Inglaterra, Londres, agosto de 1872

Eu terminava de me vestir em meu quarto, olho a janela e vejo que em pouco tempo o sol vai ser pôr. Coloquei uma calça simples presa por suspensórios, um chapéu e usava também uma camisa branca. Ao terminar desço as escadas e sigo para a rua, o doutor tinha pedido para encontrá-lo no seu trabalho, precisaria de meu auxílio em um procedimento.

O tempo estava nublado quando sai de casa, caminho pela calçada observando a movimentação das pessoas. Eu já tinha nove anos nessa época, ainda trabalhava como mordomo do doutor também. Todo o dia lavava suas roupas, fazia a comida, limpava a casa e ainda tinha que dar conta dos estudos.

Caminhei pelos becos até que cheguei ao trabalho do doutor. Ele atendia em um local grande, a fachada era feita em pedra e as escadas em mármore. Subo e abro a porta pesada de madeira. Sigo até os fundos onde ficava a sala de operações.

Ele estava com um homem deitado na mesa de cirurgia. A perna do paciente estava cheia de ferimentos, quase podre, o fedor empesteava a sala.

-Tyler. – O doutor mexia em suas ferramentas. – Esse homem não quis pagar a anestesia. Amarre-o à mesa.

O homem bebia algo de uma garrafa, uma bebida fedorenta também. Tiro da mão dele e peço para deitar. Ele deita com o peito para cima e os braços ao lado do corpo. Coloco as amarras de couro presas em seus pulsos e tornozelos.

-Pronto! – Me afasto da mesa e observo o doutor se aproximando com um cinto e uma serra.

Ele prende o cinto na coxa do homem fazendo torniquete. Fico observando o procedimento. Ele apoia a serra na perna do homem que já tinha começado a rezar. O doutor faz força na lamina contra o músculo fazendo o primeiro corte. Sua mão ia e voltava, cortando a carne até chegar ao osso. O paciente já gritava e chorava, o doutor não demonstrava nenhuma reação, apenas fez mais força quando chegou ao osso. Ele terminou de serrar e a perna cai ficando pendurada pela amarra de couro. O sangue se espalhava pelo chão e sujando meus sapatos e minha calça. O homem tinha alguns espasmos enquanto estava inconsciente. O homem desmaia.

-Faça o estancamento da hemorragia Tyler. – Ele aponta para um braseiro em um canto.

Caminho até lá e pego uma chapa de ferro quente e levo até o homem. O metal soltava fumaça e brilhava em um tom vermelho e amarelo. Observo o ferimento sangrento na perna do homem e pressiono o metal na carne, ele acorda gritando. O cheiro de carne queimada toma a sala. Retiro o metal e o homem desmaia novamente. O doutor se aproxima com um unguento para a queimadura, passa na perna e enrola um pedaço de tecido limpo.

Coloco o metal no braseiro e volto para o paciente. O doutor coloca suas ferramentas em uma bacia com álcool e volta para o meu lado.

-Volte em casa e se limpe. Termine de fazer a comida e limpar tudo. Lembre também dos estudos.

-Sim doutor! – Saio dali e caminho de volta para casa.

Às vezes me pegava pensando se ele queria minha companhia. Não era incomum ele me chamar, passar alguma atividade banal que ele podia fazer sozinho e me mandar sair.

Já tinha ajudado em alguns procedimentos, acabei criando depois de um tempo uma resistência maior a ver sangue e membros decepados. Na primeira vez quase vomitei.

Chego a casa e sigo até as escadas. Olho a mancha no chão, o local onde Joseph foi assassinado. Subo as escadas e sigo para o banheiro. Coloco água na banheira, tiro as roupas e entro. A água estava gelada, demorei alguns minutos para me acostumar. Recosto a cabeça e relaxo ali.

Todos os dias eu lembrava o rosto daquele homem que atacou Joseph. Podia ouvir a sua voz como se ele estivesse ao meu lado sussurrando em meu ouvido. Deixo meu corpo afundar na água, fico submerso.

Fecho os olhos e sinto meu coração acelerar com a falta de oxigenação, meus pulmões em mais ou menos um minuto começam a pedir ar. Seguro-me nas bordas e continuo me prendendo embaixo d’água. Com quase dois minutos acabo subindo e voltando a respirar ofegante.

Saio da banheira e me enxugo com uma toalha. Sigo enrolado nela até meu quarto onde me visto e vou para a cozinha fazer o jantar. Desço as escadas e ao chegar à porta da cozinha percebo uma movimentação ali dentro. Um homem andava de um lado para o outro mexendo nos armários.

-Onde vocês guardam as bebidas Tyler Jackson? – Era uma voz familiar que me trouxe terror. Era Caim. – Vai continuar ai fingindo que não te vejo ou vai vir?

Entro na cozinha devagar, me recosto em um armário com a gaveta de facas atrás de mim. Ele estava de costas mexendo em alguns barris, abro a gaveta e pego uma faca deixando escondida atrás de mim.

-Vocês não têm nada que preste para beber aqui? Desisto! – Ele suspira e senta em um banco na mesa central da cozinha e me olha. – Como vai a vida Tyler?

-O que você quer? – Eu sentia ódio daquele homem. Um ódio latente.

-Apenas ver como anda meu investimento! – Ele falava seriamente. – Tyler me responda uma coisa. – Caim levanta do banco e caminha em minha direção lentamente. – O que você iria achar de ser um ser poderoso? Soberano.

Ele para em minha frente e coloca as mãos no bolso de seu sobretudo. O chapéu cobria parcialmente seu rosto.

-Como assim? – Pergunto e aperto a faca em minha mão.

Caim olha para a janela e tira um relógio de seu bolso. Ele dá corda e observa as horas.

-Vou te mostrar agora! – Ele sorri e então percebo que o sol acabou de se pôr.

Seus olhos começaram a amarelar e presas crescendo no lugar de seus caninos, uma língua bifurcada saindo por entre seus lábios. Fiquei em pânico enquanto ele sorria com aquela aparência monstruosa. Enterrei a faca em seu estomago e sai correndo dali para o outro lado da cozinha.

-Você estragou minha roupa! – Ele faz uma cara séria, tira a faca e joga no chão. – É deste poder que falo garoto. A imortalidade.

Em um piscar de olhos ele estava em minha frente tocando meu rosto. Assusto-me e ao tentar sair acabo tropeçando e caindo de costas no chão. Ele me levanta pelo pescoço.

-Parece que ainda está fraco para ser compatível. – Ele olhava me analisando como uma cobaia.

-Vou... Matar... Você... – Eu tentava falar enquanto sentia o ar saindo de meus pulmões.

-Ficarei alegre de ver tentar. – Ele sorri e me atira no chão. – Até depois garoto! E arrume bebidas da próxima vez que eu vier.

-Espe... – E ele some deixando apenas um vulto no local onde estava e o som da porta da rua batendo.

Levanto do chão e tento processar tudo o que ocorreu ali. Caim queria algo de mim. Eu tinha que descobrir o que era e o motivo.