora uma planície eterna sobre seus pés. Ora, Camira é o precursor de todos os deuses, tendo a reputação de não apreciar coisas que se mostravam excessivamente corretas fez surgir montanhas e colinas, vales e depressões profundas. Olhou ao redor e percebeu que sua criação era robusta, mas não havia como admira-la no escuro em que Adanna estava mergulhado. Pensou na luz que o fogo proporcionava e seu ser foi tomado por um poder que poucos deuses conseguiram igualar mais tarde. Tomou uma pequenina pedra em sua mão e a jogou para o alto com toda a sua força, fazendo-a voar para muito acima do globo. Com um movimento de sua outra mão a pedra incendiou-se e pareceu explodir no alto, tomando um tamanho ainda maior que a criação do seu pai. Agora a luz refletia sobre Adanna e Camira sentiu-se pleno. Sua morada é abaixo da terra, onde construiu para si uma mansão onde, dizem, riachos de rochas líquidas ainda correm livremente. Quando está em sua forma habitual, é um homem grande e robusto, sua pele é bronzeada e em seus olhos brincam centelhas de fogo. Prefere, assim como Nairna, manter-se afastado das questões dos humanos, mas quando sente-se ofendido, a terra agita-se e tremores fortes podem ser sentidos, inclusive nos dias presentes.

Nairna é a deusa mais respeitada dos doze grandes senhores e senhoras da existência. Seu temperamento impetuoso pode ser apenas equiparado a sua beleza. É chamada de deusa de todas as águas que banham o mundo, mas também o é sobre a água que se oculta nos reinos profundos de Camira. Os humanos não lhe direcionam entusiasmo, mas lhe pedem bênção e prosperidade para suas terras. Quando os mares foram desbravados pelos humanos, a senhora das águas sentiu-se inundada por tamanha humilhação que passou a enviar grandes enchentes a Adanna. São suas as nuvens que enchem o firmamento e despejam sua chuva sobre o mundo, revigorando-o e matando-lhe a sede. Vive sozinha no fundo dos oceanos e de lá não sai com freqüência, apenas se perturbada.

Grande era a vastidão de campos verdejantes cobertos por flores quando Tirza terminou suas criações. Danladi é senhor das florestas densas e misteriosas que costumavam recobrir grandes áreas de Adanna. São ambos altos, a mulher não menos que o homem, e esbeltos, suas vestimentas longas roçam o chão e são adornados por pedras preciosas e fios de ouro que Camira lhes presenteia com prazer, por recobrir sua própria criação com tamanha vitalidade e júbilo.

Poucos deuses se empenharam tanto em sua criação como Gwenaelle, senhora e criadora de todas as criaturas que habitam Adanna. Ora, Gwenaelle observou o trabalho de seus irmãos e irmãs com afinco e percebeu que dificilmente conseguiria realizar algo que chegasse perto de seus feitos. Pediu, então, permissão para fazer surgir dentro de suas criações a vida nas mais diversas formas e tamanhos. E assim foi feito. Durante muito tempo empenhou-se para criar vida por toda Adanna, não esquecendo de nenhum lugar, por menor e menos acolhedor que parecesse. Gwenaelle possui duas faces quando costuma aparecer diante dos humanos, a primeira é serena e ingênua, a segunda selvagem e instintiva, a forma com que aparece depende da pessoa que a vislumbra, assim como lida com a criação da deusa.

Nenhuma criação fez jus ao seu criador como a lua e as estrelas fazem a Yelitza, senhora das pérolas que adornam as noites escuras. Quando Camira criou o Sol, Yelitza sentiu-se muito entristecida, pois adorava a noite. Pediu-lhe que reconsiderasse e lhe mostrou com um aceno de mão como o escuro recobria de forma bela todas as criações. Mas o irmão apenas se lembrava de como sua criação era ainda maior que a de Maelan, e dela não quis abrir mão. Então Yelitza entrou no mar límpido de Nairna, esperançosa de que estivesse ocupada com outros afazeres, e de lá retirou muitas pérolas que cintilavam um brilho fraco em suas mãos. Segurou-as com suas mãos em forma de concha e repentinamente atirou-as para o alto. Os olhos de Camira faiscaram espantosamente quando as pérolas flutuaram diante deles e voaram para o céu escuro, pontilhando-o com inúmeras manchas luminosas. Mas Yelitza não havia terminado. Entrou novamente no mar e por um longo tempo permaneceu lá, procurando. Depois de muito tempo voltou, tempo suficiente para chamar a atenção dos outros deuses, pois por mais atarefado que um deus possa ser ainda percebe quando o firmamento tinge-se de negro, segurava uma pedra de um branco puríssimo. Observou seus irmãos e irmãs, Nairna até aquele momento não esboçara nenhuma reação, sorriu e a pedra flutuou de suas mãos. Diante dos olhos dos deuses, a lua tomou seu lugar no firmamento. Camira e Yelitza concordaram em dividir os céus, durante algum tempo o sol iluminaria Adanna e em outro, a lua se ergueria no céu, límpida e bela. Muitas outras histórias envolvem Yelitza, mas mais sobre ela será contado em uma melhor hora.

Wedast é o senhor das tempestades que assolam o firmamento. Fortes são seus raios, curta é sua paciência e ensurdecedor são os trovões que faz retumbar nos céus. Foi dos deuses o que mais lutou contra Olcán além de Maelan, o desejo de batalhas e violência o acompanha desde então. É grande sua satisfação após uma luta vitoriosa e dobrado é seu desejo de vingança após fracassar.

Seirien é o mais sábio dos deuses e imenso é o respeito que lhe é dado, com exceção de Wedast e Agnessa. Suas criações foram o crescimento e o amadurecimento de tudo que é vivo. É o deus das transformações e do tempo, do desenvolvimento e das estações. É deles que todos os outros deuses dependem para que suas criações cheguem ao seu máximo esplendor. Agnessa, em uma de suas brincadeiras, o afetou tão profundamente que o tirou de seus trabalhos, desequilibrando seus poderes e fazendo surgir uma nova deusa no caos do tempo. Agora, os seres que existiam não apenas cresciam e amadureciam, mas também pereciam até a morte. Mavra, a deusa criada por um deus confuso, foi atacada de todas as formas pelos irmãos de seu pai, mas permanecia diante deles com suas vestes negras e semblante plácido. Cabe a ela conduzir e cuidar dos espíritos dos mortos, tarefa que lhe foi dada como uma maldição.

Muitos são os problemas que Agnessa criou para seus irmãos. O mais jovem dos deuses gosta de ocupar seu tempo perturbando as criações dos seus irmãos e o faz obstinadamente, uma vez que não conseguiu realizar sua própria. É provável que conseguiria se o tentasse, seu espírito possui uma esperteza da qual nenhum dos seus irmãos compartilha. No lugar disso, usa sua língua afiada para criar intrigas entre os deuses maiores e os observa, rindo, entrar em conflitos. Depois do que aconteceu a Seirien e Mavra, Agnessa foi incumbido por Maelan a manter o equilíbrio entre as demais criações, embora Wedast tenha sugerido que fosse jogado no oceano mais profundo de Nairna e esquecido, ato que só não aconteceu porque a deusa recusou-se a ter um hóspede tão inconveniente.

Neste ponto precisamos voltar ao tempo em que Tiadelik, Sydril e Vaus chegaram a Adanna e debateram durante muito tempo sobre a criação que realizariam juntos. Como tinham deixado de ser por pouco os últimos a chegar, eles se depararam com um mundo maravilhoso bem ali, diante de seus olhos. E nada que pensassem parecia útil de ser feito. Então Vaus olhou para seus irmãos e teve a idéia: poderiam criar estátuas vivas de si mesmos. Idéia estúpida, sabemos, mas deuses também tem seus dias de falta de criatividade. Tiadelik logo se deixou levar e criou os corpos dos humanos, dando-lhes a beleza dos deuses. Os observou durante um tempo, e soube o que faltava.

“Falem” ordenou. E os humanos falavam.

Mas quanta tolice eles verbalizavam! Sydril tomou o rosto de um deles entre suas mãos, o olhou profundamente e disse:

“Pensem.” E os humanos pensavam.

Era realmente algo de encher os olhos e os espíritos, imagens dos deuses ali, em Adanna, caminhando sobre a terra, comunicando-se, raciocinando e realizando feitos.

Vaus lhes ensinou tudo que sabia sobre as outras criações. E lá estavam os três deuses, encantados pelo que seria mais tarde sua ruína.