"Está amolecendo, Layil. Nars comentou, metade zombaria, metade preocupação. A guerreira limpava sua espada, o pano que usava tão encharcado de sangue que rosnou para o servo buscar um novo. Deveria estar festejando nos salões, não aqui. Foi uma grande vitória, uma vitória importante. Notei que estava tentando se convencer de que a matança fora necessária. Os renegados... Comecei a falar, mas a voz de Nars se ergueu. Dançaram fora do ritmo! Vai lhes servir de exemplo para que não tentem nenhuma gracinha daqui para frente. O servo voltara e Nars esfregava sua espada com tanto esforço que pérolas de suor se formavam em sua pele escura. O aço estava polido, mas o que minha amiga tentava limpar estava além do seu alcance. Eles são nosso povo também. Não posso concordar com o que Coran fez, não posso perdoá-lo. Murmurei, segurando com carinho meu ventre que crescia a cada dia. Nars ergueu os olhos castanhos para mim e neles havia medo. É dele?"

Quando acordou sentiu um peso no peito. A cabeça ainda doía e sentia-se presa, o mundo parecendo repentinamente denso demais. Respirar doía, mas cada vez menos do que na respiração anterior. O sol queimava seu rosto, banhando sua pele em calor e ao longe ouvia abelhas zumbirem alegremente na relva. O capim a espetava através da blusa de linho e quando seus olhos se acostumaram a claridade viu borboletas brancas circularem sua cabeça, navegando a brisa suave que soprava do leste. Estava viva e sentia-se inteira, tomando algum tempo para sorrir para sua sorte. E deveria ter sorte mesmo, porque quantas pessoas poderiam dizer terem voltado dos salões de Mavra? Aquilo fora feito com uma promessa. Uma promessa que lhe colocara algemas cujas chaves pertenciam a outra deusa, mas algo lhe dizia que estar em dívida com Sydril seria melhor que a alternativa. As lembranças do que acontecera tornavam-se enevoadas e cada vez que tentava se lembrar das feições das deusas, elas se tornavam mais distantes. Desistiu por fim, entendendo que talvez aquilo deveria ser esquecido. Mas o espelho d'água estava nítido em seus pensamentos, assim como o presságio feito pelas videntes e que levara Cecile, a leal e torturada Cecile, a cravar uma faca em sua garganta. Imaginou que a maioria das pessoas do reino fariam a mesma coisa em seu lugar. Darian era uma promessa tornada carne de dias melhores. E o povo o amava. Tocou o ponto em que a lâmina penetrara sua carne, mas seus dedos não encontraram qualquer sinal de ferimento.

Lembrou-se de Kwasir e em como parecia desafiar as palavras sussurradas pelas videntes. Sua vida era uma afronta para a irmandade que previra sua morte quando era apenas uma criança e ainda assim, teimosamente, Kwasir se recuperara. Se haviam errado uma vez, poderiam errar de novo. As palavras do caçula de Wodan ressoaram em sua mente e a fizeram se inquietar. Cecile considerara a profecia forte o suficiente para matá-la e Lyvlin não acreditava que as videntes tivessem qualquer poder sobre suas ações. Mas não estava pronta para arriscar a vida de Darian, caso tivessem. Deu um suspiro cansado, bloqueando o sol com sua mão estendida. Pensaria naquilo depois, quando todos estivessem em segurança. E então se lembrou da armadilha. Ergueu-se de sobressalto, o que não funcionou muito bem porque o peso em seu peito se revelou como a cabeça gigantesca de uma loba.

Laoviah abriu os olhos amarelos e encarou Lyvlin do seu descanso.

— Você vive. - sua voz ecoou na cabeça da garota como se não esperasse outra coisa - Bom.

Ergueu-se lentamente, o pêlo negro brilhando no sol forte. Lyvlin observou-a se espreguiçar como se fosse um vira-lata tomando banho de sol em uma viela e não a arauto de uma deusa.

— Estava dormindo em cima de mim? - Lyvlin quis saber de bom humor, estava feliz em ver a loba - É o que parece.

— A morte não lhe privou do grande senso de observação. - Laoviah percebeu e então acrescentou de má-vontade - Eu a estava guardando. Sydril me ordenou.

Lyvlin sorriu de como fazia aquilo soar como um grande castigo.

— Preciso da sua ajuda. - falou para a loba em tom respeitoso - Preciso chegar a Naniv o mais rápido possível. - podia apenas esperar que a comitiva ainda continuasse ali. Se não estivesse... Afastou o pensamento.

Tinha certeza que convencer a loba a ajudar levaria tempo precioso que ela não tinha. No lugar disso Laoviah deu de ombros e quando Lyvlin ficou parada a loba a encarou com olhos famintos.

— O que está esperando? - vociferou - Suba!

A boca de Lyvlin se abriu.

— Isso é permitido? - perguntou e se aproximou. Laoviah era grande demais para que conseguisse escalar sem puxar seu pêlo, coisa que Lyvlin tinha certeza, seria seguido por uma mordida feroz - Talvez se você se abaixasse um pouco? - sugeriu em dúvida.

Laoviah se abaixou o suficiente para Lyvlin conseguir se içar para suas costas. O pêlo da loba era macio e espesso, Lyvlin envolveu seu pescoço em um abraço forte, enfiando seu rosto na pelagem brilhante.

— Obrigada. - disse contra o monte de pêlo, o que lhe rendeu alguns fios na boca - E obrigada por me guardar.

Talvez Laoviah estivesse lutando contra o impulso de derrubá-la de suas costas, mas finalmente Lyvlin sentiu a musculatura forte da loba relaxar debaixo de si.

— Foi uma ordem. - disse simplesmente, como se aquilo fosse óbvio e encerasse a questão.

Lyvlin imaginou que ser usada como montaria seria um grande insulto para Laoviah, por isso não tocou mais no assunto. A loba virou para o sul e saltou adiante, movendo-se mais rápido que qualquer cavalo que Lyvlin já vira. Teve dificuldade para se manter no lugar. Conseguia montar um cavalo sem sela ou arreios, mas ninguém a ensinara a montar lobos gigantes. Teve que se adaptar ao movimento de Laoviah, que com suas longas pernas saltava e corria contra o vento como se vidas dependessem daquilo. E dependiam, Lyvlin sabia. As patas de Laoviah arrancavam tufos de capim da terra seca e às vezes pequenos seixos acertavam as bochechas de Lyvlin. O vento assobiava em seus ouvidos, fazendo seus pensamentos voarem longe.

O que faria uma vez que encontrasse seus amigos? Não podia ter esperanças de alcançar a comitiva antes do grupo de Kwasir e avisar sobre uma armadilha que já acontecera tornaria sua mensagem inútil. Seus olhos se fecharam quando uma nova torrente de areia e cascalho era arrancada da terra e voava em sua direção. O aperto firme nas costas de Laoviah para se manter montada deveria machucar a loba, mas ela não reclamou. Talvez entendesse que uma queda poderia quebrar o seu pescoço, o que tornaria Lyvlin inútil para sua senhora. Lyvlin ergueu os olhos para o céu, onde o sol estava em seu ponto mais alto. Estava atrasada. Terrivelmente atrasada. Se inclinou sobre o pescoço de Laoviah até ficar o mais próximo possível de suas orelhas.

— Pare! Espere! - gritou urgente para que suas palavras não fossem carregadas pelo vento - Pare!

Laoviah o fez tão abruptamente que Lyvlin foi jogada para a frente, agarrando-se desesperada ao pêlo da loba até seus dedos perderem contato com a pelagem. Foi lançada bons cinco metros pelo ar, até as presas da enorme loba se fecharem sobre sua blusa, impedindo que arrastasse seu rosto no chão. A segurou assim por alguns segundos, como uma mãe que protege seus filhotes de si mesmos. Quando finalmente colocou Lyvlin no chão o fez com tamanho cuidado que a garota se admirou. Tornar-se endividada com Sydril certamente lhe garantira um tratamento melhor pelos seus servos. Mas não testaria sua sorte. Os dentes de Laoviah haviam cortado a parte de trás de sua blusa, que agora caía dos seus ombros. Lyvlin a colocou de volta no lugar e no mesmo movimento pôs as mãos nas ancas.

— Naniv deve ficar naquela direção - indicou a direção que Laoviah seguira pela manhã inteira. Seu silêncio confirmou que aquilo estava certo. Lyvlin respirou fundo, deixando o ar entrar em suas narinas vagarosamente - O mar não está longe. - aquilo não era uma pergunta. Conseguia sentir os resquícios da maresia no ar, o sal já se adensava sobre sua pele.

— Naniv é a ruína de uma fortaleza construída no alto de um monte não muito distante da costa. - Laoviah confirmou com a certeza de quem conhecia o território como uma extensão de seu corpo, seu focinho virou-se para o leste e se inflou enquanto inspecionava os ares - Alcançaremos as ruínas em menos de uma hora.

— Não. - Lyvlin estivera se perguntando como Kwasir esperava fugir uma vez que conseguisse pôr as mãos em Darian. Desde o início lhe parecera improvável que tomasse o caminho por terra, arriscando ser atacado por todo o trajeto do sul de Rattra até Adrahasis, onde a vida do príncipe certamente interromperia o cerco à capital e daria ao povo de Wodan a jóia do reino.

Então Kwasir precisaria escapar o mais rápido possível uma vez que tivesse Darian em seu domínio. Palavras sobre o rapto do príncipe se espalhariam pelo reino como centelhas em um campo seco, era certeza. Como também era certeza que o rei alertaria todas as cidadelas, colocando seus melhores cães farejadores nos calcanhares de Kwasir. Não poderia esperar que a fuga fosse bem sucedida. Não quando escapava com o príncipe herdeiro por uma terra inimiga. Lyvlin ergueu os olhos, imaginando como Ezra veria aquela situação. Era ele o melhor em jogos como Caça tesouro, em que o objetivo era atacar o inimigo e conseguir afanar um tesouro debaixo do seu nariz.

Lyvlin era muito ruim no jogo porque focava demais na ofensiva, Ezra lhe explicara um dia quando a garota perdera três vezes seguidas. Estava com raiva e havia jogado o tablado de jogo longe, espalhando as peças que Ezra tão cuidadosamente esculpira para os dois. Estavam pelo chão, formando um grande cemitério de grupos mistos. Começou a catar as pequenas figuras enquanto murmurava um pedido de desculpas vazio, que Ezra aceitara com um dar de ombros.

— Não é justo. Eu tinha o exército maior. - ela dissera entre os dentes sentindo lágrimas de raiva embaçarem sua vista. Queria ganhar uma vez. Só uma.

— Vencer o inimigo é apenas a primeira coisa que você deve fazer. - Ezra ensinara, parecendo muito sábio em estratégias de guerra para um garoto de nove anos - O segundo objetivo é fugir com o tesouro e é nessa parte que eu venço você. De novo e de novo.

Lyvlin jogara as peças sobre o tabuleiro, ajeitando-o em cima da mesa. Trocou as figuras de lado, deixando-a com as peças pintadas de preto que haviam levado Ezra a vitória.

— Eu jogo com esses agora. - ela anunciara com confiança - E se você ganhar, eu te bato.

Ezra rira diante daquilo. Sabia como aquilo terminaria.

— Certo. - ele dissera com os olhos brilhando de humor, sentando-se mais para frente em sua cadeira, pronto para sair correndo quando fosse a hora.

Era um jogo estúpido, Lyvlin decidira alguns anos depois. E ainda assim, vencer o inimigo era apenas a primeira parte da vitória. Aprendera nos livros que Gilbert e depois Raoul a obrigaram a ler. Arrastando-se de frase em frase, tropeçando nas palavras todos os grandes conquistadores pareciam concordar que uma luta poderia ser vencida de duas formas. A primeira, e essa era a usada na maioria das vezes, era simplesmente estar em uma vantagem numérica grande o suficiente para afogar o inimigo no próprio sangue. Boas idéias e planos ardilosos não sobreviveriam a um exército gigantesco. Ou a magos habilidosos. E se o lado inimigo contasse com um linair a batalha já havia terminado antes de começar. Mas claro, Lyvlin era linair apenas no nome. Lhe faltava qualquer domínio sobre a magia que trazia dentro de si ou conhecimento para dobrar a energia que emanava dela. Levaria anos para chegar ao poder que Casimir comandava e ainda assim, provavelmente nunca chegaria aos seus pés. Disso sabia. Como sabia que de nada sua magia lhe serviria agora. Poderia não ser suficiente caso tentasse, ou talvez nirnailas a caçariam novamente. Na pior das hipóteses, o descontrole sobre o poder de Vaus contido nela poderia se virar contra seus amigos. Decidira que não usaria sua magia para ajudar a comitiva, coisa que Laoviah considerara a melhor saída.

— Você provavelmente falhará. - a loba dissera enquanto correra com Lyvlin pelas planícies entre Rattra e Ciandail - Mas se usar sua magia, a derrota é garantida.

O que desbalanceava terrivelmente seu lado. Sem número e sem magia, Lyvlin podia apenas esperar de alguma forma desmantelar os planos que Kwasir tinha para escapar com Darian. E rezar para que Kwasir não visse através do seu plano. Essa era a segunda forma de vencer uma batalha: ser ardilosa o suficiente para colocar o inimigo onde se queria, quando se queria. Mas antes disso Lyvlin teria que achar um barco.

Desconfiava que o grupo de Kwasir não viera do norte cavalgando desde que estivera no acampamento do povo de Wodan. Haviam poucos cavalos que provavelmente eram frutos de saques bem sucedidos a fazendas. Hara confirmara aquilo com sua conversa sobre como Lyvlin conheceria o pode contido naquele povo quando os visse com as suas grandes montarias de além do mar tempestuoso. O que agora significava que a demora de Kwasir mover seu bando tinha mais um motivo além da espera dos batedores: teria que esperar o retorno dos mensageiros que enviara para a embarcação junto com os comandos para velejarem para o sul e encontrá-los perto da ruína de Naniv. As peças se encaixavam maravilhosamente, traindo o propósito de Kwasir. Lyvlin esperava que estivesse certa. Precisaria estar ou seus amigos não conseguiriam deixar as ruínas da fortaleza. Olhou para o horizonte, onde sabia, o mar se quebrava contra os grandes penhascos da costa. Seria necessário uma pessoa experienciada na arte da navegação para encontrar abrigo das ondas e refúgio até Kwasir retornar com sua presa. O povo de Wodan não era conhecido pelo talento de rasgar as águas com seus barcos elegantes e rápidos, cuja velocidade seria mais um empecilho para navegar pela costa pedregosa. Mas Kwasir não era tolo. Deveria ter escolhido a dedo quem comandaria seu navio, quem asseguraria a fuga que lhe faria cair nas graças do pai. E aprendera a não subestimar a cria de Wodan.

— Ele tem um navio. - e quando falou aquilo, Lyvlin teve certeza. Apoiou-se no flanco da loba para se manter firme. O que faria agora?

Laoviah a encarava sem denunciar o que pensava daquilo. Lyvlin achava que a loba saberia de tudo, pois aquelas eram as terras e as águas de sua senhora. Nada escaparia da sua atenção, mas não lhe revelaria nada. A ela apenas os assuntos dos deuses importavam. E Lyvlin passara a respeitar aquilo.

— Quero encontrá-lo. - pegou-se dizendo e não esperou a resposta da arauto. Subiu em suas costas sem ajuda e apontou para a costa - Para lá. - pediu, ao que Laoviah se pôs em movimento de novo.

Achar o navio de Kwasir levou a tarde inteira. A costa era formada por penhascos pedregosos, onde o mar colidia raivoso contra rocha muitos metros abaixo. O vento ali era muito forte, jogando o cabelo de Lyvlin contra seu rosto e tirando sua atenção. Gaivotas voavam muito acima delas, grasnando como se achassem graça de sua busca sem fim. Passaram horas ali, inspecionando cada pedaço, cada pedra maior que poderia esconder o barco de seus olhos. A maré estava enchendo, o que dificultava o seu trabalho. Significava que quem quer que comandasse o navio teria que manter o casco longe das pedras pontiagudas dos penhascos, mas teria que permanecer perto o suficiente da costa para se abrigar dos olhares curiosos de algum navio que navegasse aquelas águas. A rota costeira era bastante utilizada pelos navios de Ciandail para Rattra, especialmente com a luta em Adrahasis se tornando mais disputada. Agora, o navio de Kwasir tinha que se manter escondido tanto de navios mercadores quanto dos grandes navios de batalha que o rei enviava para o norte com tropas e suprimentos. Se um destes avistasse o navio de Wodan em suas águas o escape de Kwasir estaria em risco, mas Lyvlin não poderia confiar que aquilo acontecesse. Provavelmente os olhos dos capitães de Ciandail se viravam para o lado oposto, onde navios de Wodan poderiam surpreendê-los no mar aberto. Teria que encontrá-los sozinha.

— O que vai fazer com o barco? - Laoviah quebrou o silêncio do vento açoitando seu rosto - Queimá-lo?

Lyvlin balançou a cabeça negativamente. Seus olhos se estreitaram. Saltou das costas de Laoviah e se aproximou da beira do penhasco, deitando a barriga contra o chão e se arrastando os últimos metros.

— Fique onde está! - avisou a Laoviah - Não quero que te vejam.

— Sou vista apenas se assim desejar. - a loba resmungou, mas Lyvlin não prestava atenção.

Apoiou-se nos cotovelos, tentando enxergar o que parecera uma proa entre as pedras perto do penhasco. A água batia contra a costa com violência ao redor, mas Lyvlin conseguiu entender porque escolheriam aquele lugar. A baía era rodeada pelas grandes rochas que se erguiam da água como lanças ou dentes de algum monstro marinho. Mas uma vez passando pelo labirinto de pedras, a água se tornava mais amena perto da costa. E as rochas manteriam o barco escondido de frotas que navegavam o mar aberto. Pensou ter visto de relance uma vela e logo depois a água se acalmou o suficiente para a embarcação surgir entre as pedras que a cercavam. Era longe demais para que Lyvlin pudesse ter certeza, mas viu algumas pessoas cuidando do navio. Kwasir deveria ter deixado apenas a tripulação para trás. Era um navio grande, Lyvlin conseguiu contar quinze remos em um lado, o que significava trinta remadores ao todo. Uma tripulação grande e o grupo de Kwasir era maior ainda. Duvidava que todos teriam lugar na volta. Provavelmente uma parte seria obrigada a atravessar as terras hostis que os separavam de Adrahasis.

— Vai queimá-lo? - Laoviah repetiu, parecia entediada.

— Não. - em parte porque não fazia idéia de como faria aquilo - Quero que vão embora nesse navio.

— Sem o príncipe herdeiro.

Lyvlin anuiu, decidindo que seu plano era frágil demais.

— De preferência. - respondeu finalmente, voltando-se para Laoviah - Leve-me a Naniv.

A região em que Naniv se situava era a mais verde que Lyvlin vira até aquele momento em sua viagem. A brisa marítima trazia chuvas àquela região, tornando os montes que se erguiam perto da costa tapetes cobertos de pasto e árvores jovens que se agrupavam em pequenos grupos. Musgo e liquens adornavam troncos e pedras, salpicando-os de verde e branco. O arvoredo era espesso o suficiente para esconder o grupo de Kwasir, com arbustos e madressilvas bloqueando o caminho. No chão, folhas caídas competiam por espaço com ervas e flores silvestres. Era um lugar bonito, Lyvlin percebeu, e cheio de perigo. Laoviah avançava com cuidado, suas orelhas peludas erguidas para qualquer barulho. Estava atenta aos blocos de pedra que se levantavam do chão em pequenas ilhas brancas cobertas de musgo e liquens. Eram as únicas clareiras que encontraram pelo caminho. Uma coruja piou curiosa de sua morada entre os galhos, Lyvlin ergueu os olhos para o céu procurando algum sinal de que a noite as protegeria. O sol estava deitado no horizonte, mergulhando o firmamento em tiras de vermelho e laranja. Logo escureceria e Lyvlin deveria alcançar a fortaleza encoberta pelas sombras da noite. O pensamento a deixou animada, ainda que a inquietação crescesse dentro dela. Logo saberia o que acontecera aos seus amigos. E se Kwasir avançara mais cedo e já estivesse com Darian? E se havia ordenado a morte do restante da comitiva? Lyvlin sentia seu coração tamborilando em sua garganta, cada salto de Laoviah fechando-a um pouco mais. Suas mãos suavam e o pêlo da loba escapava do seu aperto, deslizando pelos dedos molhados.

Quando as sombras começavam a cair sobre a floresta jovem, Lyvlin ouviu o barulho que a fez congelar. Laoviah parou, ergueu o focinho no ar e rosnou baixinho. O som as alcançava ecoando entre os troncos finos, machados rasgando a noite. Alguém cortava árvores noite adentro. Aquilo significava duas coisas: que a comitiva ainda estava enclausurada nas ruínas e que Kwasir cansara de esperar e finalmente começara a construir escadas para suplantar as muralhas antigas. Era nisso que Lyvlin queria acreditar, de qualquer modo. Laoviah já as levava por um caminho mais longo, que rodearia o grupo que Kwasir mandara para a floresta. E aquilo foi bom, porque Lyvlin viu luzes de tochas entre os arbustos. Abaixava-se sobre o dorso da loba, tentando se fazer o mais imperceptível possível contra o pêlo espesso de Laoviah. Mais alguns momentos e o barulho dos machados se tornou distante e foi substituído pelo som conhecido de um acampamento. Laoviah emergiu das árvores e Lyvlin o viu: tendas se espalhavam pela campina. As fogueiras estavam altas, as chamas lambendo o ar que esfriava na ausência do sol. Mas seus olhos não se demoraram ali, no lugar disso se voltaram para as muralhas da ruína de Naniv que se erguiam negras na noite.

A fortaleza de Naniv era uma estrutura de pedra retangular que se levantava na grande clareira e em sua época deveria ter sido uma maravilha particular naquela região. Lyvlin podia ver duas torres, ainda que uma delas parecia prestes a ruir. Naniv fora lar de famílias importantes que comandaram o Alterf séculos atrás, intermediando a fronteira entre Rattra e Ciandail. Ali, lendas diziam, acontecera uma das batalhas mais importantes pela unificação dos três reinos. Nas raízes de Naniv os grupos tribais do norte finalmente foram dobradas e se ajoelharam diante dos pés de Anika - a defensora - e assim, se subjugaram às leis de Vassand. E houve paz por muitas décadas, ainda que Lyvlin duvidasse a quem essa paz servira. A glória daqueles anos não deixara marcas em Naniv, parte da muralha havia cedido em seu ponto mais alto e os desenhos esculpidos na torre do portão pareciam um fantasma do que haviam sido, marcas leves numa pedra que enegrecera. Lyvlin se perguntou se eram sinais de fogo e de alguma maneira soube que fora assim que a grande fortaleza encontrara seu fim. Desconfiava que era pela presença de Laoviah e que a loba a permitia olhar em suas memórias. Havia pequenos pontos luminosos na paliçada, onde tochas estavam acesas para manter um olho sobre o inimigo que sitiava a ruína. Kwasir colocara grupos no portão principal, um enorme vão nas pedras bloqueado por madeira e ferro. Parecia precário visto dali, mas Lyvlin imaginou que Raoul mandara reforçar a madeira velha pelo lado de dentro.

— Quantas entradas? - sussurrou para Laoviah enquanto escorregava do seu dorso.

— O portão principal - a loba respondeu indicando com o focinho a entrada guardada pelo povo de Wodan - Um menor no lado oeste. - e antes que Lyvlin perguntasse, acrescentou - Está guardado também. Não conseguirá entrar por lá.

O único lugar que não parecia infestado pelo inimigo era o lado voltado para a floresta. E aquilo se devia ao fato de ser a parte onde a muralha se mantivera mais intacta ao longo dos séculos. Ninguém ousaria descer por ali e escapar entre as árvores porque a descida teria que ser lenta e cuidadosa, lenta o suficiente para ser interceptada quando fosse preciso. Lyvlin balançou a cabeça, tentando se convencer do que faria a seguir.

— Não imagino que possa simplesmente pular a murada. - tentou incerta, mas Laoviah se manteve em silêncio.

— Até a fortaleza de Naniv e nenhum passo a mais. - pareceu ecoar suas ordens para Lyvlin. Imaginava que não contaria com a ajuda da loba dali em diante, mas de repente a gravidade da situação a alarmava. Laoviah a viu encarando as próprias mãos na escuridão e se eriçou - Vai escalar a muralha? - havia surpresa e ira em sua voz - Não a trouxe para cá para assisti-la despencar para a morte!

— Até a fortaleza de Naniv e nenhum passo a mais. - Lyvlin repetiu, virando-se para a arauto de Sydril - Obrigada por me trazer até aqui.

Laoviah a encarou com seus grandes olhos amarelos, dois feixes de luz tênue no arvoredo. Pareceu avaliar se veria Lyvlin de novo ou não e finalmente virou o pescoço e mordeu o próprio pêlo denso. Quando olhou para a garota havia uma capa negra entre seus dentes. A empurrou contra a barriga de Lyvlin até que abrisse os braços para aceitá-la. Sua pelagem estava intacta e ainda assim o toque na capa era igual aos fios que cobriam seu corpo. Lyvlin a vestiu, puxando o capuz sobre a cabeça e a amarrando na frente da garganta. Sentia-se alentada e segura debaixo do pêlo de Laoviah e estava prestes a falar aquilo quando a loba lhe virou as costas.

— O branco da sua blusa seria visto a quilômetros de distância, mesmo nas sombras. - murmurou na mente de Lyvlin - Não se acostume. - avisou e desapareceu entre as árvores como se nunca tivesse estado ali.

Lyvlin encarou o ponto em que a loba desaparecera até encontrar coragem dentro de si para avançar. Manteve os olhos sobre os homens mais próximos que faziam rondas na parte de frente do muro e que poderiam vê-la da esquina da muralha. Quando sumiram atrás dela, Lyvlin rodeou pelo abrigo das árvores até chegar diante da parte mais alta da muralha. Olhou ao redor e não viu qualquer sinal de que fora descoberta. Respirou fundo e correu a curta distância que separava as primeiras árvores da amurada de Naniv. Seu passos eram rápidos, mas precisavam ser silenciosos também. Alcançou o muro sem ser avistada e mergulhou na sombra da ruína contra o luar. Soube que seria difícil que a avistassem enquanto escalava. As sombras e o manto de Laoviah a esconderiam de olhares curiosos, mas nada daquilo importaria se caísse. Encarou as pedras que se erguiam diante dela, tentando montar o melhor caminho entre os lugares em que lascas haviam se soltado ao longo das décadas e pontos em que a pedra parecia especialmente desgastada. Sabia que dariam um bom apoio e que com a mesma facilidade em que a impulsionariam para cima, falhariam debaixo dos seus pés e a fariam despencar. Havia escalado muros antes, numa competição idiota com as crianças do vilarejo para saber quem alcançaria os lugares mais altos. Aquilo fora proibido quando Filly caíra e quebrara a perna, o que o deixara mancando até a adolescência. Era boa em escalar árvores também, coisa que viera com as caças e a necessidade de se esconder de caçadores de outros vilarejos durante os duros invernos de Faolmagh. No tempo em que voltar com comida significava mais alguns dias de barriga cheia e longe das garras gélidas da fome. Respirou fundo e cuspiu nas mãos, esperando que a saliva tornasse seu aperto mais firme.

A subida foi mais lenta e dolorosa que esperava. Um exercício de instinto enquanto tateava o muro em busca de um desnível que poderia ajudá-la a escalar. O esforço de se içar de um apoio para o seguinte fez seus braços arderem como se estivessem mergulhados em fogo-vivo antes de alcançar metade da muralha. Se caísse agora com certeza quebraria as pernas. Heras cobriam aquela parte do muro, protegidas do calor do sol pelas sombras da fortaleza, formando um cobertor denso que Lyvlin teve que contornar. Por três vezes o suporte debaixo de um dos seus pés se desfez em pedaços de pedra e pensou que encontraria o chão no momento seguinte. Mas de alguma forma suas mãos se mantiveram firmes e encontravam o lugar onde teriam que estar no movimento que se seguiria. Ouviu o barulho de conversas debaixo de si algumas vezes, o que a forçou a parar a escalada e apertar os dentes com força enquanto rezava a Sydril para que os homens não erguessem os olhos. Talvez a deusa realmente estivesse olhando por ela naquela noite, porque a conversa logo se reiniciava em tom despreocupado e Lyvlin podia avançar silenciosamente. Seus dedos começaram a sangrar no último pedaço de muro que teria que suportar, perdendo contato com a pedra e a fazendo vacilar. Olhou para baixo, o vento brincando com seus cabelos e jogando o capuz para trás. Se caísse agora estaria morta.

— Vamos, suas coisas inúteis. - exigiu dos seus dedos calejados, concentrando suas últimas forças em escalar os metros de pedra diante dela.

Quando por fim se içou pelas ameias pensou que não tinha mais força para um último esforço. Deixou-se cair do outro lado, o que teria sido desastroso se a passarela não continuasse naquele ponto também. Em vez de cair dez metros, caiu um e meio, o baque contra o chão frio expulsando todo ar que ainda tinha nos pulmões. Havia uma tocha acesa no muro atrás dela que usara como guia enquanto escalava. Mas se as sentinelas de Kwasir não estavam em sua melhor noite, o mesmo não podia se dizer de quem vigiava dentro dos muros de Naniv.

A flecha ricocheteou na pedra fria alguns centímetros diante do seu rosto.

— Mostre-se! - uma voz exigiu, seguida de passos apressados que logo pararam - Mostre-se! - repetiu e Lyvlin quase podia ouvir a corda do arco se retesando na escuridão.

Virou-se de barriga para cima, rir não fora uma boa idéia porque logo arquejava. Sua gargalhada transformou-se em uma mistura de lamento de dor e lágrimas de felicidade. Havia conseguido.

— Lyvlin? - e então Raoul teve certeza. Encostou seu arco e a flecha escapou entre seus dedos.

Correu até ela e a abraçou ainda no chão, o riso de alegria escapando do seu controle. Na luz das tochas seus olhos estavam fundos e exaustos. Os dois se sentaram e se entreolharam, tentando adivinhar o que acontecera no tempo que passaram separados.

— Falaram que você estava morta. - o rapaz quebrou o silêncio.

— Fiquei melhor. - Lyvlin se divertiu com a confusão no rosto de Raoul.

Ele tomou as mãos dela entre as suas, inspecionando os cortes em seus dedos como se temesse que se desfizesse em névoa. Sabia que lhe renderia um sermão, mas não agora.

— Não vou mentir para você, minha amiga. - parecia a primeira vez que se referia a ela daquela forma - Talvez tivesse sido mais sábio permanecer do outro lado da muralha. Nossa situação se agrava a cada momento que passa.

— Eu sei. - Lyvlin lhe respondeu com simplicidade - Vim tirar vocês daqui.

A maneira como falara aquilo dava a entender que seria fácil. No lugar disso Lyvlin não fazia idéia se estariam vivos na noite seguinte. Mas que escolha teria?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.