“Firdos é o grande mestre. Aquele que preciso convencer de que não sou uma ameaça ao reino, que posso ser útil ao rei como uma arma. Eu não sou boa com palavras, mas eu consigo matar. E ainda assim ele parece convencido de que não sou apenas isso.”


As ondas batiam contra o cais. O barulho adentrava o cômodo através da varanda e ninava os pensamentos de Lyvlin. Iam e voltavam, iam e voltavam. A família real. Há três gerações este título caía sobre as cabeças dos Oskias, junto com a coroa de Vassand. A rainha era de Lyle, o reino situado ao extremo leste às sombras de Tureis, a muralha de montanhas cujos picos eram cobertos de neve até nos longos dias de verão. O casamento selou a aliança entre os dois mais prósperos reinos do continente e nem ela parecia ser suficiente para garantir a paz em Vassand. O rei era primogênito da tradicional família Oskias que alcançara o trono há 130 anos numa mistura de esperteza e força, ambas na forma de pessoas. O rei parecia ter as duas coisas, mas a forma como a olhava torcendo por uma falha a fez corrigir a postura e respirar fundo. Nervosismo foi trocado por teimosia e quando cruzou os braços diante do peito sentiu Raoul se segurando para não intervir.



– Qual a importância disso? - quis saber, encarando os olhos do rei - Eu deixei o meu lar para trás e estou aqui para receber treinamento, não para ser inquirida.


– São palavras ousadas para vir de uma garotinha. – “já fiz inimigos por menos” acrescentou apenas para ela.

– Eu posso ser uma garota, mas isso não é um insulto majestade. E se o pretende talvez devesse escolher palavras melhores.

O rei ficou em silêncio por um tempo. Lyvlin sentiu a brisa salgada contornar o seu rosto e soube que tinha ido longe demais. Mas não se ajoelharia diante desse rei, nunca o faria. E soube disso no momento em que o viu. Se resolvesse jogá-la em alguma cela até apodrecer poderia tentar usar sua magia para escapar, correria até as docas e encontraria Ezra. Juntos encontrariam alguém para treiná-la e depois... Depois poderiam viver as aventuras que sonhavam. Era um pensamento estúpido, mas agarrou-se a ele enquanto observou o rei voltar a atenção para o tabuleiro. Pousou o indicador marcado pela idade sobre uma peça e hesitou.

– A filha de Layil. - disse e as palavras saíram em um suspiro. E de repente Lyvlin percebeu que o rei de Vassand tinha medo dela. Não o tipo de medo que faz as pessoas saírem correndo, mas o tipo que as deixa acuadas e sem saber como agir. O tipo perigoso.

– Você conheceu minha mãe? - perguntou.

– Ela era tempestade. – os olhos do rei pousavam sobre a baía - Tempestade que era bem-vinda quando se voltava contra inimigos, mas que você observava rezando aos deuses para que poupasse as suas terras.

– E quer que eu seja o mesmo.

– O mesmo daria uma ideia de igualdade e não é isso que espero de você. Diz que possui magia, mas sequer foi treinada porque sua mãe preferiu levá-la para longe. Temos crianças de sete anos que suplantam você em uma maneira que te faz parecer um pajem diante de um cavaleiro. Não quero que você seja uma substituta de Layil porque isso é impossível. Se chegar a um décimo do que ela foi estarei satisfeito.

– Você não viu a minha magia. – segurou-se para não contar do episódio com Raoul e Casimir. Ou do fogo. Ou de quando salvou a vida de Desmera. Nenhuma criança de sete anos treinada em magia devia ser capaz disso, ela sabia. Sabia também que não deveria ser arrogante, mas quem a ensinara isso fora Gilbert e Gilbert a havia deixado. E de alguma forma sabia que ela possuía magia e escolhera jamais mencionar o assunto, talvez seus ensinamentos em geral devessem ser jogados fora.

– Cabe aos mestres julgar a força de sua magia, senhor. – Raoul apressou-se a dizer – A levarei até o salão Esmeralda nesse momento, caso me dê permissão.

– Eu a dou. – o rei ocupara o seu lugar usual na mesa e parecia afoito em se livrar dos dois – E depois exijo que suas ações voltem-se novamente para os interesses da coroa. Já foi babá da garotinha por tempo demais.

Raoul fez uma pequena reverência, Lyvlin apenas o encarou e tentou imaginar o motivo que fazia alguém como Raoul mostrar tanto respeito pelo rei. Quando estava a meio caminho da porta deu uma volta e olhou para aquele homem debruçado sobre o tabuleiro. Talvez buscasse refúgio nas peças, talvez esperasse que elas sussurrassem a solução para os problemas de Vassand. Mas não conseguiu sentir simpatia. No lugar disso limpou a garganta:

– O nome da garotinha é Lyvlin Tessart, rei Osric.

–--x---

Raoul ficou em silêncio enquanto a guiava pelos corredores e Lyvlin sentiu a sua desaprovação, mas não se importou.

– Então este é o rei de Vassand?

– Sim, é.

– Não é como eu imaginava.

– Poucas coisas são. – passavam por um grupo de guardas. Um deles fez menção de falar algo, mas então o seu olhar caiu sobre Lyvlin e os olhos do homem se arregalaram. Era um sinal. E não o primeiro. Mas Lyvlin estava envolvida pelo feitiço de Beltring e de sua fortaleza real, não conseguia tirar os olhos dos mosaicos nas paredes, das curvas que moldavam a pedra e das armaduras resplandecentes. E das cores. Vez ou outra alguém passava por eles vestindo tecidos que ela nunca tinha visto antes, em cores que a garota não sabia que existiam. Eram púrpura e escarlate, seda e veludo. E ouro. Viu uma mulher com ouro trançado em seus cabelos e quando atravessaram a ponte Raoul voltara a ser o mesmo.

– Estamos na capital do reino Lyvlin, espera-se um pouco de... Tato e respeito quando falamos com o rei. Ou com qualquer superior.

– Ele é apenas um homem. – Lyvlin deu de ombros – O trono de Vassand não é herdado, é? Como os Oskias conseguiram permanecer tanto tempo nele?

Era uma pergunta válida, mas que fizera apenas para manter Raoul contente enquanto lhe explicava algo que ela já deveria saber. Gostava de ouvi-lo. Falava com convicção e paixão de assuntos que fariam outras pessoas caírem no sono. Fizeram Lyvlin cair no sono todas as vezes que Gilbert tentara meter algo sobre o reino em sua cabeça.

– O trono de Vassand é passado adiante em uma grande cerimônia. É uma época de disputa e alianças políticas e no fim surgem nomes que se enfrentam. A tradição é que um reino deve ser governado com força e sabedoria e são estas as qualidades que são postas à prova. Aquele ou aquela que foi indicada pelo rei ou rainha anterior tem a vantagem de poder escolher o desafio e isso lhe confere uma grande vantagem. Mas isso só acontece se o nome sugerido não for aclamado e os Oskias não tiveram problema com isso.

– Aclamado?

– Sim. Os desafios só acontecem quando o candidato real não é aceito pela maioria das casas do reino e então abrem-se as candidaturas e os três com maior peso entram em disputa com o candidato real. Quando a aclamação não acontece é sinal de que quem ocupou o trono não soube articular as suas alianças.

O sol tocava a baía fazendo-a resplandecer em tons de vermelho e laranja. Era difícil não amar Beltring e sua baía dourada. Quis parar e observar o sol se pôr por alguns momentos, mas sabia que não dispunha do tempo agora. Amanhã, talvez.

– E os Oskias sabem articular alianças. – falou mais para si mesma e se forçou a lembrar disso mais tarde.

Raoul anuiu.

– Possuem o comando sobre a frota ratriana e um velho aliado governa as minas e os poços de fundição em Faolmagh. Osric tem o reino nas mãos – deu um pequeno suspiro de cansaço – Espero que seja o suficiente para o que está por vir.

– Acha que Darian está com problemas no norte? - quase falara “aqui”. Mas os montes gelados estavam muito, muito longe agora.

– Talvez. – e soube que isso o incomodava mais do que expressava – Mas ele não está sozinho. E no fim Darian é sua melhor defesa. Eu não posso continuar.

Lyvlin parou e o encarou. Depois viu que estavam diante das escadarias do alojamento. As últimas luzes do dia faziam os degraus de arenito branco brilhar e depois dos grandes portões escancarados estava a escuridão.

– Urobe. – tentou se lembrar e mordeu os lábios.

Raoul lhe deu seu primeiro sorriso do dia.

– Sim. E se o conheço bem ele já deve saber da sua chegada e a está aguardando. Ele é um bom homem Lyvlin e uma das vozes mais respeitadas do reino. Tente não destratá-lo.

– Eu não posso prometer isso.

Não ficou para ver se ela realmente entraria o que foi bom porque significou que também não viu que suas mãos começaram a tremer e que teve que cerrá-las num misto de irritação e medo enquanto encarava a construção alta. Os portões eram de bronze e na superfície cravejados com símbolos e figuras, a cada passo que dava sentia como se as estátuas mantivessem os olhos em suas costas. Mas era impossível, eles mostravam as costas para ela. Quando alcançou a entrada viu que o grande corredor não estava mergulhado na escuridão completa, braseiros erguiam-se em ambos os lados e levavam a um espaço amplo muitos metros adiante. Alcançara a metade quando trombou na primeira pessoa.

– Tome cuidado! – censurou o homem, abraçando os livros que trazia nos braços como se fossem o seu maior tesouro – Iniciantes. – bufou e apressou os passos na direção contrária.

Agora que seu coração lentamente se acalmava, Lyvlin percebeu que as paredes mostravam cenas pintadas contra a pedra gelada. Viu um guerreiro envolvido por luzes douradas erguendo uma espada diante de um batalhão e uma mulher ajoelhada ao lado do leito de morte de um rei, ou pensou ter visto porque o dançar das chamas jogavam as sombras de um lado para o outro. Mais pessoas andavam de cima para baixo no largo corredor e quando alguém passava ao seu lado a cor do fogo e a intensidade das fagulhas mudava. Desviou-se de um garoto com musgo no lugar de cabelos e teve que se controlar para não encarar outro que parecia ter sido jogado em um poço de gemas preciosas tamanha era a luminosidade que pulsava debaixo de sua pele. Mais tarde saberia que aquele era o corredor da Verdade e como todos os outros lugares do alojamento era tocado pela magia. O espaço amplo ao fim do corredor parecia conter um arco-íris, ou assim Lyvlin achou, porque o ar que o preenchia era tingido de vermelho, azul, verde e amarelo. Quando pisou no cômodo percebeu que se enganara. Não se tratava de um arco-íris e sim de vitrais coloridos pelos quais a luz se transformava em feixes de rubi, safira, esmeralda e ouro. O teto abria-se em uma abóboda de vidro dezenas de metros acima e por todo o salão escadarias levavam para os andares superiores e algumas desciam para as entranhas rochosas da construção. Lyvlin sentia-se completamente perdida. Pessoas passavam por ela certas de seus destinos e a garota olhava ao redor desejando que se transformasse em uma das tapeçarias do chão.

– Urobe sabe que você está vindo. – imitou Raoul da pior forma que pôde – Ele estará esperando, não se preocupe.

Quando ouviu o pigarro atrás de si quis que o chão se abrisse.

– Ele está esperando. – censurou uma voz e quando virou-se viu que pertencia a um homem magricelo envolvido em uma túnica. Tinha um bigode falho e as sobrancelhas densas estavam franzidas – Desrespeitosa e com cabelos flamejantes. Logo se vê a quem puxou.

– Meu nome é Lyvlin Tessart, se Urobe está esperando leve-me a ele. – viu que o pouco caso que fez de sua figura o deixou indignado e agradeceu por lhe virar as costas e começar a guiá-la com passos curtos enérgicos sem dizer mais nada.

Tentou memorizar o caminho, mas depois de duas escadarias e cinco curvas desistiu da ideia. Recebeu olhares curiosos por todo o trajeto, mas estava decidida a ignorá-los. E se alguém queria dizer algo, a presença hostil de seu guia o manteve em silêncio.

– O salão Esmeralda. – anunciou o homem com último olhar de desdém a empurrou através de uma brecha nos portões e a seguiu logo depois.

Era impossível não perceber o motivo de como era chamado e Lyvlin não pôde deixar de pensar que alguém não tivera o mínimo de criatividade. Porque o enorme salão que se erguia à sua frente era uma esmeralda. O espaço parecia ter sido cravado no coração de uma joia de centenas de metros, o chão era negro e todo o resto era uma mistura de tons esmeralda e estava mergulhado em uma luz tímida que emanava deles. Era estranhamente alentador. No meio do salão estava uma mesa de pedra bruta e assentos esculpidos da mesma pedra preciosa erguiam-se ao seu redor. Na última delas estava sentado uma figura que acenou para que se aproximasse. Quase relutou, mas quando ouviu o chiado da respiração do mensageiro atrás de si deu o primeiro passo adiante.

– Lyvlin Tessart. – anunciou o homem atrás de si como se falasse sobre um prato particularmente azedo – A encontrei perambulando no Salão das mil Cores como disse, mestre.

A figura na cabeça da mesa se ergueu e levantou também os braços em um gesto de boas-vindas.

– Aproxime-se, aproxime-se. Meus velhos olhos só podem estar me enganando. – pediu e a garota chegou mais perto. Era estranho andar sobre aquele chão tão escuro e imediatamente teve que pensar no lugar onde curara Desmera. Naquele lugar não parecera haver nada abaixo de seus pés também.

– Ah, finalmente! – a figura revelara-se como a de um senhor que parecia velho demais para estar vivo e pelo modo como batia palmas de excitação estava mais perto de ser um lunático do que uma das vozes mais poderosas do reino. Mas aquele era Urobe, o mais alto conselheiro entre aqueles tocados pela magia e mais uma decepção para o dia de Lyvlin. Imaginara-o alto, intocável em seus trajes e com um olhar determinado. Aquele senhor certamente fora alto algum dia, mas agora suas costas curvavam-se com o peso de seu tronco. Usava roupas puídas, de uma forma que poderia pedir esmolas nas ruas movimentadas e os olhos pareciam ter visto mais coisas do que deveriam. Quando estava ao seu alcance suas mãos esqueléticas envolveram as dela e pôde sentir a pele fina e as veias aparentes debaixo dela.

– Estou tão feliz em vê-la bem! – confidenciou e parecia tão contente que Lyvlin não conseguiu reprimir o sorriso.

O velho olhou por cima do seu ombro e soltou as suas mãos.

– Mas você veio sozinha?

Lyvlin balançou a cabeça.

– Vim com Raoul, Desmera e Adisa. Casimir também estava conosco no começo, mas depois partiu para a fortaleza de Faolmagh. – o que foi um dos poucos pontos positivos dessa viagem.

Urobe levou a mão ao queixo ou onde seu queixo deveria estar debaixo de quase um metro de barba branca.

– Raoul... Sim, sim. Um bom garoto, Casimir fez a escolha certa... Adisa – franziu as sobrancelhas por um curto momento – Não tão bom, imprevisível. Mas na presença de Desmera, sim, sim foram muito inteligentes.

Lyvlin não sabia se deveria interromper o monólogo e no fim escolheu ficar em silêncio.

– Buscaram a garota em Evion na hora certa-

– Não – tentou pensar em como deveria se referir a ele – Urobe. Eles me encontraram em Perth, ou melhor dizendo, eu os encontrei.

– Perth? Não, não, não. Achei que Isone cumpriria a sua parte.

– Ele cumpriu. Sumiu na primeira oportunidade que teve. – era um assunto que preferiria evitar, mas se aquele homem era a razão pela qual fora mandada para Ciandail estava disposta a ser franca, ou o mais próximo disso que conseguiria ser.

Então contou tudo. A fuga de Evion, os hemeristas e nirnailas em Perth e quando estava prestes a falar sobre a sua magia Urobe levantou a mão para interrompê-la.

– Darsk. – chamou e o mensageiro que escutava a tudo com uma expressão de quem não acreditava em uma única palavra aproximou-se – Acho que podemos continuar sozinhos a partir daqui. Chame os outros, quando terminarmos vamos ter algo para apresentar a eles.

– Mas senhor eu poderia ficar aqui e contar a eles as minhas percepções.

– Duvido que os mestres estejam interessados em mexericos meu velho amigo. – e com uma rígida mesura Darsk deslizou para fora dos portões. Quando as pesadas peças de metal se chocaram novamente Urobe voltou os olhos para Lyvlin e neles havia uma estranha intensidade que lhe fez dificuldades para não contar nada sobre Laoviah. Porque o seu bom senso lhe dizia que Urobe poderia ser uma das pessoas mais entendidas em magia de seu tempo, mas confidenciar encontros com a arauto de uma deusa exigia uma confiança maior do que ela tinha agora. Enquanto falava Urobe a olhava e pesava cada uma de suas palavras, obviamente sabia que ela não estava contando tudo e ficou grata por não mencioná-lo.

– Você diz que as chamas te obedeceram?

– Não. De alguma forma consegui empurrá-las para o lado.

Urobe nada comentou e depois de alguns segundos pediu para continuar. Descreveu rapidamente a briga com Gilbert a quem Urobe se referia como Isone e como o quarto parecera ter sido devastado. Foi nesse ponto que a interrompeu de novo.

– Casimir teve que tocá-la para que parasse?

Lyvlin tentou se lembrar. Raoul estava sangrando no outro lado do quarto e Casimir vinha em sua direção, as mechas dos seus cabelos fizeram cócegas em suas bochechas e a mão veio de encontro a sua testa. Depois havia o vazio.

– Sim. – respondeu hesitante.

Por um momento a expressão de Urobe ficou séria, as rugas em seu rosto se tornando mais e mais proeminentes. E então soltou uma gargalhada que parecia tirar vinte anos de suas costas de uma só vez. Lyvlin o encarou imaginando como Vassand poderia funcionar se aquele fosse a figura mais alta quando o assunto era magia. Esperou que parasse de rir e enxugasse as lágrimas.

– Agora isso eu gostaria de ver. – falou, convidando Lyvlin a se sentar. Não sabia o que tinha feito, mas o agradara.

O assento de pedra era inesperadamente confortável. As braçadeiras permitiram a Lyvlin sentir-se de alguma forma protegida e quando Urobe pediu para que contasse sobre Adisa e Desmera o atendeu.

– Desmera estava sem cor quando a encontrou em Anwar? - quis saber depois de permanecer um longo tempo em silêncio. Lyvlin esperara uma reação positiva e o tom exigente a fez hesitar.

– Anwar?

– É o que chamamos de caminho paralelo na língua esquecida.

– Sim, ela estava sem cor. – não conseguiu entender como aquilo faria alguma diferença – Então a toquei e desejei que ficasse boa.

– Desejou?

– Sim. Desmera me contou que é assim que ela consegue fazer magia. Talvez sejamos parecidas.

– Não são. – disse com intensidade e sua expressão se suavizou – Um grande amigo prometeu a sua mãe que a ajudaria a encontrar o seu caminho na magia e eu prometi aos seus pais que faria o mesmo por você.

– Então por que estava em Faolmagh e não aqui? Por que não fui treinada desde o início? - a ideia de ter lições com crianças de seis anos a deixava no mínimo desanimada.

– Foi um pedido de sua mãe. Um pedido ao qual atenderíamos, mas que ela não permaneceu para ver realizado. Preferiu confiá-la a Isone e cuidar da sua proteção pessoalmente. – Urobe olhou para as cadeiras vazias e pesar carregava suas palavras – Antes tudo a confiar em alguém.

– Eu não a vi uma vez e agora ela está morta.

– Sim, agora ela está morta. – Urobe pousou a mão sobre seu ombro e apertou – Mas ainda existem pessoas que querem o seu melhor. Mais do que imagina.

– Meu pai. – Lyvlin ergueu-se – Raoul disse que quando chegasse a Beltring saberia mais sobre meu pai.

– O que você sabe?

– Que ele está morto, que era uma espécie de herói. Se alguma palavra de Isone era verdade.

– É verdade. As duas coisas, eu sinto muito. Procure a melhor pessoa no manejo de armas que você ver no pátio de treinamento e peça que lhe fale sobre Thomas Tessart, o chamavam de o Justo. Aposto que terá uma melhor história dele do que eu guardo em minha mente cansada. Agora... O seu amigo.

Estava tão mergulhada em seus pensamentos que a princípio não o ouviu.

– O seu amigo – repetiu Urobe e seus dedos acariciavam a barba – Ezra.

– O que tem ele?

– Ele não foi preso. – comentou Urobe e mesmo fazendo-o sem mostrar particular interesse Lyvlin liberou as suas garras.

– Ele não tem nada a ver com isso. Vai partir para Faolmagh assim que souber que estou bem. – ou ao menos esperava que o fizesse.

– Eu queria conversar com ele. Sabe onde posso encontrá-lo?

A mentira veio rápida e sem esforço.

– Tentaria se albergar em uma das hospedagens no cais, ao menos isso foi o combinado. – procurou em sua mente até encontrar o que queria – Acho que era algo como O grasnido do ganso.

A estalagem tinha sido uma das poucas construções a ficarem marcadas em sua mente, grande parte por causa da placa medonha que mostrava um ganso com o bico aberto soltando o que ela imaginara ser o último grasnido de sua vida. Urobe aceitou aquilo, mas teria continuado o assunto caso Darsk não entrasse no salão com pompa e anunciasse que os mestres estavam prontos. A pausa era bem-vinda, mas o alívio não durou muito.

Eram três e todos eles se encaixavam melhor naquilo que ela esperava ser Urobe do que ele próprio. Uma das mulheres era alta e esguia, trajava um vestido do que aparentava ser cota de malha, mas movia-se como se os anéis de aço fossem feitos de plumas. Era a mais nova do grupo e a mulher que a seguiu tinha cabelos na cintura e usava uma tiara trançada de prata, seu vestido de mangas amplas era de puro marfim e o olhar que lançou a Lyvlin a alertou de que teria problemas.

– O que é tão importante que me forçou a encurtar o meu banho? - exigiu saber o homem que fechava a comitiva. Lyvlin conseguiu disfarçar uma risada com um acesso de tosse. Porque o homem era uma mistura de águia, urso e alce. Os seus lábios estavam deformados, a carne assemelhando-se ao bico de uma águia pesqueira. A forma como andava era a de um urso que se levanta sobre as duas patas traseiras para parecer mais intimidador, mas no caso dele o fazia ribombar de um lado para o outro e uma galhada de alce erguia-se de ambos os lados de sua cabeça.

– É assunto Tessart, Breuse. – falou a mulher de cota de malha tomando o seu lugar na mesa – E então, ela é uma linair ou não?

Os olhares que os demais mestres trocaram indicavam que não era o assunto que eles queriam abordar primeiro.

– O que isso significa? - quis saber Lyvlin.

– Que você pode ser uma das legendárias pessoas a possuir poderes semi-divinos. – a mulher de vestido branco revirou os olhos, mas a de cota de malha continuou falando – E se for verdade temos um grande problema.

– Linair significa “olhos prateados”. – explicou Urobe, que era o única que não estava abalado pela objetividade da conversa – Era o nome dados às pessoas que receberam parte do poder de Tiadelik ao longo das gerações e mais tarde foi usado também para as de Vaus e Sydril.

– Por quê?

– Porque os linair de Tiadelik eram os únicos que sobreviviam tempo o suficiente para serem notados, é por isso.

– Cena...

A mulher com a cota de malha levantou os ombros em questionamento e cruzou as pernas sobre a mesa.

– O quê? - perguntou irritada – Se Tessart está aqui ela deve saber de tudo, ou vamos exigir lealdade em troca de gracejos que estão tão longe da verdade quanto Breuse está de nós?

Breuse estava dormindo em sua cadeira, o peito largo subindo e descendo em um ressonar violento. Lyvlin tapou a boca para não rir, aparentemente o conselho de mestres tinha seus próprios problemas.

– Eu concordo. – disse Urobe e a mulher com a tiara endireitou-se na cadeira. Seus olhos eram de um verde tão profundo que faziam competição às veias de esmeralda e tinham o estranho poder de forçar Lyvlin a olhar para outro ponto quando seus olhares se cruzavam – Espero que sua fome ainda aguente um pouco Lyvlin.

Quis dizer que não aguentaria porque seu estômago se rebelava e porque faria a mulher com a tiara ficasse irritada, mas no fim a curiosidade venceu e Urobe já começava a falar.

Dechtere era seu nome, da mulher séria com a tiara de prata nos cabelos negros como tez. Era, assim Urobe contou, representante de Rattra no conselho e a mais poderosa entre todos aqueles que usavam suas mentes para realizar magia. Sentada ali, com as pernas cruzadas e a coluna reta não parecia assim tão poderosa. Mas havia algo em seu porte contido e orgulhoso, na maneira como observava Urobe com placidez enquanto este contava alguns de seus maiores feitos, que fez Lyvlin não querê-la como inimiga e se forçar a parecer especialmente surpresa com o seu papel na batalha dos campos arenosos. Isso é nada. Dizia em silêncio, mas também não interrompeu o grande mestre em sua narrativa. O próximo era Breuse que estava acordado depois de receber o cotovelo de Cena nas costelas. Se provou, como Lyvlin imaginara, ser o general do qual Desmera lhe contara. O que ela deveria prestar atenção pela
sua peculiaridade, mas nada que ela falara preparara Lyvlin para a visão quase cômica que o general apresentava. Breuse tomou as palavras para si e pelo que parecia ser uma eternidade se gabou de como não havia uma parede de escudos que ficara erguida quando ele estava presente, de como seus pensamentos estrategistas e maravilhosos haviam sido a vitória para os exércitos reais inúmeras vezes e que os competidores desistiam quando sabiam que ele participaria do festival de justa anual.

– Breuse aqui está ocupando um lugar vago. – comentou Cena quando o general parou para respirar.

Os punhos de Breuse se cerraram e bateram sobre a mesa com tanta força que ela quebraria caso não fosse de pedra. Lyvlin se perguntou se não havia substituído uma que tivera esse fim.

– Os alquimistas tem um lugar de honra no conselho desde antes de você nascer, pirralha.

Cena congelou e de repente foi tomada por um acesso de tosse. Quando levou a mão até a boca parecia sussurrar algo e então ergueu os olhos e sorriu ao ver a galhada de Breuse amolecer até ameaçar cair para os lados como galhos finos demais lutando para segurar uma fruta madura.

– Eu mato você! - vociferou o general e assim que se ergueu foi jogado de volta a sua cadeira e por mais que tentasse se libertar cordas invisíveis pareciam envolvê-lo. Cena do outro oposto parecia enfrentar algo parecido, mas no caso dela algo a impedia de abrir a boca.

– Ridículo. – Dechtere quebrou o silêncio e se voltou para Urobe – Esse conselho está corrompido por tolices e irresponsabilidade.

– Mas não lhe falta coragem e boa-vontade. Isso aliado à lealdade incondicional parece ser suficiente para ignorarmos eventuais interrupções, não é minha cara? Agora, por favor, solte-os.

Dechtere encarou Urobe e com um suspiro de frustração desfez o feitiço. Breuse soltou um último rosnado (e realmente pareceu um urso enquanto o fazia) e cruzou os braços, o que deu a Lyvlin a esperança de que havia parado de monologar sobre o seu exímio valor à humanidade.

– Quem os alquimistas estão substituindo no conselho? - quis saber a garota e Cena ainda trabalhava em normalizar a sua respiração o que deu espaço a Dechtere se voltar para ela pela primeira vez.

– Há um século o último conselheiro de Faolmagh foi expulso de Ciandail e quando digo isso me refiro apenas ao conselheiro de magia. Desde então a cadeira permaneceu vazia e a coroa trabalhou com afinco para tornar Faolmagh a região mais contente com o governo e, portanto a mais submissa. Isso era vital.

– Por quê?

– Porque Faolmagh esconde a pior forma de magia conhecida pelos homens. – parou um instante para analisá-la – Como deveria saber, há três formas de magia conhecidas em Vassand e cada uma delas é proveniente de uma de suas regiões. Rattra tem sua força para moldar a magia através das mentes das pessoas com o dom, ou daquelas elevadas o suficiente para aprendê-lo, uma dádiva da deusa Sydril. Há milhares de anos o próprio Tiadelik ensinou aqueles a quem julgou dignos a língua antiga que possui em suas palavras o poder de transformar a realidade.

– E qual é a magia proveniente de Vaus?

A pergunta pairou no ar e Lyvlin insistiu:

– São apenas três os grandes deuses de Vassand e em Faolmagh o rito a Vaus nunca parou completamente, mesmo quando a coroa o proibiu décadas atrás. Eu achei que era por Vaus ter tentado destruir os humanos primordiais, mas isso foi há milhares de anos e não faz sentido. Foi por causa de sua forma de magia, não foi? - olhou nos rostos dos mestres e encontrou a confirmação – Qual é a forma de magia passada por Vaus? Não pode ser tão ruim, pode?

Especialmente porque eu a tenho. Ou imaginava que tinha. Se Laoviah estava certa, e aqui se supõe que arautos de deuses merecem alguma credibilidade, Lyvlin era uma linair. E se Casimir era o de Sydril e se o de Tiadelik precisava usar palavras para realizar magia o resultado era no mínimo inconveniente. E se era proibida, o que os mestres fariam com ela?

– A magia em si não é o problema. – disse Cena – O problema é que cada feitiço, por menor que seja, precisa de uma fonte. A fonte de Tiadelik são as palavras, as de Sydril a cabeça...

– A mente. – corrigiu Dechtere.

–... A cabeça. A de Vaus, o que por muito tempo foi tolerado até se tornar uma ameaça direta à coroa, é a vida. Dependendo da magia eram necessária apenas alguns dias de vida a menos e para os magos que o praticavam seria estupidez usar a sua própria como fonte de energia – o que cá para nós faz sentido – e considerando a pobreza de Faomagh logo surgiram pessoas que acompanhavam os magos em troca de comida e um teto por cima da cabeça. O que são alguns anos a menos quando a sua barriga não vê comida há dias? Fontes, era como eram chamados e quando os praticantes descobriram que era possível usar as almas das pessoas como fontes a coisa se tornou mais lucrativa ainda.

– Almas?

– Sim, na prática significa que você vive como alguém normal, com algumas pragas aqui e ali, piolhos e fome, mas nenhum dia é tirado da sua vida. Pela magia pelo menos. Quando sua vida acaba você vai direto para os braços de Mavra porque não tem uma alma para ser julgada. No fim praticantes se tornaram insustentáveis porque todo o seu crescimento estava ligado diretamente ao sofrimento de outras pessoas e o rei na época achou tudo aquilo muito bom enquanto não acontecia dentro de seus muros.

– Cena...

– É verdade. Magos de Vaus são os mais poderosos em batalhas porque eles matam pessoas para matar pessoas.

– Isso foi a melhor descrição que já ouvi. – murmurou Breuse.

Cena anuiu sorrindo.

– E tudo teria terminado bem se tivessem se limitado a serem máquinas de guerra não pensantes, mas isso era pedir demais. Uma grande revolta se armou e deu tanto trabalho para ser esmagada que muitos dos melhores magos da coroa caíram enquanto tentavam segurar as posições de defesa.

– E no fim?

Os lábios de Cena se curvaram em um sorriso sarcástico. Abriu os braços indicando todo o salão e falou:

– O que você acha?

Urobe parecia transitar entre o que se passava em sua cabeça e o que estava acontecendo e finalmente tomou o controle da situação.

– O que Cena está tão entusiasticamente querendo dizer é que os alquimistas tiveram um papel principal na resolução do conflito o que lhes rendeu uma cadeira separada no conselho, independente do tipo de magia que usam. Resolvido isto vamos terminar as apresentações... – olhou ao redor – Ah, Cena. Importa-se?

– Você pode falar. É raro que eu escute elogios.

Urobe sorriu cansado e Lyvlin percebeu que Cena era o que dava vida àquele salão. Entre a pose contida de Dechtere, os roncos de Breuse e a energia calma do ancião nada parecia sacudir as reuniões do conselho tanto quanto a presença da jovem. O vestido de cota de malha e a espada na bainha indicavam que estaria pronta para uma batalha quando quer que fosse necessário. Os olhos diziam o mesmo. A facilidade com que um sorriso se estampava em seu rosto era curioso, mais curioso ainda por não significar uma reação a algo engraçado ou pura alegria na maioria das vezes. Os cabelos loiros eram curtos, com falhas no corte que o deixava de diferentes comprimentos, os mais longos balançavam a meio palmo de seus ombros.

– Cena é, como pode ver Lyvlin, a mais jovem integrante do conselho.

– E não apenas do atual. – lembrou Cena.

– Não. – concordou Urobe – É a mais jovem a integrar a mesa do conselho na história de Vassand. E a representante de Ciandail.

Lyvlin olhou para aquela figura displicente que cruzava as pernas por cima da mesa do conselho. Que aquela fosse a representante da região mais próspera e do centro de governo do reino era algo que honestamente não esperava. Imaginava que Urobe o seria, mas agora percebia que o lugar do grande mestre era acima das regiões e das diferentes formas de magia. Talvez fosse o óleo que mantivesse toda a engrenagem funcionando. Cena sorria para Lyvlin, desafiando-a a contestar a informação.

– Eu faço os meus truques aqui e ali. – disse respondendo a pergunta não feita – Podemos seguir?

Havia um quinto integrante do conselho, alguém a quem os mestres se referiam como Valdrin e que Lyvlin entendeu como sendo os olhos e ouvidos do rei nas reuniões.

– Ele iria cuidar da minha viagem para cá, não iria? - perguntou Lyvlin, lembrando-se do encontro com lorde Harlas – Mas Urobe pediu a Raoul que me trouxesse mais cedo.

– Valdrin está no norte ao lado de Darian. Ele é muito próximo do rei e sua presença ao lado da primeira campanha do príncipe seria mais do que esperada. – Urobe disse – Raoul é um bom homem e quando Casimir o escolheu para atender ao meu pedido não mediu esforços, o que talvez lhe traga alguns problemas agora... O importante é que você está aqui e Valdrin não.

Quando viu a dúvida em seu semblante Cena continuou:

– Ele é uma marionete do rei e não o queremos interferindo aqui. Por enquanto. – apressou-se a dizer e com uma pontada de alívio Lyvlin soube que o rei não era muito querido pelo conselho. Talvez pudesse confiar neles afinal.

– Lyvlin, eu preciso que seja muito honesta conosco agora. – Urobe a olhou, seus dedos longos e marcados pela idade passeavam pela sua longa barba – Nós não queremos cometer o mesmo erro novamente e causar mais sofrimento desnecessário. Com tudo que ouviu aqui e com tudo que você viveu até agora, em algum momento passou por uma situação que a fizesse imaginar que poderia ser uma linair?

Na verdade uma mensageira divina se referiu assim a mim algumas semanas atrás. Pensou.

– Não. – falou – Eu tenho o dom e consegui realizar magia algumas vezes, mas nada perto do que vocês falaram.

– Ela mente. – afirmou Dechtere no mesmo momento.

Breuse fechava os seus punhos novamente, mas Cena interveio.

– E podem realmente culpá-la por isso? Não foi por isso que a queria aqui Urobe, para testar se é verdade e prepará-la?

Uma terrível apreensão instalou-se em Lyvlin e enquanto os mestres trocavam olhares em sua forma silenciosa de chegar a uma conclusão a garota lutava entre precisar saber o que estava acontecendo e não querê-lo.

– Me preparar para o quê? - perguntou finalmente.

– Você não pode ser tão estúpida, não leve para o lado pessoal. – Cena descruzou as pernas e sentou-se direito, estendeu os braços em cima da mesa até alcançar as mãos de Lyvlin e as apertou – Vassand está morrendo. Meus amigos aqui podem achar loucura, mas enquanto sentamos aqui e conversamos mais ataques estão sendo planejados e cada novo plano é mais uma adaga em nosso corpo e cada aliança feita um novo prego em nosso caixão. O único que está se movendo para evitar isso é o nosso rei e isso você pode levar para o lado pessoal. Sorria Tessart, o rei a quer como nova máquina de matar.