Estava chovendo.

Talvez não seja a melhor maneira de se começar uma história, mas o fato era simples: chovia de forma torrencial na grande cidade de Ghalary, com seus edifícios cobertos por mármore branco e polido, jardins nababescos, monumentos históricos de reis, deuses, heróis e incontáveis outros indivíduos notáveis.

Qualquer um que cruzasse a muralha daquele lugar, por qualquer uma das doze portas, encontraria vias limpas e asfaltadas, dois grandes rios que circundavavam a cidade – o Atlas (maior e muito usado pelos barqueiros) e o Clito (menor e mais próximo do palácio) e, em uma elevação, bem no centro da cidade, o grande palácio; naquela majestosa capital, nenhum edifício se destacava mais do que o palácio imperial, onde os monarcas ghalaryanos viviam, desde a erupção minoica.

A seguir, destacavam-se os edifícios do senado, biblioteca imperial e mais alguns outros, construídos por ordens de imperadores poderosos, arquitetos brilhantes e artistas de talento incomparável.

Próximo da área central, ficava a grande catedral de Ghalary (onde os imperadores eram coroados), que é onde nossa história tem início.

A despeito do clima tempestuoso, a nobreza ghalaryana reunia-se junto aos senadores e parte da população da cidade.

Os membros da recém criada Távola Redonda Ghalaryana também se reuniram na catedral, juntamente com os monarcas estrangeiros, Blair (rainha de Gardênia) e Roland II (rei de Enchancia).

Muito tiveram que permanecer em pé, independente de classe ou posto no governo, mas em nenhum lugar se notavam olhares aborrecidos ou irritados: o sentimento geral que imperava naquele templo era o luto, acompanhado da mais terna compaixão para um garoto de treze anos que agora se via mais solitário do que nunca, a despeito de toda aquela multidão que o fazia companhia: Aethel, o imperador.

Todos os presentes estavam ali para prestar as últimas homenagens ao desventurado Antônio Aureliano e sua esposa, Sophia, cujas vidas foram tomadas pela revolução, vinte anos antes.

Por ordens de Aethel I (filho do trágico casal), os restos mortais haviam sido trazidos até a catedral, onde seriam velados e sepultados na cripta imperial.

Usando um traje formal negro, como o manto da noite, decorado com dragonas e alamares (ambos feitos com a prata das montanhas do norte), Aethel olhava para os cenotáfios de carvalho, decorados com relevos retratando cenas bíblicas, animais antropomórficos e flores, perguntando-se para onde aquele mundo nascido do fogo poderia (e deveria) chegar.

Ambrósius, o patriarca da igreja, fez uma linda oração de lamento, onde pedia a Deus que guardasse a alma do casal imperial e protegesse seu filho, logo dando a palavra para que o jovem imperador fizesse o discurso de despedida.

Aethel olhou para os vitrais coloridos, os bancos de madeira e o piso de granito, buscando refúgio daquele cenário de lamentação, até que alguém segurou sua mão direita, fazendo-o recobrar a atenção: era Mabel Pines, de Piedmont.

Uma brisa fria afagava os cabelos castanhos e longos da menina, mas ela não tremia ou deixava o gentil sorriso de lado; Mabel era assim, e ninguém no mundo poderia mudar seu jeito “vivo” de agir.

Aethel sorriu para a garota e começou a falar para a multidão, enquanto alguns olhos curiosos davam maior atenção às mãos dadas do que aos cenotáfios:

— Meus pais voltaram para casa – falou Aethel – Não vou me estender muito; não sei lidar com esse tipo de coisa. Meus pais se foram e eu nunca mais vou vê-los… ás vezes acontece. Eles foram tirados de mim por causa de um lunático que convenceu alguns aventureiros ingênuos a cometerem esse… esse crime; essa monstruosidade… Eu já desejei a morte desses criminosos, mas algo me fez entender que isso não faz diferença alguma: meus pais se foram; simples assim. – disse o rapaz, ainda segurando a mão de Mabel – Sentiremos falta deles, mas seguiremos em frente, como sempre fizemos; não apenas por eles, mas por todos aqueles que se foram por causa do caos de vinte anos atrás… Bem, quero que saibam que, a partir de hoje, declaro setenta dias de luto, em honra a todos aqueles cujo sangue foi tão, tão… tão monstruosamente ceifado por aquela baderna selvagem. Me desculpem, mas prefiro não continuar.

Nesse momento, todos abaixaram as cabeças, doze oficiais com uniformes brancos seguraram os cenotáfios (seis homens para cada caixão) e depois os carregaram por uma grande porta de ébano, logo seguindo em direção à cripta imperial, onde os antigos monarcas eram sepultados desde tempos imemoriais .

Após isso, Aethel retornou ao palácio, recusou qualquer refeição e deu por encerradas as atividades do dia (embora ainda fossem 08:00h).

O rapaz trancou-se em sua sala de chá e não viu mais ninguém, à exceção de Mabel, que insistiu em lhe fazer companhia.

Com sorrisos alegres, mostrando orgulhosamente os aparelhos dentários, a garota abraçava Aethel e sussurrava, como uma irmã que acalenta o irmãozinho, “vai ficar tudo bem, essas coisas passam”.

Conforme os dias seguiam, o imperador órfão continuava a recusar qualquer refeição, assim como cessou com os bailes, adiou o desfile de triunfo e pediu para não ser incomodado por nenhum dos senadores, nem pelo próprio Atreu – 2° cônsul do império.

Embora os bons amigos tenham aceitado respeitar o luto, Aethel era, acima de tudo, imperador de um vasto e invencível império, cujo estado natural era a expansão constante; não. O garoto não poderia permanecer enlutado pelo resto da vida, pois essa já não lhe pertencia desde aquele dia mágico, em Gravity Falls; quando o rapaz retirou a Excalibur da bigorna e se tornou imperador.

Enquanto o senado e a aristocracia se preocupavam, Mabel permanecia ao lado do amigo, esforçando-se para que ele comesse alguma coisa:

— Olha o aviãozinho, vrum – disse Mabel, segurando uma colher com pudim – Abre a boca e diga “aaaaaaaah”.

A resposta quase sempre era o silêncio, porém, pouco a pouco, Aethel começou a aceitar uma ou duas colheres, pedacinhos de pão mergulhados em vinho do norte (geralmente a variante dos subúrbios; um suco feito de mangas, pedaços de gelo e algumas poucas especiarias – pois os ghalaryanos escarnecem e abominam o álcool) e, em certa manhã mai alegre, água com meia laranja para acompanhar.

Duas semanas após o funeral, Mabel conseguiu fazer com que Aethel tomasse café da manhã no salão de banquetes, como esperava o protocolo real; a garota sorria com seus progressos em restaurar o amigo a sua alegria de outrora, enquanto dizia para si mesma “mandou bem, garota!”

As refeições no salão eram bastante frugais, quase sempre compostas por pães asmos, água e, eventualmente, bolinhos de figo com mel; apesar disso, a animação dos senadores começava a crescer, junto com a da própria nação.

Enquanto tudo se desenrolava, Dipper ajeitava os cabelos castanhos e sorria para a irmã, que parecia nem se lembrar do funeral de poucos dias antes.

Três semanas após o sepultamento dos pais, Aethel aceitou o convite de Mabel para passear nos jardins do palácio, onde poderiam ver a fonte de Cupido e Psiquê, as lindas rosas e os bancos de mármore.

Com paciência, a gêmea conversou com o jovem rei e lhe falou sobre o quanto todos estavam ansiosos pelo alegre desfile de triunfo:

— Desculpe Mabel, mas estou um pouco cansado. – disse o rapaz.

— A gente já passou por tanta coisa – disse a garota – Além disso, todo mundo precisa de uma festa de vez em quando, não é não? Todo mundo tá feliz pelo fim da guerra, mas não tem festança alguma pra gente transbordar de felicidade, entende?

De cabeça baixa, Aethel respondia de forma vaga, distraindo-se com a grama fresca, a libélula próxima da fonte, as borboletas rodeando as gardênias e a uma abelha, polinizando um grupo de flores amarelas.

Em dado momento, o garoto ergueu o olhar e respondeu que já não queria mais um triunfo, mas um pouco de solidão, ao que Mabel, sem ouvir mais nada, o abraçou com carinho.

O imperador fechou os olhos, enquanto escutava as voz açucarada de sua amiga:

— Aethel – disse ela – Todo mundo sofreu com a guerra, então esse triunfo não é só para você, entende? As pessoas querem se alegrar com você, porque todo mundo sofreu ao seu lado. Vamos lá, um desfile bonito com cavalos brancos, fadas, pessoas usando roupas super elegantes! Por favor, vamos sacudir a tristeza pra bem longe… por favorzinho – encerrou a garota, com um beicinho.

Após um pouco de silêncio, o rapaz afagou os cabelos longos e macios de Mabel, quase tão castanhos quanto os seus, fitou a água que jorrava da fonte e disse, por fim:

— O desfile… tu o terás.