Você me ama? Ele pergunta todas as noites quando somos os únicos na tenda. O pelo de urso me esquenta, mas não tanto quanto seu corpo. Entrelaço nossos dedos e beijo sua bochecha, depois rio. Claro que não, quem você pensa que eu sou? Devolvo sempre. E ele ri também, diminuindo ainda mais a distância que nos separa. Minha salvadora. Ele responde. Mas apenas quando finjo dormir em seus braços.”

Observou a flecha voar e se pôs em movimento. Lamar soltou um grito, mas agora ela já tinha a segunda flecha no arco e a disparou antes de Everett alcançá-la.

– Me solte! – Lyvlin exigiu, sem tirar os olhos do alvo – Me solte eu preciso falar com ele!

– Você tem uma maneira engraçada de fazer as coisas Lyvlin. – Everett acompanhou o seu olhar e soltou um pequeno assobio – Primeiro o arco e a flecha.

Lyvlin revirou os olhos e lhe enfiou o arco nas mãos. Do outro lado do pátio os gemidos de Lamar eram música para os seus ouvidos. Mas não havia terminado.

Não pretendia matá-lo. E se o pretendesse não o faria em pleno pátio de treinamento. Mas isso não a impedira de chegar muito perto. As pessoas saíram de seu caminho enquanto se aproximava a passos largos. Quando viu o efeito de suas flechas sentiu uma pontada de orgulho. As duas tinham atravessado couro e tecido e se enfiado profundamente nos pilares de madeira que sustentavam a área de descanso coberta por um telhado de feno. O impacto tinha feito um pouco cair na cabeça do garoto. Lamar gritava a plenos pulmões, a cabeça tão vermelha quanto quando chutara a barriga de Lyvlin. Vê-lo de perto a fez levar a mão onde os golpes a haviam atingido. Ainda teria costelas quebradas se a garotinha não a tivesse curado. Não. Se os sinos não tivessem anunciado a chegada da comitiva de Darian ele a teria matado. A fúria a ajudou a sustentar seu olhar. E a fez cerrar os punhos.

Quando seus olhos se encontraram as palavras morreram na garganta em sua garganta. Lamar tentou se soltar, mas as flechas estavam bem posicionadas. Lyvlin ficou em sua frente e aproximou seu rosto do dele. O garoto suava e tinha qualquer resquício de cor apagado de sua pele.

– Espero que tenha tido um dia bom. – ela sussurrou, tocando as penas da flecha próxima ao seu ombro – Porque vai piorar bastante.

– O que é essa loucura? – quando Lyvlin se virou viu Isla, uma das capitãs da guarda real. Diante dos soldados e dos novatos presentes no pátio ela era a maior autoridade ali. E também o exercia, tanto na voz quanto na postura.

– Lamar tentou me matar. – anunciou Lyvlin para o pátio lotado – Estou apenas retribuindo.

– Tessart, deixe eu te contar um segredo – Lyvlin não imaginava que sabia o seu nome. Isla servia ao reino há décadas e os anos de treinamento a haviam tornado forte e rígida. Era alta como o mais alto dos homens e se os rumores eram corretos, duas vezes mais rápida que o mais veloz deles. Os cabelos pretos eram mantidos presos em um coque baixo e o nariz adunco acompanhava o rosto anguloso. Os lábios finos eram sérios e não toleravam desculpas de quem quer que fosse. Agora ela passava o martelo de guerra com o qual treinava para um pajem, que quase caiu ao tentar segurá-lo – Assassinatos não são tolerados aqui. Eu sei disso, eu tentei.

– Ela mente!

Isla olhou para Lamar como se só agora percebesse a sua presença.

– Senhor Branwen, vejo que encontrou sua língua. Por mais curiosa que esteja para saber suas negações, estou falando com Tessart. Fique pendurado por mais alguns momentos, sim?

Lamar abriu a boca, mas lhe faltava qualquer coragem para retrucar.

– Agora, continue Tessart.

– Ele me emboscou nos estábulos. – contou Lyvlin, consciente do olhar avaliador em cima dela. O plano havia sido imobilizar Lamar, machucá-lo o máximo que conseguisse antes de a pararem e aguentar um sermão do conselho depois. Que alguém quisesse ouvir o que tinha acontecido não havia passado pelos seus pensamentos – Ele não estava sozinho. Depois de me amarrarem começou a me bater e não parou até estar no chão, a beira do desmaio. – os amigos de Lamar se entreolharam, mas nenhum a interrompeu – Ele disse que me mataria e o teria feito se os sinos não tivessem tocado.

Isla ficou em silencio. Lyvlin viu Everret se aproximando em meio à multidão. Quando o jovem viu o estrago das flechas lhe fez um sinal de positivo com o dedo enquanto o sorriso voltava ao seu rosto.

– Se eu quase te matei, como pode estar em pé agora? Aqueles golpes a desabilitariam por semanas. – e depois de olhar pros amigos se apressou a corrigir – Se eu tivesse mesmo feito essa idiotice.

– Se não percebeu ainda Lamar, temos uma academia de ensinamentos em magia nesse Monte. – Lyvlin respondeu, sentindo a urgência de fechar sua boca com um murro.

– E quem te ajudou? – Isla fulminava cada um dos amigos de Lamar com os olhos – Ou devo esperar um sinal de honra de vocês garotinhos?

– Eu não sei o nome dela.

Lamar deu uma risada.

– Porque nada disso aconteceu.

– Não. – a garota sibilou – Porque não sei o nome dela.

Isla limpou o suor que se formava em sua testa. Era a única que usava armadura pesada no pátio, o elmo estava nos braços de um pajem, que segurava a peça de metal como se fosse feito de cristais.

– Já chega dessa brincadeira. – falou do alto e se virou para os amigos de Lamar – O que aconteceu? – ao ver a expressão vazia deles gritou sobre o ombro – Patrick! Meu martelo. Estou cansada desses pirralhos.

– Capitã!

– Meu martelo. – repetiu, seus olhos iam de um garoto para o seguinte – Não se preocupe, é assim que eles gostam, não é? Cinco contra uma?

– N-não! – gritou um deles. Lyvlin reconheceu Trigo. Quando encontrou sua coragem o rapaz continuou, olhando para Lyvlin – Era apenas para assustá-la, para lembrá-la quem é o melhor.

– Olhando daqui isso está bastante claro. – disse Isla friamente – Vocês vão reportar ao mestre de armas. Tessart, você vai aproveitar o restante de seu dia de folga. É uma ordem.

O grupo se entreolhou e Lyvlin quase sentiu pena. Mas Lamar ainda não havia terminado.

– Ela podia ter me matado! – urrou quando o ajudaram a se libertar das flechas.

Os amigos dele se encolheram quando Lyvlin avançou.

– Eu teria te matado – ela assegurou, segurando a gola de sua camisa e forçando-o a olhar em seus olhos – se eu fosse um arqueiro de merda como você.

x-x-x

A biblioteca da Academia era um amontoado de estantes que alcançavam o teto alto, poeira e silencio. O único som que se podia ouvir era o arranhar das penas dos escrivães que trabalhavam em novos pergaminhos. Era incessante e insistente e Lyvlin se pegou pensando quanto tempo levara para preencher todas aquelas páginas. Eram milhares de livros e milhões de palavras. O pensamento a fez se sentir pequena e não gostou da sensação. Ignorou o sibilo de indignação de um homem baixo e calvo quando arrastou o livro para cima da mesa e se sentou ao seu lado. Havia demorado uma boa hora procurando um dos livros que Raoul mencionara e no fim uma mulher cansou de vê-la encarar a mesma estante e lhe enfiou o livro nas mãos depois de desparecer por alguns segundos. “A história da magia em Vassand: aprendizados de um velho peregrino” dizia o título em letras gastas. O livro parecia querer se desfazer a qualquer momento e Lyvlin ouviu o seu colega de mesa reprimir um gemido quando ela o abriu fazendo uma nuvem de poeira voar em seu rosto. Quando terminou de espirrar o velho segurou o seu pulso com firmeza.

– Você deve tomar cuidado em como manuseia estes livros! Eles tem centenas de anos!

– Eu sinto muito. – disse Lyvlin com sinceridade, reprimindo um suspiro de frustração ao ver a primeira página.

– E comida não é permitida na grande biblioteca. – continuou o velho apontando para a maçã que repousava na mesa – Pode danificar o pergaminho.

Depois de ouvir mais desculpas o velho deu de ombros. Lyvlin o observou continuar a preencher o pedaço de pergaminho. Era tão fino que tinha certeza que o rasgaria na primeira letra, mas o velho fazia a pena deslizar pelo papel numa rapidez que a impressionou. Sempre quando Gilbert a forçara a copiar algumas frases as letras começavam em linha reta e depois iam monte abaixo, mas aqui era diferente. As curvas eram limpas e diretas e nenhuma palavra se distanciava demais da outra.

O velho pigarreou e Lyvlin tentou se voltar ao seu livro.

– Essa é uma escolha interessante. – disse o escrivão levando a pena ao tinteiro, sem tirar os olhos do trabalho – Poucas pessoas tiraram este livro da estante nos últimos anos.

– Eu não o teria tirado voluntariamente. – Lyvlin olhou para o velho e corrigiu-se – Eu preciso aprender isso aqui. Mas parece ser um livro muito bonito.

Imaginou que o elogio fizesse o velho feliz, mas apenas deu de ombros.

– Não sei se o dirá depois de ler o que tem escrito. – disse e se levantou. Os seus trajes simples remetiam a um escrivão, mas falava como se soubesse todos os mistérios do mundo. Lyvlin lhe sorriu e o observou sumir atrás de uma estante. E voltou seus olhos para a página a sua frente. Talvez se passasse tempo suficiente com livros também ficaria assim.

A biblioteca se localizava no topo da maior torre da Academia. Para alcançá-la era necessário subir mais escadas que Lyvlin conseguia contar. Precisara de algum tempo para recuperar o folego quando chegara e isso só a fez admirar ainda mais aquelas pessoas curvadas pelo peso da idade que andavam pela biblioteca sem emitir som algum. Havia diversas janelas, tão grandes que faziam a luz do sol jorrar para dentro e inundar as estantes, fazendo a biblioteca inteira parecer dourada. Os grãos de poeira que se levantavam com o virar de cada página pareciam flocos de ouro puro. Lyvlin não achara que iria gostar tanto de um lugar com pouco barulho e ainda menos pessoas.

A leitura, entretanto, estava se provando uma adversaria formidável. Lyvlin não reconhecia muitas das palavras que tentavam lhe contar histórias e a escrita das que conhecia era tão rebuscada que se pegava lendo a mesma linha cinco vezes para ter certeza de que entendera certo. Estava com o rosto apoiado na palma das mãos, suspirando de frustração quando uma voz a trouxe de volta.

– Lyvlin? – Desmera a chamou. Quando Lyvlin a olhou foi como se encarasse o próprio sol.

A jovem tinha os cabelos trançados como uma coroa e usava um vestido de tecido dourado e carmesim. Detalhes cobriam suas mangas num bordado de fios de ouro e usava uma capa fluida que parecia feita de milhares de pequenos cristais, resplandecendo com a luz que a banhava através das janelas.

– Você parece uma rainha. – Lyvlin murmurou.

Desmera riu, fazendo um gesto vago com a mão.

– Protocolo rattriano. – disse fazendo pouco caso – Posso me sentar aqui? Preciso respirar um pouco.

– Você veio se despedir. – e de repente a boca de Lyvlin estava seca.

Desmera anuiu.

– E ver como você está. – sentou-se ao seu lado e sua mão tocou a de Lyvlin – Você deveria ter me contado sobre Lamar.

Lyvlin lembrou da expressão de Everett quando se virara para a Academia. Claro que contaria para quem que encontrasse pelo caminho.

– O que haveria para contar? Ele tentou me matar, eu retribui gentilmente.

– Nós poderíamos ter ajudado. Uma palavra para Raoul e teríamos conseguido –

– Eu tive que fazer isso sozinha. Se tivesse falado eu seria igual a ele.

Desmera balançou a cabeça, pegando a maçã da mesa. Começou a corta-la com uma adaga que trazia presa ao seu cinto. Quando Lyvlin achou que não falaria mais nada por estar com raiva demais a garota lhe estendeu um pedaço.

– Você está errada Lyvlin. Se você tivesse contado você teria permitido seus amigos a te ajudarem. – ela sorriu – Nós estamos aqui para você. Não só para os treinos ou para te ajudar a encontrar seu lugar aqui. Mas também para o resto. Especialmente para o resto.

– Eu vou tentar lembrar disso da próxima vez.

– É bom que lembre ou irá perceber apenas quando Adisa estiver tocando fogo em alguém de novo. Ele tem um jeito especial de lidar com pessoas que o desagradam. Agora pegue a maçã, ela não vai te morder.

Lyvlin olhou ao redor. Tirando uma senhora cochilando sobre um livro que tinha quase o seu tamanho algumas mesas atrás aquela área parecia vazia.

– Não podemos comer na biblioteca. – suspirou, sentindo a barriga se manifestar – Pode –

– Danificar os livros, eu sei. Mas apenas quando estamos lendo. Você vai comer, eu vou ler para você. – ela disse, puxando o livro para sua frente - Parece ótimo, não é?

Lyvlin aceitou o pedaço da fruta, imaginando até onde sua capacidade de ler as pessoas poderia levar.

– Certo. Ah, os aprendizados do velho Mardrid! Ele foi um alquimista que peregrinou toda Vassand em busca de conhecimento e alguns dizem que ele foi ainda além. – disse Desmera e pigarreou – Onde você parou?

– Talvez seja melhor começar aqui – Lyvlin respondeu, apontando para a página amarelada que marcava o início do capitulo – Não tenho certeza se entendi certo. Não acho que faça sentido ter tantas mortes em uma página.

– Esse capitulo conta das histórias dos linairs de Vaus. Mortes vão ser um assunto recorrente. – Desmera lhe deu um sorriso triste – Prometo que um dia leio algumas poesias rattrianas para você. São definitivamente mais agradáveis e coloridas.

“De todos os linairs, aqueles que precisam de mais vigilância e controle são os do traidor Vaus. A alto-sacerdotisa Maeh certa vez disse que o único motivo de se deixar seus linairs vivos é o fato de que sem eles, o deus teria seu poder completo para derramar sobre a humanidade. Isso não deve ser permitido, pois os séculos tem sido bons conosco, mas a ameaça tem sono leve. Diferente dos linairs de Tiadelik e Sydril, os linairs de Vaus servem a apenas um proposito: matar. São a força mais formidável que o reino pode esperar, por isso devem ser identificados e postos sob treinamento antes de completarem seis anos para assegurar um controle total sobre o poder que carregam. Washra, Denrim, Prask e Briska são seus linairs mais conhecidos e de diferentes formas cravaram suas vidas na história de Vassand. O que salta aos olhos nos linairs de Vaus é sua baixa expectativa de vida. Briska foi rastreada por Vaus em uma expedição no Corredor Montanhoso de Rattra e encontrou sua morte aos quinze anos. De todos os linairs, talvez tenha sido a única que ganhou nos corações das pessoas um lugar próximo aos linairs de Sydril e Tiadelik de sua época. O arenito foi tingido de vermelho e o céu chorou quando ela morreu.”

– Todos aprendemos sobre Briska durante os nossos estudos. – disse Desmera – Ela é o exemplo que os mestres usam para ensinar que nem todos os linairs de Vaus são perigosos ou maldosos.

– E os outros?

Como resposta Desmera voltou-se para as linhas de escrita fina.

“O maior risco que os linairs de Vaus enfrentam é o de se tornarem o que o deus representa. Para encontrarem sua magia os linairs tem de entrar em equilíbrio com a essência do deus cujo parte do poder reside em seus corpos. Isso significa concentração absoluta para os magos de Sydril e serenidade e complacência para os de Tiadelik. Para os linairs de Vaus serem um com o seu poder eles devem mergulhar no ódio, na vontade de subjugar o outro e de ser o único de pé no fim da batalha.”

– Isso parece animador. – interrompeu Lyvlin, brincando com uma semente de maçã para tentar controlar o desespero que crescia a cada palavra que Desmera lia.

– Não terminei ainda, agora fica interessante.

“Em minhas andanças pelo mundo e visitas intermináveis a bibliotecas cobertas de poeira e historias, não acredito que essa seja a única maneira. Washra fugiu de Ciandail quando foi condenada à morte por não responder ao treinamento como deveria. Encontrou grupos nômades no distante deserto de Alkaid e os ajudou a reconquistar algumas regiões, forçando a fronteira de Rattra algumas milhas para o sul. Ela costuma ser retratada como feita de puro ressentimento e vontade de vingança, mas eu estivesse nas dunas arenosas do norte e falei com o povo nômade. E qual foi minha surpresa ao ouvir que a imagem da linair era o oposto do que se espalhava no sul. Washra lhes deu esperança e afastou o medo de seus corações. Isso parece mais consistente com sua decisão no fim e é algo que prefiro considerar com cuidado.”

– Ela se entregou ao exército real depois de enfrentar um cerco de um mês. – Desmera explicou, sua voz carregada de tristeza – Ela em troca da vida do povo nômade.

– E eles a trancaram em uma masmorra? – Lyvlin quis saber.

Desmera balançou a cabeça.

– Eles cortaram sua cabeça diante dos muros da fortaleza que haviam conquistado. Imagino que aquele foi um grande dia para Vaus. – disse e suspirou – O que esperem que você aprenda com essas histórias?

– A andar na linha?

– Não. Eles precisam de você se querem manter Vassand inteira nos próximos anos. Talvez esperam que tire algum ensinamento dos destinos de seus antecessores? – Desmera lançou um olhar a página em que estava e olhou para Lyvlin – Quer saber de uma coisa? Acho que já tivemos demais de linairs por hoje.

– Quem é o próximo?

– Denrim.

– O que aconteceu com ele? – Lyvlin perguntou.

– Nada de bom. Ele foi linair dois séculos atrás, nós não falamos sobre o aconteceu com ele. Dizem que traz má sorte.

– Me conte.

– Lyvlin, eu sinceramente não vejo como pode fazer diferença.

– Eu posso aprender pelos erros que eles cometeram. – Lyvlin não o falou, mas até o momento não conseguia ver erros nas decisões dos linairs de Vaus.

Desmera deu um muxoxo de frustração e recomeçou a ler, agora mais rápido que antes. Como se esperasse que Lyvlin não entendesse se colocasse palavras suficientes entre uma respiração e a seguinte.

“De todos os linairs de Vaus, o que pintou seu nome nas lendas antigas com mais sangue foi Denrim. Após o que aconteceu em Filras, todos os linairs foram desprovidos do direito de constituir uma família ou de terem qualquer tipo de relação romântica. Nos tempos de ouro, quem não havia ouvido falar de Denrim? Nascido em um vilarejo esquecido pelos deuses nas montanhas geladas de Faolmagh, aos nove anos conseguia controlar toda a fúria que o poder de Vaus exige para ser usado. Aos treze ia para as batalhas ao lado de Maya e Kalris e muitas vezes as resolvia antes das magas traçarem um plano de ação. As linairs de Tiadelik e Sydril logo o envolveram em seus corações e assim tinha que ser porque aquela era a época dos dragões e seres ainda piores. E quanto maior o inimigo, mais forte se tornava o elo entre aquelas três pessoas. Eram incansáveis e incapazes de caírem em desgraça. Até o dia em que os inimigos mudaram de alvo e rastrearam a jovem família que Denrim escondera na cidade entre os morros verdes. Filras era pequena e pacifica, aninhada em um vale perto do mar. Foi lá que os inimigos do reino irromperam e massacraram tudo que Denrim mais amava. Era uma noite clara e sem nuvens, que logo foi mergulhada em gritos e sangue. Os dois meninos foram mortos ao lado da mãe na cama em que dormiam, a garota foi levada a floresta. Dizem que no fim o que o quebrou foi a visão de seu corpo pequenino estendido na relva. Filras queimou, assim como todas as cidades pelas quais Denrim passou no rastro dos assassinos de sua família. E como a única coisa capaz de parar um linair são dois linairs, Maya e Kalris foram ordenadas a fazê-lo. Não consigo imaginar duas pessoas mais infelizes ao receber uma missão. O fizeram, mas não sem hesitar e tentar mostrar a Denrim o que estava fazendo. Mas qualquer sanidade havia deixado o seu corpo quando sua família deixara este mundo. E as mesmas lagrimas que mancharam o rosto de sua filha foi a última coisa que Denrim viu nos olhos de suas amigas. Enquanto morria em seus braços teria sorrido. Meu coração velho prefere imaginar que foi diante do reencontro que esperava ter e não um último traço da loucura que o apoderara.”

– Eu disse que não iria ajudar muito. – Desmera falou depois de um tempo em silencio.

Lyvlin nada falou até Desmera fechar o livro e se levantar da mesa.

– Desmera? – chamou, mas a garota já estava diante de uma das imensas janelas.

– Venha, quero te mostrar uma coisa.

Aquele lado da torre era voltado para a baia Dourada. O sol reinava em um céu limpo e as aguas do Mar do Sul eram um tapete verde que se movia com o vai e vem das ondas. No porto o movimento era grande, agora que o rei decidira mandar um punhado de tropas para Rattra. A princesa Mehalia criticara a quantidade da ajuda, mas os poucos homens que Osric estava disposto a mandar para o norte lhe dera uma vantagem na questão que queria abordar desde o início, ou assim Raoul lhe explicara. Rattra exigiu que os magos de Sydril voltassem para defender sua capital, Adrahasis, e depois de barganhar por uma tarde inteira Osric teve que ceder. Conseguira segurar os que ainda estavam em treinamento, mas os mestres temiam que se a situação se agravasse o suficiente todos teriam que se engajar. Lyvlin nunca ficara cara a cara com as preparações de uma guerra, ver os navios mercantes serem transformados em transportadores de mantimentos e os grupos de magos esperando para embarcar no cais a fazia se sentir frágil. Entrelaçou as mãos e desejou que as crianças não fossem necessárias. As velas ostentavam o falcão prateado de Rattra sob o fundo negro e se inflavam com o vento. Lyvlin quase conseguia ouvir a fúria das massas de ar. Esperava não ter que pisar em um navio por muito tempo.

– Quanto tempo até partirem?

– Algumas horas, as capitãs querem estar no mar antes do sol se por. Mas não é bem isso que eu queria te mostrar. – levantou o dedo coberto de anéis e apontou em direção ao maior navio da frota – Está vendo aquela embarcação? É o Diamante das Ondas.

– Parece extravagante.

Desmera sorriu.

– Eu vou tomar isso como um elogio. Ele pertence a minha família. – a garota cruzou os braços e deu as costas aos navios – Não estou voltando para Rattra apenas por causa das ordens. Bem, elas são importantes e urgentes o bastante. Mas senhora Tahira me deu um ultimato. E ela não é conhecida pela sua indulgencia.

– Imagino que seja alguma comandante?

– Também. – Desmera riu até que um dos escrivães sibilou “SHH”. Se recompôs e fez uma pequena mesura antes de se voltar novamente a Lyvlin - Tahira é minha mãe. E acontece que também é uma das generais mais condecoradas de Adrahasis. É responsável pela defesa da cidade e conseguiu segurar as pontas tantos anos atrás, o que possibilitou aos exércitos do rei a chegarem a tempo de terem algo para salvar. Mas não é para defender as muralhas de Adrahasis que ela me quer Lyvlin. Imagino que também, se as coisas ficarem feias. Agora sua prioridade para mim é me arranjar um marido.

– O quê?! Com Vassand começando a fervilhar –

– Especialmente porque Vassand está começando a fervilhar. Minha família é bastante atada as tradições. Há séculos nossos casamentos tem sido arranjados de forma a dar luz a magos cada vez mais poderosos.

– Eu achei que magia não se manifestasse dessa forma.

– E é verdade, até certo ponto. Apesar de não ser necessário nascer com o dom para se tornar um bom mago, filhos de magos poderosos tendem a ter uma vantagem inicial. E na minha família essa vantagem inicial é lapidada o máximo possível. Não é uma garantia total, meu irmão mais velho não tem o dom de berço e o mais novo não se deu o trabalho sequer de aprender. – a sua voz se suavizou – Rhys nunca se preocupou em agradar a minha mãe. Ela ameaça deserda-lo três vezes ao dia, quando ele não está aprontando algo. Mas sim, minha mãe espera assegurar um bom partido antes que a confusão das batalhas se alastre demais. E eu estou indo para dizer que isso não será necessário.

– Ela não pode te forçar.

Um sorriso triste se desenhou nos lábios escuros de Desmera e seus olhos se voltaram para a baía.

– Minha mãe pode ser muito persuasiva. E eu posso ser inflexível. Não consigo prever como isso vai terminar Lyvlin, mas espero revê-la em breve.

Antes que Lyvlin pudesse responder uma comoção se iniciou no lado da entrada da biblioteca. Escrivães insistiam como um enxame de abelhas furiosas e quando Desmera e Lyvlin estavam perto o suficiente distinguiram Adisa como alvo.

– Você está proibido de pisar nesta biblioteca Adisa! – repetia um senhor que saltitava e o empurrava com as mãos para mantê-lo do lado de fora.

Adisa suspirou, colocando a mão sobre o ombro do velho lívido.

– Fardas, nós já passamos por isso. – usou a mão livre para indicar a própria cabeça – Vê? Nada de fogo. Significa que seus preciosos pergaminhos mofados não correm perigo.

– Você disse isso da última vez! – gritou a mulher que ajudou Lyvlin a encontrar o livro.

– E mesmo assim incendiou a nossa segunda cópia dos Contos das glorias do Unificador!

Adisa encontrou Lyvlin e Desmera e cuidadosamente empurrou o monte raivoso para o lado.

– Eu não gostei do final. – explicou a eles ignorando os protestos – Mas prometo ficar a dois metros de qualquer coisa recheada de versos chatos e que me façam espirrar, certo? Certo.

– Você é uma pessoa terrível Adisa. – Desmera o cumprimentou quando conseguiu acalmar os ânimos da biblioteca.

Adisa deu de ombros.

– Por que são tão apegados aquele livro afinal? Era apenas uma cópia.

– Porque a original se perdeu no grande incêndio de Ruya.

– Ah. – o rapaz pareceu quase culpado. Assim como Desmera parecia vestir a própria luz do sol. Sua túnica carmesim parecia se incendiar quando se mexia. Lyvlin entendera de imediato a preocupação dos mestres. Nos cabelos castanhos se assentava uma tiara de rubis tão detalhada que só poderia ter vindo das famosas minas entre as dunas. Imaginou que as cores da família de Desmera fossem carmesim e dourado, coisa que a garota confirmou.

Lado a lado Desmera e Adisa pareciam a personificação da vitória. Onde o sorriso calmo e gestos calculados de Desmera podiam fingir fraqueza Adisa era chamas vorazes. Lyvlin soube naquele momento que não haveria muralha que garantiria a Tahira alcançar seu objetivo.

– O conselho quer te ver antes de partir. – Adisa disse a Desmera – Imagino que a sua sessão será mais prazerosa que a minha.

A isso Desmera simplesmente anuiu e envolveu Lyvlin em um abraço apertado.

– Até logo. – ela disse quando seus corpos se afastaram.

Sua imagem começou a ficar borrada diante de seus olhos e Lyvlin balançou a cabeça em sinal positivo.

– Wodan e Tahira não sabem o que os espera. – conseguiu dizer por fim, arrancando uma última risada da amiga.

– Eu não vou te abraçar nem nada. – Adisa falou quando os olhos marejados de Lyvlin se voltaram para ele.

– Pretendo ficar intacta, não se preocupe.

– O que me lembra que deveria lhe passar uma mensagem. – disse Adisa vagamente – Encontrei o seu amiguinho na cidade pela manhã. Me impressionou estar vivo e quando digo isso não quero dizer que fiquei feliz ao vê-lo. Ele respira demais para me agradar.

– Adisa, o que aconteceu no Ligeiro foi um acidente. – defendeu Desmera, mas o rapaz apenas fez um gesto impaciente com a mão.

– Quase admiro sua coragem, me abordou em pleno mercado da Primavera e realmente esperou que eu fosse servir como mensageiro. Quase o incendiei ali mesmo, mas para minha infelicidade havia crianças por perto.

– Adisa, a mensagem. – lembrou Lyvlin.

– Ah, sim. Ele quer encontra-la em sua casa as quatro horas. O que me deixou intrigado porque assume duas coisas: que ele é capaz de ler um relógio e que não tomou o esgoto como sua moradia natural. – enumerou, franzindo o cenho – Isso não faz sentido.

– Ezra é meu amigo. – avisou Lyvlin, encarando-o – Não tolerarei suas brincadeiras.

– Estou muito longe de estar brincando.

A garota pousou as mãos na cintura, trocando um olhar com Desmera antes de se voltar ao mago novamente.

– Certo. – falou, os olhos brilhando de humor - Quando voltarem de Rattra o convidarei para o Monte e poderemos nos divertir juntos. Como um grande grupo de amigos.

– Desmera, eu mudei de ideia. – falou o mago - No lugar de atear fogo a tudo para proporcionar uma retirada estratégica me oferecerei para ocupar o seu lugar no casamento arranjado. Sua mãe não poderá recusar.

– Certamente mudaria a visão que eles tem de você. – Desmera sorriu para Lyvlin e passou as mãos pelos cabelos, distraída – Eu preciso mesmo ir, Lyv. E você deve fazer o mesmo se espera chegar a cidade antes da hora marcada.

Lyvlin anuiu.

– Apenas voltem inteiros e sem trocar alianças com quem quer que seja, certo?

Desmera fez uma pequena reverencia e deixou a biblioteca, a última coisa que Lyvlin viu foi sua mão mandando um beijo em sua direção antes de alcançar o grande arco.

– Quer que eu queime esse livro? – Adisa quis saber quando ficaram a sós.

– Não o odiei tanto assim. – Lyvlin explicou, percebendo o peso do livro em sua mão. Não lembrava de tê-lo apanhado.

– Se mudar de ideia me avise. E fique viva enquanto enfrentamos a família de Desmera e algumas formigas raivosas. – sua capa preta ondulou quando se pôs a andar - Odiaria voltar e encontrar apenas Ezra nos esperando no cais. Provavelmente me jogaria no mar de tanto desgosto.

– Tenham uma viagem segura. – as palavras se formaram nos lábios de Lyvlin, mas não teve certeza se o rapaz as tinha ouvido.

Passaria muitas semanas esperando profundamente que sim.