“A menina loira foi tocada pelo fogo. Por isso labaredas dançam entre seus dedos e não a queimam. Eu gosto dela. Ela me pergunta o que eu posso fazer, respondo que tudo. Ela pede uma rota de fuga e eu crio uma.”


Ótimo” pensou a garota, agachada. Não eram apenas bandidos, mas bandidos com magia. Era a única coisa que poderia explicar o fato do cabelo do homem ser feito de chamas dançantes e ele não sair correndo e gritando algo como “meu maldito cabelo está pegando fogo”. Sentiu o aço frio de Arcturus exigir sangue, mas não era estúpida o suficiente para achar que teria qualquer chance contra alguém que pode conjurar fogo. No lugar disso deu um passo para trás e subiu um degrau, grata pelo estalajadeiro concentrar toda a atenção do recém-chegado. Teria que acordar Raoul afinal.

– É realmente tedioso, não é? - surgiu uma voz feminina atrás dela. Virou-se com tanta rapidez que quase perdera o equilíbrio, teve que se agarrar ao corrimão e quase deixou a espada cair.

– Sinto muito, é um mau hábito que tenho. – disse a garota que estava sentada alguns degraus acima. Apoiava o rosto nas mãos e os cotovelos nas coxas e tinha uma expressão que denunciava que estava se divertindo com aquela cena.

– Você – começou Lyvlin, mas não conseguiu terminar. Tinha certeza de que não havia ninguém atrás dela por todo o tempo. A outra abriu um sorriso, seu rosto era redondo e gentil, a pele marrom como uma avelã e os cabelos... Os cabelos eram puro marfim.

– Me chamo Desmera. – falou com os olhos no homem que agora desviava de uma colher de pau que o estalajadeiro brandia com coragem – E aquele é Adisa... Somos a décima segunda dupla a cargo dos interesses da coroa, ainda que não parecemos muito nobres agora. E você deve ser Lyvlin.

– Raoul me avisou que vocês chegariam. – seu corpo relaxou o máximo que se pode relaxar com alguém pegando fogo do outro lado do aposento. Baixou a espada. – Mas fui pega desprevenida.

– Faz bem em ficar em alerta, vai ser uma ajuda e tanto no seu treinamento. – sua expressão fechou um pouco - Agora, se me permite...

Passou pela garota e foi em direção à dupla barulhenta. Lyvlin podia jurar que ouvira Adisa sugerir que incineraria a colher caso o estalajadeiro não parasse de chacoalhá-la diante de seu rosto.

– Já chega – disse Desmera e com um gesto de sua mão o fogo na cabeça de Adisa se extinguiu.

– Disse que não devia fazer isso. – exclamou ferido – Como as pessoas saberão o que sou?

– Tenho certeza que as pessoas reconhecem um tolo com bastante facilidade. – devolveu Desmera e se voltou para o estalajadeiro com um sorriso nos lábios – Peço desculpas pelo meu companheiro e asseguro que posso manter os seus talentos sob controle.

O homem ainda se agarrava a colher.

– Mas se eu perceber apenas um leve chamuscamento em minha propriedade...

– O punirei eu mesma.

Lyvlin aproximou-se, curiosa para ver como um manipulador de fogo se parecia quando não estava com alguma parte do corpo em chamas. A expressão de Adisa azedou com as palavras de Desmera, o que a garota achou curioso porque não combinava em nada com a sua aparência. Caso não fossem as cicatrizes que começavam em sua mão direita e reapareciam no pescoço Adisa poderia ser a perfeita donzela esperando para ser resgatada das canções dos bardos. O rosto era bonito e bem estruturado, com olhos grandes e lábios cheios. O cabelo apagado era castanho e suas pontas onduladas tocavam os ombros. Tinha uma aparência melhor do que qualquer garota que Lyvlin já vira.

– Você deve ser a garota que vamos escoltar até Ciandail. – disse, percebendo o olhar da garota sobre si. A estudou de cima a baixo – Bem, talvez consiga sobreviver até a Provação. Mas não apostaria minhas fichas em você.

Desmera conversava com o estalajadeiro sobre provisões e preparativos para a partida no dia seguinte. Na realidade parecia que estava se esforçando ao máximo para o velho esquecer que Adisa existia.

– Meu nome é Lyvlin Tessart.

– Adisa Barasa. – disse, não fazendo menção a um aperto de mãos.

– Você pode criar fogo?

– Vocês não têm bibliotecas por aqui? - quis saber, ainda que parecesse satisfeito com a pergunta – Não, não posso. E não é apenas porque Desmera está bloqueando a minha manipulação. Sou um alquimista, um dos melhores se me permite dizer. Posso transformar qualquer coisa nesta espelunca em chamas, se quisesse.

– Só não agora porque Desmera está te controlando. – Lyvlin sorriu. Adisa não.

– O estalajadeiro concordou em ceder um quarto, mas exige que deixemos o lugar amanhã, nas primeiras horas do dia. – anunciou Desmera satisfeita.

– Não passaria mais uma noite aqui de qualquer forma. – disse Adisa, batendo em seu longo casaco como se tentasse se livrar da sujeira – As camas devem ser infestadas de pulgas. Posso atear fogo a algo do lado de fora ao menos?

– Se for dentro da propriedade, não. Podemos treinar mais tarde, longe daqui.

– Posso ir junto? - perguntou Lyvlin. Adisa a olhou como se a considerasse digna de ser posta em chamas, mas Desmera franziu o cenho.

– Melhor não. Ainda que não seja uma aprendiz posso sentir que existe algo especial sobre você, algo que nos pode dar dor de cabeça caso sejamos postos em lados opostos um dia.

– Está colocando fé demais. – observou Adisa, mantendo os olhos castanhos no estalajadeiro que começava a gritar ordens para os serviçais. Alguns pararam um momento para encarar os recém-chegados, mas havia algo no porte e na energia que emitiam que os mantinha afastados. Desmera tinha uma pele de corça costurada a sua capa de viagem negra, por baixo usava um vestido simples de mangas compridas. O único adereço que usava era um broche de âmbar polido que mantinha a capa sobre os ombros. Seu companheiro usava uma túnica cinzenta de um tecido que Lyvlin não conhecia e um cinto adornado com uma pedra que parecia refltir constantemente a imagem de uma fogueira. – Duvido que ela passe pela Provação.

– Mas estamos do mesmo lado, não estamos? Estou indo a Ciandail para dominar a minha magia e ser útil ao reino. – nem ao menos você acredita nisso.

Adisa e Desmera se entreolharam.

– Eu não vou dar lições que uma criança de cinco anos de Rattra saberia. – disse ele.

– Depois que os anos de ensinamento passam, o aprendiz deve passar pela Provação – uma série de testes que provam se é ou não digno de ser aceito por um mentor – e uma vez que o mentor ou mentora o considera apto a servir ao reino os melhores prestam um juramento à corte. É nessa fase que descobrimos quem será o nosso companheiro ou companheira.

– E às vezes o nosso companheiro nos encontra. – interveio Adisa.

– E às vezes salvamos o traseiro incandescente dele no processo. – a garota sorriu para o rapaz e Lyvlin olhou interessada para Sinnie que começava a servir os primeiros hóspedes. Não sabia a que ponto chegava o companheirismo dos dois, mas estava claro que Desmera era a voz da dupla. Não importava que Adisa a considerasse uma tola, se tivesse a simpatia de Desmera ele a seguiria.

Depois de instalarem no quarto que o estalajadeiro relutante cedera a dupla se retirou para o aposento de Raoul. Lyvlin não precisou do olhar reprovador de Adisa para saber que não era bem-vinda e no lugar disso vestiu o casaco e foi até os estábulos. Quando pisou no pátio o ar frio e puro da manhã banhou a sua pele e a garota respirou fundo, sorrindo. Adorava a sensação do ar fresco adentrando o nariz e sabia que em pouco tempo teria as bochechas coradas pelo frio. Um corvo crocitou alegremente entre os galhos das árvores e a garota teve um sobressalto. Observou as árvores carregadas de neve em busca da ave e quando a encontrou saltando entre os ramos mais baixos suspirou aliviada. Nada de olhos brilhantes e perversos desta vez. Tinha curiosidade para conhecer as montarias dos recém-chegados e precisou apenas perguntar ao cavalariço. O garoto ergueu a cabeça interrompendo o trabalho de transferir o feno do carro de mão para as cochias e indicou as duas últimas baias. Lyvlin passou diante de alguns animais que devagar despertavam, motivados pelos assobios do cavalariço. Viu uma égua muito semelhante a Flecha raspar a palha que forrava o chão e sentiu um peso no peito. Cuidara muito bem dela durante anos, talvez todo o cuidado tenha garantido a ela um bom tratamento pelo novo dono. Ao menos era o que repetia sempre que seus pensamentos se voltavam para o seu destino. E era o que repetia novamente enquanto acariciava com suavidade o focinho do animal, imaginando se algum dia teria um cavalo próprio novamente. Faltando duas baias para alcançar as montarias que viera ver ouviu um grito de socorro. Viu o cavalariço largar o garfo sobre as tábuas de madeira e correr para fora e o seguiu para encontrá-lo apoiando um homem que segurava na mão uma corda que guiava o cavalo mais magro que Lyvlin já vira. De alguma forma o animal era forte o suficiente para carregar uma mulher e uma criança. A menina não deveria ter mais de quatro anos e tinha os cabelos loiros manchados de vermelho, encostava-se a mãe que parecia estar ainda pior. Lyvlin avançou e ergueu a garota da garupa do cavalo.

– Consegue ficar de pé?- perguntou, mas a garotinha não parecia ser capaz de ouvi-la. Quando a mãe desceu do cavalo começou a chorar, enterrando o rosto em seu vestido esfarrapado. A mulher tentou acalmá-la, mas as suas mãos tremiam enquanto acariciava cabeça da filha.

– Somos de Wodan. – dizia o homem ao cavalariço, lançando um olhar de agradecimento para Lyvlin. Nenhum dos três usava vestes adequadas para o frio, o que tornava toda a situação mais estranha. Talvez bandidos começaram a pilhar vilarejos mais cedo este ano. Pensou a garota. Era comum que vilas pequenas fossem atacadas durante invernos difíceis, os grupos nômades não estavam preparados para meses de privação e seus estoques diminuíam muito rápido. Com estômagos vazios voltavam a sua atenção aos vilarejos que ofereciam pouca resistência, especialmente aqueles localizados nas bordas dos territórios de um governante. Nenhum lorde gastaria homens para proteger uma dúzia de famílias e ataques deste tipo eram comuns e até esperados. Evion fora poupada desde que Lyvlin conseguia se lembrar, o que deveria ser porque contava com um número razoável de pessoas que poderia pegar em armas durante um ataque. Wodan não deveria ter a mesma sorte. – Pode arranjar um quarto para minha mulher e filha? – o homem perguntou, enfiando a mão na bolsa da sela e abrindo-a revelando moedas que não passavam muito do troco que Lyvlin dera pelo unguento de Raoul – Posso dormir em qualquer lugar, mas minha mulher está quase congelando e acertaram Ana com uma pedra. Jogaram pedras em todos nós, como se fossemos foras da lei!

O garoto balbuciou algo como “irei chamar ajuda!” e disparou em direção à estalagem. Lyvlin o observou desparecer dentro da construção e imaginou como aqueles dias deveriam ser movimentados para ele. Primeiro um integrante da guarda real que desfalecia a cada momento, depois uma família inteira que parecia ter escapado de um massacre.

– Não foram atacados por bandidos? - quis saber Lyvlin, amarrando o cavalo a um dos postes que sustentavam o telhado do estábulo. O cavalariço saberia o que fazer com ele, mas a garota não resistiu ao seu aspecto terrível e rapidamente jogou um pouco de feno diante de seus cascos.

– Antes tivessem sido. – suspirou o homem. Tinha rosto simples e honesto, as mãos que mostraram o pouco que conseguira salvar eram cobertas por calos. A mulher era mais jovem, com os mesmos cabelos da filha, desgrenhados, mas livres de sangue. Todos tinham as bochechas coradas pelo frio e Lyvlin sentiu a necessidade de posicioná-los diante de uma lareira o mais rápido possível.

– Foram hemeristas. – murmurou a mulher e encolheu os ombros como se esperasse uma pedra voando em sua direção – Vieram durante a noite, com tochas, pedras, garfos, pás e alguns tinham cavalos e espadas. Queimaram as nossas casas, mataram os nossos familiares. Mataram o nosso pequeno Ardith.

O homem baixou a cabeça por um momento e os soluços da garotinha se tornaram piores. Lyvlin se abaixou e tocou o seu ombro. Demorou um pouco, mas então olhos vermelhos se voltaram para o seu rosto e a garota sorriu.

– Tiveram uma viagem difícil, mas lá dentro temos comida e fogo. – talvez mais fogo que eu gostaria. Ofereceu a sua mão – Vamos?

A garotinha hesitou e precisou de um aceno encorajador da mãe para aceitar a mão de Lyvlin. Encontraram estalajadeiro na porta de entrada e diferente do que a garota imaginou fez gestos para que entrassem o mais rápido possível e se acomodassem. Mandou Sinnie limpar a ferida da garotinha, o que ela rejeitou prontamente. Como a sua mãe e pai estavam ocupados contando a história em intervalos de uma mordida na comida e outra Lyvlin assumiu o pedaço de pano molhado.

– Não vi Greta durante todo o tumulto Willas, eu sinto muito. – disse o homem, bebendo um longo trago de vinho quente – Mas é uma garota inteligente, deve ter conseguido escapar de algum modo.

O estalajadeiro anuiu, mas não parecia esperançoso.

– Apenas espero que alguém dê uma boa lição naqueles hemeristas, primeiro Perth e agora Wodan! Estão ficando mais ousados a cada dia que passa. Se nada for feito em breve estaremos mergulhados em uma guerra.

– Talvez lorde Rudwen possa disponibilizar homens para persegui-los.

– Lorde Rudwen não conseguiu salvar Perth estando praticamente enfiado naquela cidade o tempo inteiro! – retrucou Willas – Se não conseguiu manter sua cidade mais preciosa livre dessa praga, imagine nós! Ninguém está a salvo! Deveríamos reunir hoje mesmo um grupo e partir para outras cidades até termos pessoas o suficiente para acabar com essa ameaça de uma vez por todas!

Um murmúrio de concordância preencheu o amplo aposento. Lyvlin temeu que partissem agora mesmo.

–O lorde de Perth fez o que podia. – falou Desmera descendo as escadas e todos ficaram em silêncio – Incitar uma multidão raivosa e perseguir pessoas não acabará com a ameaça, senhor Willas. A única coisa que conseguirão é se transformar naquilo que temem e odeiam.

– Sugere que esqueça a morte do meu filho? - perguntou o recém-chegado e se levantou – Ele não passava de um menino! Foi ele que os ouviu se aproximando e acordou a família, é por causa dele que estamos aqui!

– A sua dor é a minha. – e algo como dissera a frase fez com que ninguém questionasse a sua verdade – Mas não estão preparados para lidar com esta situação. Busquem abrigo em Perth e quando a primavera chegar preparem os arados, plantem novas sementes e as façam crescer e prosperar. Levarei a sua condição diante do rei e prometo que não ficarão sem resposta.

– Ouvimos que as tropas estão em Faolmagh – disse Willas - peça ao rei para que desçam e nos protejam do verdadeiro inimigo!

Desmera apenas anuiu e a sua falta de resposta não passara despercebida a Lyvlin. Chamou a garota para perto de si com um aceno.

– Raoul quer vê-la. Adisa e eu sairemos para treinar agora, quero pedir que fique dentro da estalagem. Não nos falou como a sua condição é... Delicada. – deixou escapar um suspiro de frustração – Hemeristas e nirnailas. E aqui eu achava que teríamos problemas com algum grupo de nômades na pior das situações.

– E como você resolveria uma situação com hemeristas e nirnailas?

Desmera ergueu as sobrancelhas.

– O que quer saber?

– Bem, o que você faz?

– Ah – deu uma pequena risada que a transformou em uma garotinha – Eu desejo coisas. E elas acontecem.

– Simples assim?

O sorriso se desfez.

– Não. – seus dedos afundaram no cabelo e começaram a torcê-lo - Mas aprenderá quando chegar a Ciandail. Há muitas maneiras de realizar magia. Algumas são mais agradáveis que outras. Nem sempre temos escolha.

Deixou que partisse, desejando que qualquer que fosse a magia que carregasse ao menos tivesse a decência de ser agradável. Esbarrou em Adisa pelo caminho e pôde jurar que o olhar que lhe dirigiu foi algo próximo à aprovação.

– Contou sobre a minha grande coleção de madeira seca? - perguntou a Raoul quando entrou no aposento.

O rapaz continuava na cama. Lyvlin sentiu alívio quando viu que a cor voltara ao seu rosto.

– O quê?

– Adisa. Parecia até gostar de mim quando nos encontramos no corredor.

– Gostar é uma palavra muito forte. Mas sim, ele ficou surpreso quando soube que nirnailas andam em seu encalço. Julga as pessoas pelos seus inimigos e eles certamente são um oponente digno. – fez uma careta e afofou o travesseiro – Mas não foi por isso que a chamei aqui. Não quero que ponha os pés para fora daqui Lyvlin. E quando digo daqui quero dizer a estalagem. Não o pátio. Não os estábulos. A estalagem. Os hemeristas são uma preocupação que levaremos diante da corte, enquanto estamos aqui não devemos arriscar. Nossa missão é levá-la em segurança para Ciandail e é o que faremos.

– Podemos torcer que tenham uma mira ruim, em último caso apenas evite as janelas e estaremos perfeitamente bem. Diferente dos fugitivos e dos outros sobreviventes, claro.

– O que quer que eu faça, Lyvlin? Não sou um lorde, apenas disponho de Desmera e Adisa e qualquer atividade mais notória denunciará a nossa presença. Não permitirei. A crescente onda de hemeristas envolve questões que estão além do nosso alcance. – Olhe para mim Lyvlin – Confie. O rei saberá o que fazer.

– Você não os viu Raoul. Não viu o terror que trazem nos olhos.

– Ficarão bem agora. Assegure-se disso já que tem a tarde livre. Desmera e Adisa farão todos os preparativos para a nossa partida amanhã, não deve se preocupar com nada além de permanecer aqui.

Lyvlin deixou o aposento batendo os pés. Se soubesse controlar a sua magia poderia fazer alguma coisa. Poderia roubar um cavalo e partir para Wodan, talvez encontrasse Greta. E Arcturus teria o sangue pelo qual clamava. A intensidade com que desejava a terceira coisa a assustava um pouco. Ainda não perguntara a Raoul se um verdadeiro guerreiro gosta de matar, mas teria tempo suficiente para isso depois. Procurou por Ena que não vira durante toda a manhã. A senhora fora uma companhia um tanto direta, mas agradável e Lyvlin gostara dela.

– Ena partiu nas primeiras horas da manhã. – respondeu Sinnie sacudindo os cabelos energicamente quando a garota a encontrou. Encarou Lyvlin como se esperasse alguma reação e por fim deu de ombros – Aquela bruxa aparece aqui de vez em quando, estou contente que tenha partido.

Agradeceu relutante pela informação, imaginando o que diria para alguém quando ela partisse na manhã seguinte. Encontrou Ana sentada diante da lareira observando as chamas. Sentou-se ao seu lado, assim que a garota a viu abriu um pequeno sorriso.

– Mamãe e papai estão dormindo. Não estou cansada. Mamãe diz que Ardith morreu. Morrer significa nunca mais voltar. Eu deixei ele brincar com as minhas figuras de madeira. Até o cavalo que é meu favorito. Por que foi embora?

– Às vezes pessoas vão embora sem querer. – lembrou-se de Gilbert e percebeu que preferia que estivesse morto. Não seria sua escolha. Partiria porque era o tempo certo. Não porque queria se livrar do fardo de cuidar dela. – Às vezes as pessoas vão embora e não podemos fazer nada para trazê-las de volta.

– Meus pais disseram que você vai viajar amanhã, queria que não fosse.

Lyvlin ficou em silêncio, mas Ana ergueu os olhos azuis em sua direção e continuou:

– Se encontrar Ardith, se encontrar... Diga para ele voltar para casa. Mamãe chora. Eu choro. Papai chora. Diga que pode voltar e ficar com as minhas figuras e que pode puxar meu cabelo quando quiser. Não vou reclamar muito. Prometo.

– Se encontrá-lo eu digo. – respondeu Lyvlin, fazendo carinho no topo de sua cabeça.

– Não esqueça de falar das figuras. Ele gosta muito delas.

A garota anuiu porque não conseguia falar.

Ana foi a sua sombra ao longo do restante do dia. Estava com ela polindo as botas com gordura de porco para manter os pés secos ao longo do resto da viagem, quando levou sopa e pão para os seus pais, pedindo para ajudar a amolar a lâmina de Arcturus e comendo com ela deixando as pernas balançarem alegremente quando Desmera e Adisa voltaram de seu treino. Ele estava com uma mancha roxa na testa e um pedaço do casaco de Desmera estava chamuscado. Estavam com uma aparência muito melhor que Lyvlin esperava. Tentou descobrir mais sobre a magia de Desmera, mas ela se esquivava de todas elas e se voltava para os preparativos com uma determinação invejável. Adisa estava com um humor terrível e retirou-se para o quarto que compartilhavam antes do jantar e não voltou.

– Não permiti que mantivesse seus cabelos em chamas. – explicou Desmera enquanto cortava uma maçã para Ana na mesa. Ela gostava de crianças e a fascinação que a garotinha tinha por Lyvlin a divertia – Sei que não o faz feliz, mas é melhor do que sermos expulsos.

– Não parece dar valor às suas capacidades diplomáticas.

– Para alquimistas o corpo é uma maneira de expor as habilidades. Acredite, ter os cabelos transformados em chamas é algo muito discreto para os padrões deles. – segurou o riso – Às vezes é difícil levá-los a sério. Mas possuem uma força inestimável para o reino e seu tipo de magia de transformação é útil nas mais diversas maneiras. Em Ciandail e Rattra existem alquimistas trabalhando desde a construção e aperfeiçoamento de cidades a forja de armas, eles compõem esquadrões especiais do exército com papéis de fatal importância em grandes batalhas. E isso são apenas os trabalhos oficiais.

Deu um pedaço para Ana e sorriu para Lyvlin.

– Espero que fiquemos em Beltring algum tempo. Adoraria ver como tudo isso vai te impactar. Fique de olho no general Breuse, é um dos melhores alquimistas do reino. Ele adora animais e é um pouco... Excêntrico.

– Não vai me contar o que isso significa, vai?

– Não. – Desmera lhe deu uma piscadela. Depois seus olhos pousaram em Ana. A garota encostara-se a Lyvlin e sua respiração rítmica ressoante denunciava que caíra no sono – Acho que precisamos devolver a garotinha para os pais.

– Poderia simplesmente desejar que ela estivesse em sua cama.

– Não devemos usar magia para coisas supérfluas, Lyvlin. – censurou Desmera.

– Mas achei que era justamente essa a parte legal de se ter magia.

– Achou errado. – Desmera segurou a cabeça de Ana enquanto Lyvlin se levantava – Agora me ajude, Adisa não foi muito gentil durante o treino. Se o deixasse incendiar qualquer coisa teria se sentido melhor, suponho.

– Tem certeza que tê-lo em um navio é algo muito sábio?

– Ter Adisa em qualquer lugar não é muito sábio. – refletiu Desmera – Mas posso mantê-lo sob controle, não se preocupe.

Naquela noite Lyvlin pensou na garotinha antes de dormir. Sobrevivente de um massacre que ceifou a vida do irmão conseguia sorrir e seus olhos brilhavam de curiosidade diante das mais simples tarefas. Aguentara de uma forma muito melhor que Lyvlin teria feito no lugar dela, disso tinha certeza. Ana fez com que se sentisse envergonhada por ter perdido o controle quando Gilbert a abandonara e soube que domar a raiva e a frustração seria um dos maiores desafios uma vez que alcançassem seu destino. Na verdade, nunca fora muito boa em controlar seus sentimentos de qualquer forma.

– Ah, os pombinhos retornaram! – a voz zombateira de Lída ressoou em sua mente. Era verão e o vilarejo estava mergulhado em trabalho, com exceção da jovem moça. Lyvlin ainda conseguia ver sua longa trança castanha balançar ao vento e as mãos apoiadas nos quadris. Intensificou o aperto em volta da caça que ela e Ezra conseguiram depois de longas horas de tocaia. Três coelhos pendiam do cinto do amigo e ela segurava um ganso selvagem, o dia fora bom e voltavam conversando satisfeitos, mas a visão de Lída fora o suficiente para estragar tudo.

– Ignore. – murmurou Ezra – Se tivermos sorte não vai nos seguir até em casa desta vez.

– Eu juro que – começou Lyvlin entre os dentes, mas o rapaz a deteve.

– Explodindo vai fazer o que ela quer. Deixa-a falando sozinha.

O que não foi muito fácil, porque Lída prontamente veio na direção deles e ocupou o espaço ao lado de Lyvlin.

– A caça foi boa hoje, não é? - perguntou com curiosidade fingida – Todos se perguntam como conseguem ser tão vitoriosos quando está claro que não sobra muito tempo para caçar.

Viu que a cabeça de seu amigo começara a se tornar vermelha, mas Lyvlin soprou uma mecha para longe do rosto e parou de caminhar. Pensou ter ouvido Ezra dar um muxoxo de frustração, mas sua atenção estava voltada para a garota diante dela. Tinha a mesma idade dos dois, ainda que sua estupidez assemelhava-se a de uma ovelha. Estava cansada de ouvi-la cochichando com as outras garotas do vilarejo quando ela e Ezra passavam pelo grupo e a culpava por nunca ter conseguido ter amigas. Desde que eram crianças Lída promovera uma ferrenha campanha contra Lyvlin, o que poderia ou não ter algo a ver com o fato de que fora o alvo favorito de seu toco de madeira, num tempo em que Lyvlin ainda não era aceita pelos garotos de Evion. Depois disso, Ezra passou a ser seu companheiro de armas favorito, o que não agradara muito a Lída nem ao próprio. Com o tempo a dupla se tornou inseparável, fazendo rumores sobre a natureza de seu relacionamento surgirem com o passar dos anos. Lyvlin sabia que a fonte destes rumores sempre fora Lída, desconfiava que a garota tivesse inveja dela, mas já cansara de dizê-la que se quisesse Ezra seria todo seu. O que não era bem verdade. As bochechas de Ezra tornavam-se rubras com mais frequência e o desconforto do amigo fez com que largasse o ganso no chão e cruzasse os braços desafiadoramente.

– Diria que temos todo o tempo para caçar. O que está querendo dizer Lída?

– Que passam mais tempo caçando um ao outro do que coelhos e gansos. – retrucou com inocência. Ao redor do trio as pessoas começavam a prestar atenção à conversa. Mulheres que recolhiam as roupas dos varais levantaram as cabeças. Lyvlin lhes lançou um olhar raivoso que não surtiu muito efeito. Em Evion não aconteciam coisas o suficiente para se perder uma discussão na rua. Sentia que seria assunto pelo resto da semana.

– Está mentindo. – disse Ezra com toda a dignidade que conseguira reunir. Era duas cabeças maior que Lída e teve dificuldade para manter a voz firme. Contara uma vez que Lída era considerada a garota mais bonita da vila pelos seus amigos e naquele momento a garota se perguntou se ele partilhava da opinião – Caçamos o dia inteiro, nada mais.

– Mas são claramente amigos.

– E como isso é do seu interesse? - quis saber Lyvlin, elevando a voz – Ou as suas invenções ao nosso respeito são em segredo fantasias do que gostaria de fazer? Arranje um arco ou uma besta, aprenda sobre armadilhas e estará pronta para caçar na floresta. Apenas procure a companhia que precisa, não precisa ser alguém muito hábil, a não ser com as partes importantes, uma vez que seu entendimento de caçada é muito diferente da nossa. Divirta-se e só tome cuidado para não se perderem. Seria uma pena se não voltasse pra casa.

Viu sua expressão atônita e abaixou-se para pegar o ganso que deixara cair. Quando se ergueu para coroar a fala com um sorriso vitorioso recebeu uma tapa na cara.

Por um instante não conseguiu reagir. No seguinte derrubara Lída no chão e sacara a sua faca de caça.

– Lyv! Não! – gritou Ezra e avançou para arrancá-la de cima da garota. Lyvlin fincou um joelho em cada lado de seu quadril e a manteve no chão com a ajuda do braço livre.

– Não se preocupe. – disse para os dois. Lída gritava e lágrimas começavam a surgir em seu rosto, mas Lyvlin não ligou. No lugar disso passou a faca perto de seu pescoço e a garota parou de se debater, encarando-a com os grandes olhos verdes.

– Você ficou louca? - sussurrou, pérolas de suor brotavam de sua testa.

– Disse que era para nos deixar em paz. – respondeu Lyvlin, pegando a trança de Lída e aproximando a faca de caça – Deveria agradecer, estou te poupando de muito trabalho.

E cortou o que deveriam ser um metro e meio de cabelo.

Coisa estúpida de se fazer. Pensava agora no aconchego de sua cama e riu. Lída correra chorando para sua casa e seu mau comportamento rendera um sermão interminável de Gilbert e duas semanas sem caçar. Quando achou que o pior que tinha passado a mãe de Lída bateu na porta deles e a acusou de arruinar a vida da filha. Disse que os cabelos são a arma mais poderosa que uma mulher tem para arranjar um marido. Quase se arrependeu. Neste momento e quando viu Lída com os cabelos curtos pegar água no poço no dia seguinte. Uma semana depois voltaria a ser a mesma pessoa de antes, mas nunca mais insinuara algo sobre Lyvlin e Ezra, o que foi bom. O amigo desaprovara o seu método, mas usufruía dos frutos da mesma forma que ela. Lyvlin puxou as cobertas até o queixo e encarou o teto. Queria saber o que Ezra diria sobre Adisa ou se iria gostar de Desmera de imediato como ela gostara. Dormiu com o coração cheio de saudade e a certeza de que voltaria para Evion depois de terminar a sua formação.